Seria possível tratar da guerra sem associá-la a imagens de morte, sofrimento, desespero e dor? Seria possível abordá-la em cartões-postais com belas mulheres e até mesmo crianças? Você remeteria um desses cartões a seus parentes ou amigos?
Há um século começava a Primeira Guerra Mundial, na qual aproximadamente 9 milhões de vidas foram sacrificadas. Mas muitas das imagens que circularam no período omitiam essa realidade. Nos cartões-postais, a guerra era outra coisa.O costume de trocar cartões era corriqueiro e muito apreciado, antes e durante a Guerra. Muitos parecem mostrar, à primeira vista, inocentes cenas do cotidiano. Mas sua finalidade explícita era celebrar a guerra. Fosse por meio de poses de anônimos homens fardados, belas e sensuais jovens com elegantes trajes, crianças com seus brinquedos ou até senhoras idosas, os cartões eram uma estratégia para convencer a população civil e militar em favor da necessidade do confronto bélico.Em países como a França e a Alemanha, milhões de cartões-postais foram produzidos, adquiridos, enviados, recebidos e colecionados avidamente. Tratavam da guerra e, evidentemente, de muitos outros temas. Não é de surpreender que vários deles tenham chegado ao Brasil, onde o encanto em torno daqueles pequenos retângulos ricamente ilustrados também se expandia. Em 1906, por exemplo, uma certa Antonieta, residente em São Fidélis, estado do Rio de Janeiro, informou que fizera boa viagem e registrou saudades de Iayá e de Nhaná, evidenciando intimidade com as destinatárias. Como veículo de suas notícias, escolheu um postal de teor belicista: seu tema era a disputa entre França e Alemanha pelos territórios da Alsácia e da Lorena.As palavras da remetente parecem indicar que ela não compreendeu ou simplesmente ignorou o significado da jovem retratada à esquerda do cartão: “Como não posso estar contigo, resolvi enviar-te esta criadinha para dar-te as minhas notícias”. A “criadinha” era, na verdade, uma jovem com trajes típicos da Alsácia, região então ocupada pela Alemanha.Esse descuido em relação à mensagem visual certamente não acontecia entre franceses e alemães. Uma rápida leitura da cena e da legenda revela os propósitos do cartão, produzido na França: com olhar desconfiado e descontente, a jovem se depara com um estático militar alemão e se questiona: “O que faz ele aqui?”. Imagem nitidamente construída em estúdio fotográfico, a justaposição da moça alsaciana e do soldado alemão remetia, no período, a uma questão não resolvida para os franceses desde maio de 1871. Naquela ocasião, a derrota para as forças prussianas resultou na queda do governante francês, Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte. Outra consequência foi a unificação do Império Alemão, que impôs pesadas indenizações ao país derrotado e se apossou dos territórios da Alsácia e da Lorena.
A humilhação foi sentida com intensidade e não se apagaria da memória dos franceses. Para isso, contribuíram não apenas as Forças Armadas, mas também a Igreja, o ambiente familiar e o sistema de ensino, com seus belicosos livros de história. O sentimento era reforçado por cartazes de propaganda, selos postais, panfletos e milhões de cartões-postais. A população francesa era cotidianamente bombardeada pela lembrança do “Desastre de Sedan”, como se tornou conhecida a derrota de 1871 na Guerra Franco-Prussiana (1870-71), e pela certeza de que a revanche era inevitável e deveria acontecer pela via militar.A jovem alsaciana do cartão de Antonieta representa muito mais que um território perdido, com todos os amplos recursos agrícolas e minerais lá disponíveis, que muito auxiliaram a indústria de armamentos germânica. Representa um sentimento que não podia ser ignorado ou esquecido. Sentimento que se pretendia presente nos territórios ocupados pela Alemanha. Entendem-se as cores do traje: o azul, o branco e o vermelho são evidente alusão à bandeira francesa.
A imagem do soldado alemão também carrega muitos significados. Os habitantes do país vizinho e inimigo eram retratados na França como indivíduos dotados de parcos recursos mentais, seres toscos e pouco civilizados. O contraste é evidente: enquanto a alsaciana se mostra ativa, capaz de expressar seus sentimentos e de repelir o alemão, este último permanece em pose de sentido, completamente imóvel, com olhar aparvalhado, distante, perdido no horizonte. Seria um indivíduo sem iniciativa, que talvez se limitasse a cumprir ordens.Não deixa de ser irônico que o contexto em que ocorreu a Guerra Franco-Prussiana seja o mesmo em que os postais começaram a ser utilizados. Sua expansão deu-se rapidamente entre o final do século XIX e o início do XX, tanto que o período que vai de 1900 a meados da década de 1920 tem sido denominado de a “Era de Ouro dos Cartões-Postais”.Na época, o número de postais produzidos em países como a Alemanha, a França, a Inglaterra e a Bélgica já era contado aos milhões. Colocando-se na dianteira de sua emissão, a França teria produzido mais de 120 milhões deles somente no ano de 1910. Indo muito além de simplesmente veicular belas paisagens, os postais tendiam a apresentar imagens com conteúdo político, propagandístico, humorístico, erótico, entre muitas outras possibilidades.Para obter as imagens que os exibiam, era muito comum o recurso ao retrato fotográfico encenado, produzido por modelos no interior de estúdios. Assim, é possível que parte significativa dos combatentes neles presentes nunca tenham comparecido ao front, restringindo-se a dramatizar combates em cenários especialmente concebidos para tal finalidade. A seguir, os retratos eram submetidos a retoques e montagens, sendo habitual mesclá-los com desenhos e colorizá-los à mão.Também era frequente a emissão de séries, ao longo das quais uma história era narrada. Em tais casos, geralmente o cenário permanecia inalterado, variando somente a pose dos modelos retratados. Novas situações davam prosseguimento a uma narrativa que se desenrolava ao longo de quatro, cinco, seis postais.O clima de tensão que tomou o continente naquela virada de século não poderia ficar ausente dos cartões. Em um deles, uma alsaciana saúda o início da guerra, erguendo a bandeira francesa em lugar da alemã. Outro estampa cena na qual um soldado da infantaria francesa se impõe – em pose que é um misto de orgulho e desdém – diante de um humilhado militar alemão que, prostrado e indefeso, tenta se proteger com seu sabre.
Ainda mais surpreendente, nos dias de hoje, é ver a montagem de diversos bebês franceses ao longo das trincheiras. O cenário é desolador, eles estão em meio ao arame farpado, mas são acompanhados por seus brinquedos (bélicos) e têm expressões de felicidade no rosto. Conforme se pode ler na legenda, seriam eles “sementes de poilus”. Expressão afetuosa, poilu (“homem forte, valente”) foi o termo através do qual os combatentes franceses tornaram-se conhecidos por seus compatriotas, em alusão à sua bravura em combate. O brado, On les aura!, ou “Vamos pegá-los!”, indicaria que, desde a mais tenra idade, os franceses já seriam movidos pelo mesmo sentimento e desejo de enfrentar e derrotar o inimigo.Souvenirs deste tipo serviam muito bem para presentear pessoas queridas, registrando o desejo de estar próximo, em meio a tantas outras expressões de carinho. Mas também pregavam o ódio, estampando cenas associadas à guerra ou à sua iminência, e assim fazendo propaganda em seu favor.Os cartões-postais bélicos não primavam pelo realismo. Ao contrário, exibiam imagens altamente idealizadas, correspondentes à percepção de que somente por intermédio da guerra a França obteria a revanche tão almejada desde 1871. Nem retratos fiéis da guerra, nem puras idealizações destituídas de sentido ou de conexão com a realidade, os exemplares produzidos na França às vésperas e ao longo da Primeira Guerra Mundial nos colocam em contato com anseios, esperanças, medos, certezas e incertezas experimentados por sua população um século atrás.Marco Antonio Stancik é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa e autor de “O imaginário sobre o militar em cartões-postais franceses (1900-1918)”. História Unesp, v. 31, 2012.Saiba MaisKOSSOY, Boris. “O cartão-postal: entre a nostalgia e a memória”. In: ___. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.SCHAPOCHNIK, Nelson. “Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade”. In: SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada: República (da Belle Époque à Era do Rádio). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.VASQUEZ, Pedro Karp. Postaes do Brazil (1893-1930). São Paulo: Metalivros, 2002.
Agrados do front
Marco Antonio Stancik