Houve um tempo em que nem mesmo as melhores casas das maiores cidades brasileiras contavam com água encanada. Eram os chafarizes públicos que cumpriam o nobre papel de garantir aos moradores as condições mínimas de conforto, saúde e higiene, além de servir a muitos para seu trabalho e sustento – em um passado não tão distante.
Na história do Rio de Janeiro, as fontes públicas têm um significado especial. A princípio, navios e moradores do povoado fundado por Estácio de Sá em 1565 (onde atualmente fica o bairro da Urca) abasteciam-se no então distante rio Carioca, cuja foz está situada na atual Praia do Flamengo. A tarefa envolvia riscos de vida, pois o lugar era sujeito às emboscadas de índios e franceses. Quando a cidade se mudou para o Morro do Castelo, o rio Carioca continuou a ser o principal fornecedor de água potável, pois as águas das várzeas ao redor do morro eram impróprias para o consumo. Ela era conduzida ao núcleo urbano por escravos e índios, ou vendidas de porta em porta por aguadeiros.
A dificuldade em obter água e os altos preços cobrados por ela eram motivos de queixas constantes por parte dos moradores, que solicitaram aos representantes da Coroa a canalização das águas do Carioca para a cidade. Para isso, o governo criou novos impostos e contratou mão de obra durante a segunda metade do século XVII. Ainda assim, as obras se arrastaram em meio a controvérsias políticas, falta de verba e dificuldade em encontrar mão de obra especializada. O projeto seria concluído quase um século depois: em 1723 foi enfim inaugurado o primeiro chafariz no Largo de Santo Antônio – que passou, por isso, a ser chamado de Largo da Carioca. A água vinha do Morro do Desterro (atual Santa Teresa), descia até o Campo da Ajuda (atual Cinelândia) e dali seguia para o Largo da Carioca, onde jorrava por 16 bicas, formando um verdadeiro “pântano” ao redor. A solução foi abrir uma vala para escoamento, que seguia até a praia. Aos poucos, casas construídas nas margens dessa vala deram origem à rua da Vala, hoje conhecida como Uruguaiana.
Como o sistema de captação era precário e exigia reparos constantes, foi substituído por um novo aqueduto, que ligava diretamente o Morro do Desterro ao de Santo Antônio. A construção dos Arcos da Carioca (os atuais Arcos da Lapa) foi iniciada em 1744 e concluída em 1750.
Além de água para uso das famílias, o chafariz da Carioca possuía tanques para lavagem de roupas e bebedouro para cavalos. Ele permaneceu no largo até 1830, quando foi demolido e substituído por um de madeira, com quarenta torneiras e capaz de atender a um número maior de pessoas – mas também este foi substituído, apenas quatro anos depois, por uma construção em pedra.
Com o crescimento da cidade, novos chafarizes precisaram ser construídos. Primeiro, a água foi levada até o Terreiro do Paço (hoje Praça Quinze) por meio de um cano ligado diretamente ao chafariz da Carioca. Com isso, surgiu mais uma rua na cidade: a rua do Cano (atual Sete de Setembro). A partir daí, uma série de chafarizes foi construída entre meados do século XVIII e final do século XIX, inclusive na Zona Norte, por meio da canalização das águas do rio Maracanã e do rio Comprido. Era um serviço que dava popularidade aos governantes e tinha grande valor político.
Dois grupos tiravam sua renda diretamente dos chafarizes: os aguadeiros e as lavadeiras – ou seus donos, pois muitos deles eram escravos “de ganho”. Osaguadeiros eram tipos bastante populares. Carregavam água sobre a cabeça em barris pequenos, ou levavam grandes barris e pipas em carrinhos puxados por escravos ou por um burro. A lavagem de roupa, por sua vez, tornou-se uma verdadeira indústria, como descreve o pintor francês Debret: “É de 1816 que data a inovação, no Rio, da indústria da lavagem de roupa. Essa época coincide também com a chegada de inúmeros estrangeiros à capital (...). A indústria importada da Europa tornou-se uma fonte de recursos para algumas famílias brasileiras da classe média; assim, por exemplo, [para] a viúva de um funcionário com vários filhos, cuja módica pensão não basta; assim [para] a mulata viúva de um artífice, que não pode manter seu estabelecimento com operários pouco habilidosos; a solteirona etc.”. Era grande a movimentação de pessoas ao redor do Chafariz do Campo de Santana, também conhecido como Chafariz das Lavadeiras: em 1836 ele fornecia água para aproximadamente 2 mil lavadeiras.
A reunião de aguadeiros, criados, cocheiros, lavadeiras, vendedores de alimentos, carreteiros, mulas e cavalos fazia das fontes centros de grande animação popular. Disputas e brigas também eram comuns, por vezes obrigando a permanência de guardas no local, 24 horas por dia, de forma a organizar as filas por ordem de chegada.
E para onde ia a água depois de utilizada nas residências? Este era um problema a ser resolvido. A construção de uma rede de esgotos no Rio de Janeiro se iniciaria somente na segunda metade do século XIX. Antes disso oesgoto era retirado de cada casa de forma semelhante a como hoje é recolhido nosso lixo. Depositado em barris, o material era levado durante a noite e jogado no mar, à beira do cais, ou em fossas cavadas para despejo. Os homens que levavam à cabeça as vasilhas com os dejetos eram chamados de “tigres”,em função da sujeira que escorria dos barris e manchava suas roupas.
Em 1818, a falta de água viroucaso de calamidade pública, e várias nascentes situadas nos morros da cidade não podiam ser usadas por se acharem em chácaras particulares. Nova seca atingiu a cidade em 1833, e o governo regencial interveio determinando que os proprietários de poços e nascentes liberassem a coleta de água pela população. Muitos deles se rebelaram contra a intervenção do Estado e se recusaram a ceder sua água. Dez anos depois,diante de mais uma estiagem,os moradores da cidade chegaram a buscar água nos navios ancorados nos portos.
Surtos epidêmicos não raro coincidiam com os períodos de seca, aumentando a insatisfação geral. A imprensa denunciava o problema e reclamava soluções, pois o preço da água subia a um extremo intolerável. No ano de 1889, em um momento difícil para a cidade atingida pela seca, por um surto de febre amarela e por agitações políticas, o jovem engenheiro Paulo de Frontin publicou no Diário de Notícias umartigo que se tornaria famoso: prometia trazer à Corte entre 12 e 15 milhões de litros de água em seis dias caso o governo lhe providenciasse verba, mão de obra e infraestrutura necessárias. Uma semana depois de iniciadas as obras, as águas das cachoeiras do rio Tinguá, na Baixada Fluminense, chegaram à represa do Barrelão por meio de tubulações instaladas ao lado da Estrada de Ferro Rio do Ouro.
As obras para fornecimento de água encanada diretamente para as casas tiveram início na segunda metade do século XIX. Em 1876, a cidade contava com apenas 7.066 penas d’água (casas e propriedades com ligação direta), enquanto havia 47 chafarizes e 861 pilastras com torneiras e bicas nas esquinas e nas praças. Novas captações traziam água do rio do Ouro, na região de Nova Iguaçu, e de outros mananciais, e diversos reservatórios foram construídos. Mas a água encanada beneficiava apenas a população de maior renda.
A chegada do século XX não significou o fim dos chafarizes. Eles continuaram como a única fonte para a população de cortiços, favelas e regiões pobres da cidade. As aglomerações ao redor das bicas do subúrbio eram as mesmas dos tempos coloniais. No nascer do novo século, o chafariz do Largo da Carioca ainda era usado pelas famílias que moravam nos morros de Santo Antônio e do Castelo. “É para aí que um populacho, esmolambado e sujo, desce do morro de Santo Antônio (...) e vem de outro morro, o do Castelo, pela famosa Chácara da Floresta (...) Em Santo Antônio as mulheres trabalham muito. Lavam e engomam para fora por preços vis” – escreve o cronista Luís Edmundo (1880-1961). Também moradores do Morro da Providência, na região central da cidade, dependiam das bicas no seu dia a dia. “Noventa por cento das faveladas são lavadeiras (...). Duas vezes por semana descem o morro para apanhar e depois entregar a roupa. Dinheiro suado aquele. O suplício começa com a falta de água e vai até os ladrões de roupas (há quatro bicas d’água para uma população de 3 mil pessoas)”, publicou a Revista da Semana em agosto de 1957.
Se você passar por um chafariz preservado em meio ao caos urbano carioca, olhe para ele com carinho. Durante boa parte da história da cidade, milhares de pessoas beberam suas águas e dele tiraram seu sustento.
Soraya Almeidaé professora de geologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e diretora do documentário A água do Rio(2007).
Saiba mais - Bibliografia
LUÍS EDMUNDO. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
SANTA RITTA, José de. A Água do Rio – do Carioca ao Guandu.Rio de Janeiro: Synergia Editora, 2009.
CORRÊA, M. Magalhães. Terra Carioca – Fontes e Chafarizes. Coleção Memória. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1939.
Internet
A água do Rio.Documentário, 2007.
http://videolog.tv/580723
Água pra dar ou vender
Soraya Almeida