África fora do tempo

Anderson Ribeiro Oliva

  • A cada início de semestre letivo, faço um exercício com meus alunos da disciplina história da África. Peço que escrevam os nomes de quatro ou cinco povos africanos que, compulsoriamente, contribuíram para a formação da sociedade brasileira até o século XIX. Quase sempre, nesse momento, suas fisionomias ficam marcadas pela surpresa e dúvida. Nas últimas vezes, obtive algumas respostas satisfatórias, mas o silêncio da maioria foi muito inquietante.

    Na busca por um entendimento sobre tão profundo distanciamento, é fácil chegar a determinadas conclusões: os africanos e suas múltiplas experiências históricas não foram apresentados à maioria dos brasileiros nas escolas; quando isso ocorreu, os conteúdos estavam, quase sempre, recheados de imprecisões; e, por fim, apesar da vigência de três anos da lei 10639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, e do parecer 003/2004 do Conselho Nacional de Educação, que estabeleceu algumas balizas para o ensino da história africana, um grande número de professores ainda se encontra desorientado em relação ao tema.

    Assim, sem a existência de um espaço adequado para o assunto em nossos bancos escolares e com a divulgação de imagens depreciativas sobre os africanos (a fome, as guerras, as doenças), entramos num círculo vicioso de difícil superação.

  • Esses fatores serviram de incentivo para que realizássemos uma pesquisa acerca do papel e do tratamento concedidos à África nas mais de trinta coleções de livros didáticos de história confeccionadas para serem utilizadas no ensino fundamental (da quinta à oitava séries), entre 1995 e 2005. A investigação revelou que apenas onze livros dedicavam à história africana um capítulo específico — o que não deixa de ser um bom número, já que antes o silêncio era absoluto!

    Lembramos que não estavam em foco as costumeiras citações sobre o tráfico de escravos, a ocupação européia da segunda metade do século XIX, ou os processos de independência ocorridos no século XX, mas sim o tratamento do período que se estende até o século XVIII na África. E é justamente sobre esse recorte que podemos encontrar, a partir da tradição oral, dos vestígios arqueológicos e das fontes escritas (em árabe, português e outras línguas), fecundas notícias históricas de várias sociedades subsaarianas.

    Vejamos, portanto, alguns dos caminhos e descaminhos percorridos pelas referidas obras, lembrando que nem todos os pontos aqui citados são comuns aos textos, mas sim fruto de um panorama geral.

  • Em primeiro lugar, é importante ressaltar o número de páginas utilizadas para tratar o assunto. O valor quantitativo por si só não é relevante. Mas, se os capítulos que tratam de temas como o Império Romano, feudalismo e Renascimento cultural ocupam em média quinze páginas (cada) e têm vasta bibliografia, seria de se esperar que a abordagem da história da África recebesse, no mínimo, a mesma atenção. Porém, não é o que ocorre, sendo o espaço dedicado ao assunto, na maioria dos casos, inferior ao mencionado. Enfocar um período marcado por tão complexas e diversas trajetórias em poucas páginas não é uma tarefa que se cumpra sem generalizações e imprecisões. Não é disso que a África precisa.

    Nos livros que não abordam a história da África em um capítulo específico, o tema só aparece em trechos que tratam de outras realidades históricas. Nesse caso, ou o continente não passa de um obstáculo a ser superado para atingir o lucrativo mercado de especiarias do Oriente (nos séculos XV e XVI), ou se transforma em uma fonte de riquezas, como o ouro, o marfim e os escravos. Por não ter eixo histórico próprio, a África transforma-se em ator figurante, que passa quase despercebido pela cena histórica. Por exemplo, o Egito (única referência obrigatoriamente citada) é identificado, quase sempre, apenas como membro do chamado “Crescente Fértil” e não como uma civilização africana (apenas com uma elogiável exceção).

    Outra postura recorrente é a ênfase em abordar apenas os grandes reinos e impérios africanos, como Gana, Mali, Songhai, Congo e Zimbábue. Que fique claro que não há nada contra esses objetos históricos, pelo contrário, é louvável que se conceda a eles importância. Porém, o uso de referenciais ocidentais para eleger o que é importante de ser ensinado sobre a África deve ser questionado.

  • Para ser mais claro: se em relação à história européia estamos acostumados a dedicar significativa atenção aos grandes reinos e impérios (basta percorrer os índices de nossos manuais para constatar a dedicação a esses temas), por que devemos usar para a África a mesma fórmula? Seria o mesmo que afirmar que “os pequenos grupos não merecem ser estudados”, ou ainda que, “diante da impossibilidade de atentar para as centenas de sociedades que se espalham pelo continente, devemos ter como base os padrões eurocêntricos”.

    As novas correntes de estudos africanistas revelam que existe uma variedade estimulante de abordagens sobre a história africana (como a questão do gênero, das migrações, da elaboração dos padrões próprios de organização política, econômica e social, dos valores estéticos, filosóficos e culturais, entre vários outros). Não se deve ignorar a existência de organizações políticas ou sociais semelhantes às européias, às asiáticas ou às americanas, mas é preciso que se demonstre e enfatize suas singularidades.

    Ao analisar a presença da escravidão e dos efeitos do tráfico de escravos no próprio continente, os livros, com raras exceções (que não devem ser esquecidas e merecem novamente elogios), revelam um grande descompasso com as novas pesquisas elaboradas por um vasto grupo de historiadores. Poucos textos mencionam as especificidades da escravidão tradicional africana, deixando entender que essa instituição teria sido inventada pela presença árabe ou européia na África. Além disso, pelas explicações encontradas, os alunos também são levados a pensar que o tráfico de escravos aconteceu sob influência exclusiva dos comerciantes árabes, europeus e americanos, ignorando a participação de africanos no processo. A presença recorrente de imagens que ilustram os africanos em condições de submissão ou de trabalhos forçados encerra esse quadro de forma tendenciosa.

  • Na trilha seguida pelos autores, um outro obstáculo não foi superado: a forma de denominar as sociedades africanas. O emprego freqüente da categoria tribo para referir-se aos grupos não-estatais é inadequado e impreciso. O conceito em questão ajusta-se muito mais ao contexto histórico marcado pelas ações colonialistas européias dos séculos XIX e XX do que aos dias atuais. Naquele momento, era preciso reforçar as crenças da suposta superioridade ocidental. Dessa forma, em vários estudos antropológicos, baseados em teorias raciais e evolucionistas, os africanos foram classificados como primitivos, selvagens, inferiores e tribais. Hoje, repetir essa terminologia é uma ação fora de seu tempo. Para evitar esses estigmas, outras referências poderiam ser usadas, como sociedades ou populações.

    Por fim, no uso das imagens, encontramos uma realidade bastante estimulante. A apresentação de mapas, que fogem das representações cartográficas tradicionais, e de imagens como as das mesquitas em Mopti e Djenee, da cidade de Tombuctu (no Mali), do Grande Zimbábue e de esculturas feitas por diversas sociedades são importantes instrumentos na caracterização das formas arquitetônicas, das religiosidades, artes e filosofias africanas.

    A necessidade de repensar nossa postura com relação ao ensino e à pesquisa da história da África é urgente. As limitações ainda são muitas, apesar dos avanços conquistados. No entanto, aos poucos, é possível vencer o descaso encontrado na academia, o despreparo de professores e a desatenção das editoras pelo tema. Enalteçam-se algumas iniciativas de pesquisadores, de centros de investigação, do movimento negro e do Estado. A presença da África nas graduações, o incentivo às pesquisas sobre o tema e até sua inclusão obrigatória nos vestibulares são medidas que tendem a aumentar o interesse de nossos estudantes e professores sobre o assunto. Talvez assim as coisas continuem a mudar e os obstáculos enfrentados por todos possam ser superados.

    Anderson Ribeiro Oliva é doutorando em história social pela Universidade de Brasília (UnB), e professor de história da África da UPIS/DF.