Academia Brasileira de Problemas

Caio Navarro de Toledo

  • No rastro das violências cometidas pelo regime militar (1964-1985), a extinção do Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi um caso exemplar. Por meio deste ato, o pensamento reformista e democrático foi reprimido e repudiado pelos militares e civis vitoriosos em abril de 1964.

    Afinal, o que significou e representou o Iseb, cuja fundação completou 50 anos em julho de 2005?
    O breve período de redemocratização do Estado e do regime político no Brasil – iniciado em 1946 e encerrado com o golpe de 1964 – implicou significativas mudanças na vida política e cultural do país. Os novos dirigentes políticos e as instituições criadas com a Constituição de 1946 permitiram uma nova dinâmica dos movimentos sociais.

    Do segundo governo Vargas (1951 – 1954) até meados dos anos 1960, setores conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam politicamente para defender seus projetos sociais e econômicos. O Iseb representou um desses projetos.

    Criado em 1955, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi a continuação do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, entidade privada que desde 1952 reunia na cidade do Rio de Janeiro técnicos governamentais e intelectuais. A fundação do Iseb se deveu à iniciativa de técnicos que assessoravam o segundo governo Vargas e de setores intelectuais progressistas. Paradoxalmente, foi um político conservador, o presidente Café Filho, que assinou, em 14 de julho de 1955, o decreto que criou, no âmbito do MEC, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros.

  • A estrutura administrativa do Instituto era constituída de um Conselho Consultivo (50 membros indicados pelo ministro da Educação) que, na prática, tinha apenas uma “função decorativa”. Abaixo dele estava o Conselho Curador, órgão de direção do Instituto formado por oito membros, também designados pelo MEC. No entanto, os cinco departamentos, responsáveis por pesquisas internas, conferências, formação de quadros e cursos regulares, desempenhavam as funções e os papéis mais importantes dentro da instituição. Na época de sua criação, estavam assim constituídos os cinco departamentos: Ciência Política, chefiado por Hélio Jaguaribe; Economia, por Ewaldo Correia Lima; Filosofia, por Álvaro Vieira Pinto; História, por Candido Mendes de Almeida, e Sociologia, por Alberto Guerreiro Ramos. 

    O Iseb era formado por intelectuais – não-acadêmicos, em sua maioria – de distintas orientações teóricas, que ali se reuniam para debater e refletir sobre “os dilemas e os problemas cruciais da realidade brasileira”. De forma deliberada, o Instituto foi criado como um instrumento de atuação no processo político do país. Neste sentido, o Iseb foi, no Brasil contemporâneo, a instituição que melhor simbolizou e concretizou o ideal do engajamento do intelectual na vida política e social. 
     

    Em sua fundação, o Instituto tinha as características de uma grande frente intelectual e política. Nele conviviam liberais, comunistas, social-democratas, católicos progressistas (alguns deles recém-egressos do integralismo) etc. No entanto, apesar da multiplicidade de orientações teóricas e políticas, os isebianos concordavam que, por meio do debate e do confronto de idéias, seria possível formular um projeto político comum para o Brasil. O “nacional-desenvolvimentismo” foi então concebido como pensamento capaz de levar o país – por meio da ação estatal (planejamento e intervenção econômica) e de uma ampla frente política de classes –¬ a superar o atraso econômico-social e a alienação cultural.

    Durante seus quase nove anos de existência, o Iseb passou por diferentes fases. Dois momentos se destacam pela relevância das questões debatidas e enfrentadas: o da “criação”, que praticamente coincide com o “período desenvolvimentista” de Juscelino Kubitschek (1955-1960), e o do “último Iseb”, que acompanha o governo do presidente João Goulart.

  • Embora o Instituto não possa ser rigorosamente identificado como uma instituição a serviço do desenvolvimentismo de JK, é certo que – particularmente nos primeiros anos de governo – houve uma nítida sintonia entre os intelectuais do Instituto e o projeto industrializante do governo. Alguns destacados isebianos chegaram, inclusive, a se empenhar na campanha eleitoral de JK e também a participar de grupos de trabalho que elaboraram os planos governamentais do candidato presidencial vitorioso do PSD. 
     

    A frente que defendia o nacional-desenvolvimentismo enfrentou um abalo decisivo dois anos e meio após a fundação do Instituto. Em dezembro de 1958, uma acirrada discussão se instalou dentro do Conselho Curador. Setores nacionalistas mais ortodoxos, da Frente Parlamentar Nacionalista, União Nacional dos Estudantes e publicações de esquerda, entre outros, ¬ com o pleno apoio e incentivo de Guerreiro Ramos, questionaram abertamente formulações que eram defendidas no livro O nacionalismo na atualidade brasileira, de Hélio Jaguaribe. Na obra, que ainda se encontrava no prelo, Jaguaribe, ao postular o chamado “nacionalismo de fins” (em oposição ao “nacionalismo dos meios”), admitia, por razões de “eficácia técnica”, a privatização de setores básicos da economia brasileira – entre elas, a do setor petroquímico. Igualmente, no livro deixavam de ser defendidas medidas rígidas de controle em relação ao capital estrangeiro. Depois de tumultuadas e acaloradas discussões, que foram noticiadas e exploradas pela imprensa conservadora, a cisão se estabeleceu de forma definitiva no seio do Instituto.  No fim de 1958, o sociólogo Guerreiro Ramos se afastou do Iseb; em março de 1959 seria a vez de o principal idealizador do Instituto, Hélio Jaguaribe, dele se retirar. 

    O chamado “último Iseb” foi a fase em que se deu uma revisão crítica das teses nacional-desenvolvimentistas. Decorridos os cinco anos do governo desenvolvimentista de JK, verificou-se que o país crescera economicamente com a consolidação do capitalismo industrial, mas não tinha resolvido suas graves e históricas desigualdades sociais e regionais. Na formulação de um desses críticos, o desenvolvimentismo – idéia em que o Iseb se empenhou com o melhor de suas energias e inteligência – revelou-se a “ideologia da classe dominante”. 

     Durante este último período, o Iseb esteve sob a direção política e intelectual do filósofo Álvaro Vieira Pinto e do historiador marxista Nelson Werneck Sodré. Ao lado destes dois diretores, colaboravam jovens professores universitários, politicamente de esquerda. Nesta fase, houve uma crescente politização do Instituto, que, a partir de então, privilegiaria o debate sobre as reformas sociais e econômicas, defendidas pelo governo Goulart e pelo movimento nacional reformista (Frente Parlamentar Nacionalista, Ligas Camponesas, sindicatos de trabalhadores, setores subalternos das Forças Armadas, União Nacional dos Estudantes, artistas etc). 

  • Juntamente com o movimento democrático e progressista, o Iseb amargou em 1964 uma contundente derrota política. No entanto, não se pode deixar de reconhecer que a instituição foi uma referência intelectual importante nas décadas de 1950 e 1960. Nessa época, havia no país um inédito e intenso confronto de projetos teóricos e políticos e uma crescente participação de novos protagonistas na vida política e cultural. Deve-se reconhecer, por exemplo, que os cientistas sociais progressistas e de esquerda da USP, interlocutores pouco entusiasmados em relação ao Iseb, tiveram, em comparação com os isebianos, uma participação discreta e hesitante no debate político brasileiro. Vale lembrar a autocrítica feita por Fernando Henrique Cardoso. Numa entrevista concedida quase duas décadas após a extinção do Instituto, o sociólogo afirmou que “(...) o pessoal do Iseb nos parecia pouco rigoroso, não tinha a nossa bagagem acadêmica. Para o Iseb, o povo era o sujeito da História, enquanto, para nós, esse sujeito era indeterminado. Enquanto pensávamos em classes, o Iseb pensava em povo. Nós éramos, assim, uma ‘esquerda acadêmica’. A verdade é que, na prática, o Iseb teve uma influência muito maior do que a do nosso grupo, que ficou isolado em São Paulo. Reconheço que fomos bastante cegos com relação às mudanças que ocorriam”. (O Estado de S. Paulo, 7/8/1983).

    Pode-se concluir que, com o golpe civil-militar, as idéias difundidas pelo Iseb foram derrotadas pela força das armas. Identificado com a esquerda “subversiva”, o Instituto foi alvo da sanha golpista. Nos primeiros dias de abril de 1964, sua biblioteca e seus arquivos foram destruídos. Alguns de seus intelectuais foram presos, outros foram obrigados a abandonar o país.

    Apesar de seus equívocos teóricos, políticos e ideológicos, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros deve, pois, ser lembrado como uma instituição que congregou intelectuais comprometidos com a defesa de causas reformistas e de caráter democrático. Os isebianos se sintonizaram com a dinâmica das lutas sociais e políticas presentes na sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960. Escreveram pequenos livros dirigidos a um público não-acadêmico (como foi o caso dos Cadernos do Povo Brasileiro). Também assinaram artigos em jornais e revistas progressistas reivindicando a realização das reformas estruturais, e durante os nove anos de existência do Instituto, posicionaram-se ativamente contra as constantes ameaças ao regime democrático brasileiro. 

     Não cabe à intelectualidade democrática e progressista reeditar hoje um novo Iseb – embora alguns dos principais motivos que provocaram a criação do Instituto ainda estejam inteiramente presentes na vida social brasileira. Decorridos 50 anos da fundação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, deve-se admitir que a ordem capitalista no Brasil – que se concretiza sob regimes ditatoriais ou democráticos ¬– tem se mostrado incapaz de atender às demandas básicas (econômicas, políticas e culturais) do conjunto das classes populares e dos trabalhadores.

  • As batalhas pelas reformas sociais, pela soberania nacional e por uma consistente democracia política foram bandeiras na época da criação do Iseb. Cinqüenta anos depois, estas lutas interpelam, de forma ainda mais dramática, a intelectualidade crítica e não-conformista.


    Caio Navarro de Toledo é professor do IFCH da Unicamp e autor de ISEB: fábrica de ideologias, 2a. ed., Editora da Unicamp, 1997.