Águas proibidas

Vitor Marcos Gregório

  • Sete de setembro de 1867. Belém está em festa. Casas enfeitadas e grandes personalidades presentes. Gente vinda de todos os pontos da província do Grão-Pará exibe os melhores trajes em conversas animadas nas ruas. Entre os mais abastados, 800 convidados aguardam o início de uma apresentação de gala no melhor teatro da região. Missas solenes e procissões, gincanas e apresentações de bandas de música deixariam a capital do Pará movimentada por três dias. No começo da noite de 9 de setembro, uma magnífica queima de fogos enfeitou um dos maiores festejos da cidade. O motivo de tanta alegria vinha das águas: a navegação no Rio Amazonas seria finalmente aberta aos barcos das nações que mantinham relações amistosas com o Império. A região conheceria sua “idade de ouro” após décadas de estagnação. O comércio amazônico havia aumentado bastante desde 1853, mas agora, todos acreditavam, a economia atingiria um novo patamar.

    Os barcos de madeira movidos a vela, pequenas embarcações sem luxo com as quais alguns comerciantes faziam o “comércio de regatão”trocas de pequena monta realizadas em áreas distantes –, seriam substituídos por navios pomposos, das maiores companhias de navegação do mundo. Os políticos, as celebridades e os habitantes mais pobres que estiveram presentes aos festejos não tinham como prever que, na prática, o primeiro barco estrangeiro só navegaria pelas águas do grande rio em 1873, ostentando bandeira dinamarquesa e com finalidade mais científica do que comercial. Tampouco que eles teriam de esperar quase uma década até que uma companhia estrangeira – a inglesa TheAmazonSteamshipCompany – estivesse disposta a estabelecer linhas regulares, ainda assim em substituição à companhia de Irineu Evangelista de Souza (1813-1889), o barão de Mauá, já em dificuldades financeiras irremediáveis, e utilizando seus barcos e seus recursos. A abertura, portanto, estava revestida de esperanças. E isso, por si só, já justificaria os fogos de artifício que iluminaram o céu de Belém naquela noite.

    Essa vitória foi demorada e penosa. Não pode ser explicada exclusivamente pela assinatura imperial do Decreto 3.749, de 7 de dezembro de 1866, que oficializava a abertura do Amazonas e marcava a solenidade correspondente para o próximo feriado da Independência. Nem como fruto dos esforços de algum grupo ou personagem. Foi, sim, resultado de anos de negociações, de idas e vindas que muito nos dizem sobre o funcionamento do sistema político do Brasil imperial. Anos em que esteve em jogo a soberania brasileira sobre a maior floresta tropical do mundo, até hoje alvo de cobiça.

    Se atualmente o que atrai na região é a possibilidade de descobertas nas áreas da genética, da farmacologia e da biologia, no século XIX o que fascinava os empresários eram as oportunidades que os rios amazônicos ofereciam para o comércio internacional. Afinal, antes que o Canal do Panamá fosse inaugurado, em 1914, todo o comércio dos países cujos principais portos estavam no Oceano Pacífico – Venezuela, Colômbia, Peru e, principalmente, Bolívia – com os mercados europeus era feito contornando o Cabo Horn, no extremo sul do continente. Esta era uma rota cara e cheia de perigos que anulava a competitividade de seus produtos. Aquele que encontrasse uma solução para este problema receberia os dividendos da façanha em ouro e libras esterlinas, e seria reconhecido pelos povos em questão como verdadeiro salvador. Se as recompensas eram convidativas, a tarefa a ser empreendida não parecia tão complicada.

    Quem estivesse disposto a utilizar os caminhos fluviais amazônicos como rota comercial tinha que transpor um obstáculo, que iniciou a prática da Coroa portuguesa e foi conservada por muito tempo pelo governo brasileiro: a proibição da sua navegação por barcos estrangeiros. Tratava-se de uma medida defensiva. Seu objetivo era evitar a exploração dos recursos da floresta sem o pagamento de direitos e, mais importante, que fossem criadas colônias capazes de gerar reclamações territoriais no futuro. A vizinhança de regiões pertencentes a poderosas potências europeias – as Guianas Inglesa, Francesa e Holandesa – e o imperialismo cada vez mais ativo dos Estados Unidos eram o combustível para que esse temor ganhasse corpo e se transformasse em completa aversão a toda e qualquer presença estrangeira na região.

    Em 1826 ocorreu o primeiro atrito causado por esta política. Uma companhia – a AmazonSteamNavigationCompany – fora fundada em Nova York com a única finalidade de fazer comércio com o Peru, utilizando a navegação pelo Rio Amazonas. Por meio de consulta ao ministro brasileiro em Washington, Silvestre Rebello, seus barcos receberam permissão para navegar livremente até Belém. Lá chegando, deveriam descarregar suas mercadorias, e só então seguir viagem para o Peru. Uma vez no Pará, o comandante da embarcação, que era filho de um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, quis seguir viagem com o barco carregado. Foi impedido com ameaça, inclusive, do uso de força. Teve que retornar a Nova York, onde a companhia falira. Seus acionistas moveram ação judicial contra o governo brasileiro nas cortes daquele país. O Brasil foi condenado a pagar multa pelo prejuízo que causara à companhia norte-americana, que só foi paga integralmente na década de 1840.

    Outra companhia de navegação também seria inviabilizada em 1841, em nome da manutenção de estrangeiros afastados da região. Um grupo de empresários nacionais, liderados pelo prussiano naturalizado brasileiro Diogo Sturz, havia conseguido do governo provincial paraense incentivos para a manutenção de linhas de vapores no Rio Amazonas. No Parlamento, seu projeto foi aprovado pelos deputados em votação apertada, principalmente devido às acusações de que Sturz, por ser estrangeiro de nascimento, atrairia para a região interesses que deveriam ser evitados. No Senado, este argumento acabou prevalecendo, e a companhia se desfez antes mesmo de entrar em operação.

    A questão se tornaria prioritária a partir de 1850, quando o Império adotou como estratégia oficial a concessão aos países vizinhos do direito de navegação em rios brasileiros mediante a fixação das fronteiras, como parte de uma política externa mais ampla, iniciada naquele ano pelo novo ministro dos Negócios Estrangeiros, o visconde do Uruguai (1808-1866). A medida trouxe alguns problemas para o governo: as autoridades bolivianas, por exemplo, se recusaram a aceitar esta política, demonstrando em certos momentos extrema agressividade em relação às tentativas brasileiras.

    Além disso, as pressões para a abertura do Rio Amazonas aumentaram consideravelmente nos Estados Unidos, graças, principalmente, à intensa campanha feita na imprensa por Mathew Fontaine Maury, ex-tenente da Armada estadunidense, e junto a políticos influentes. Autor de diversos artigos que apresentavam a Amazônia como fonte de riquezas incalculáveis, um verdadeiro eldorado cuja geografia ansiava pela presença de povos industriosos que pudessem explorá-lo, Maury foi incansável na tarefa de chamar a atenção para a necessidade de o governo brasileiro permitir que empresários americanos explorassem a região. Ele chegou a afirmar que se uma tora de madeira fosse colocada na água na foz do Rio Amazonas, ela seguiria naturalmente para Nova York, graças ao regime das águas e da natureza. Às cobranças que logo passariam a ser feitas por Washington seguiram-se políticas agressivas dos países próximos ao Amazonas. O governo boliviano, por exemplo, chegou a oferecer uma recompensa em dinheiro para quem conseguisse chegar ao seu território através de rios brasileiros, contrariando frontalmente a política brasileira de clausura da região amazônica. O temor de que fosse empreendida uma invasão armada no Brasil tornava-se mais forte a cada dia.

    A saída foi contratar com Irineu Evangelista de Souza, em 30 de agosto de 1852, a criação de uma companhia nacional para a navegação a vapor no Rio Amazonas, numa tentativa de esvaziar os argumentos estrangeiros de que seria “um crime contra a humanidade” manter fechado o acesso às suas águas e não aproveitá-las de modo algum. Em pouco tempo a empresa se encontrava em franca prosperidade, e seu proprietário já se tornara alvo de acusações que o ligavam a um enriquecimento ilícito, conseguido à custa do pagamento de subsídios altíssimos por parte do governo central.  

    O sucesso do empresário e a diminuição das pressões internacionais – devida, em grande parte, à Guerra de Secessão (1861-1865), que desviou a atenção dos Estados Unidos do “eldorado” amazônico – contribuíram para uma mudança de mentalidade na década de 1860. Uma onda liberal invadira a Câmara dos Deputados, que tinha passado a cobrar, principalmente por meio dos discursos inflamados do deputado alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875), a abertura do Rio Amazonas a todas as nações amigas. Segundo essa corrente, não era justo que um único empresário se tornasse senhor de todas as riquezas amazônicas, em prejuízo da população da região. Apenas a livre concorrência seria capaz de garantir que a navegação fosse realizada com os menores preços e as melhores condições possíveis. Ir contra esta lei básica do capitalismo, entendiam, seria uma temeridade, que deveria ser evitada a qualquer custo.

    Mesmo assim, o governo central não aceitou prontamente a ideia. Antes que a decisão de assinar o decreto de 1866 fosse tomada, foram realizadas consultas às autoridades locais do Pará e do Amazonas, ao Conselho de Estado e mesmo a Irineu Evangelista de Souza. Todos concordaram que não havia mais razão para os temores e que era chegado o momento de mostrar ao mundo as belezas e as reais potencialidades da floresta. Como escreveria um autor anônimo, no contexto dos festejos de 1867, aquela era a hora em que, finalmente, todos os habitantes da Amazônia poderiam abrir seus braços aos estrangeiros e exclamar, cheios de contentamento: “Bem vindos sejam os hóspedes!/ O rio é franco, entrae!/ O collossal mystério/ Abriu-se, admirae!”.

     

    Vitor Marcos Gregórioé autor de Uma face de Jano – A navegação do Rio Amazonas e a formação do Estado brasileiro (1838-1867) (Annablume, 2012).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. O vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatística, produções, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.

    MEDEIROS, Fernando Sabóia de. A liberdade de navegação do Amazonas (relações entre o Império e os Estados Unidos da América). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.

    SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O Império e as repúblicas do Pacífico – as relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia (1822-1889). Curitiba: Editora UFPR, 2002.