Alegoria do presente

Ana Heloisa Molina

  • Uma mulher de braços abertos acolhe, com uma luz irradiante, todos os personagens dispostos em semicírculo ao seu redor. Com traços impressionistas, a figura encarna a Solidariedade, tema central do quadro feito especialmente para marcar a reinauguração da nova casa da Biblioteca Nacional, no começo do século XX. A obra de Eliseu Visconti, no entanto, representa mais do que a expressão do talento artístico de seu autor, um dos expoentes da belle époque brasileira, mas revela, entre tintas e temas, o cenário social e político do período em que o país se deparava com o novo cenário da modernidade.  

     Eliseu D’Angelo Visconti (1866-1944), italiano de nascimento, mudou-se ainda criança com a família para o Rio de Janeiro, onde moraria até o fim da vida. Ficou mais conhecido por suas pinturas, especialmente a realizada no pano de boca para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro entre 1905 a 1909. Mas tem uma vasta produção artística dedicada ao desenho, à propaganda e à cerâmica, entre outros. Os dois temas desenvolvidos por Visconti, “O progresso” e “Solidariedade humana”, foram pintados sobre telas, depois coladas à parede da Biblioteca Nacional, o que proporcionava, pelo suporte escolhido, uma concepção adequada à técnica e ao uso dos materiais, assim como às dimensões em integração com o ambiente.

    Essas duas importantes obras decorativas foram feitas sob encomenda para a reinauguração da instituição, em 1910. Organizada a partir da Real Biblioteca Portuguesa, que chegou ao Rio de Janeiro junto com a Corte de Lisboa, em 1810, a Biblioteca Nacional ganhou este nome em 1876. Cerca de trinta anos depois, foi lançada, na recém-aberta Avenida Central, a pedra fundamental do atual edifício-sede, oficialmente inaugurado em 29 de outubro de 1910. Seu lugar era estratégico no projeto de uma capital republicana moderna que se abria para o novo século XX: a Biblioteca Nacional ficava alinhada com a Academia de Belas Artes e em diagonal com o Theatro Municipal. Nesse triângulo, como um coração de grande cidade, transforma-se, simbolicamente, no espaço da cultura e das artes pela presença arquitetônica de seus prédios e pela simbologia/ideologia de seu acervo e propósitos.

    O novo prédio foi erguido graças aos esforços de alguns de seus diretores, como José Alexandre Teixeira de Melo (cujo mandato durou de 1895 a 1900) e Manuel Cícero Peregrino da Silva (cujo mandato se estendeu de 1900 a 1924). Apresenta estilo arquitetônico eclético, combinando elementos neoclássicos e da art nouveau, movimento artístico europeu que apostava na utilização de muitos elementos decorativos. O interior comporta painéis alegóricos relativos a temas ligados à civilização, à sociedade e à cultura, como “A memória” e “A reflexão”, “A imaginação” e “A observação”, “O progresso” e “A solidariedade humana”, “A inteligência” e “O estudo”, produzidos por artistas como Eliseu Visconti, Henrique Bernardelli, Modesto Brocos e Rodolfo Amoedo. As esculturas estiveram a cargo de Correia Lima e Rodolfo Bernardelli, artistas renomados nessa arte.

  • Visconti imprimiu em suas obras muito do que aprendera nas escolas de Belas Artes do período: primeiro na Academia Imperial de Belas Artes, onde estudou com professores os mais importantes pintores da época, como Vítor Meireles, Henrique Bernadelli e Rodolfo Amoedo, e depois na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, na França, onde se dedicou à arte decorativa, e entre 1893 e 1897, na École Guérin, dirigida por Eugène Grasset.

    Nas obras expostas na Biblioteca Nacional, Visconti tratou de seus temas por meio de alegorias. Alegoria significa, literalmente, “dizer o outro”, e costuma ser entendida como uma representação concreta de uma idéia abstrata. A Justiça, por exemplo, normalmente aparece como uma mulher de olhos vendados, com uma espada na mão, sustentando uma balança. Cada um desses elementos tem um significado: os olhos vendados, a igualdade de todos perante a lei; a espada, a força de impor as decisões; a balança, o peso dos atos colocados em julgamento. Assim, cada um dos elementos alegóricos quer dizer alguma outra coisa além dele, e não aquilo que aparenta à primeira vista.

    A temática da alegoria sobre a “Solidariedade humana” tem o esboço que parece mostrar a figura de uma mulher com os braços abertos, em tons claros, do branco ao amarelo. A composição é um triângulo, ou pirâmide, que tem por base uma figura feminina que segura uma esfera de luz e estende a mão para a figura de um homem.

    As linhas se sobrepõem no desenho de outras duas figuras: uma mulher com coroas de louros a cingir a figura feminina e um homem que brande a espada e a balança, símbolos da Justiça e, ao mesmo tempo, representantes das idéias de lei e ordem. Preenchendo e acompanhando as linhas laterais, quatro rostos de cada lado, com expressões jovens e senis, portando instrumentos como a lira e bastões.

  • No vértice do triângulo ou pirâmide situa-se uma figura andrógina que estende os braços a todos e cujos cabelos longos e loiros criam a sensação de luz a se espraiar e a aquecer, como o sol e toda a carga simbólica agregada à sua imagem. No fundo, delineiam-se sutilmente torres de igrejas e construções ao estilo romano. Provavelmente, indicam que a solidariedade está fundamentada na religiosidade, da qual decorreriam também a caridade e o amor ao próximo, assim como as referências romanas indicariam a civilização, a cultura e a organização.

    As cores utilizadas são harmônicas. A parte superior, em linhas de contrastes, tem tons de rosa, salmão, azul e verde. Essa escolha cria a sensação de irradiação relativamente à figura central. A técnica usada é o que podemos chamar de impressionista, mas tem a preocupação de delinear as figuras humanas, conferindo volume e massa aos corpos.

    A proposta do título e sua interpretação foram adequadas na medida em que a “solidariedade humana” — assim como a “instrução” — indica o acolhimento da diversidade de tipos humanos em uma finalidade comum: a transformação do homem.

    Uma explicação possível para a tela é que em cada um dos personagens está representado um signo do zodíaco. Cabe lembrar que o zodíaco, além de ser um símbolo em si, é um conjunto de metáforas cósmicas, fisiológicas e psicológicas. O círculo onde os signos estão dispostos, por não ter início nem fim e ser desprovido de distinção ou divisão, simboliza a eternidade ou os perpétuos reinícios. Dessa maneira, pode-se dizer que a solidariedade humana e, por conseguinte, a instrução, só teriam sentido se estendidas a todos, homens e mulheres, independentemente de seu grau evolutivo, pois o objetivo intrínseco de ambas é o auxílio mútuo apoiado na reciprocidade entre as pessoas.

  • Não há traços especificadamente brasileiros nas figuras desenhadas, o que confere à obra um aspecto universal ao mostrar linhas clássicas, minimamente legíveis ao espectador que freqüenta aquele espaço. Assim, percebe-se que, se por um lado o quadro estava restrito à burguesia no que toca à estética da obra, intencionalmente dirigida ao gosto dessa parcela social, ideológica e simbolicamente ele acena para a abrangência de todos, indistintamente. É nisso que se centra a sua temática.

    A posição apolítica de Eliseu Visconti, proclamada por vários críticos, na verdade mascara uma atitude verdadeiramente política, na medida em que, sob uma ação altamente pessoal e seletiva, ele se propõe, em seus trabalhos, a interpretação social de um momento.

     Esse viés essencialmente social transparece em sua totalidade de composição, cores e temas nos quadros “O progresso” e “Solidariedade humana”. Encomendados para figurarem em um espaço público dotado idealmente de todas as virtudes e valores relativos à elevação humana — no interior da Biblioteca Nacional —, esses quadros registram os pressupostos filosóficos da formação profundamente humanística do pintor.

    Alguns críticos poderiam apontar como cerceadora a relação entre o artista e as instituições oficiais que encomendam as obras. Mas parece clara, neste caso, a liberdade usufruída pelos pintores no desenvolvimento dos temas. Afinal, da mesma forma que Visconti utilizava técnicas mais arrojadas, outros pintores contratados, como Bernardelli, lançavam mão de um repertório mais “tradicional”, como nas obras “O domínio do homem sobre as forças da natureza” e “A luta pela liberdade”, e nem por isso sofreram intervenções da direção ou deixaram de ter suas obras expostas lado a lado.

  • O caso do quadro “Solidariedade humana”, depois denominado “Instrução”, também é significativo. Tem ao centro a figura alegórica da Solidariedade, que abre os braços e acolhe todos os personagens, dispostos em semicírculo ao seu redor. O tratamento dado às cores evoca a idéia de radiação, envolvimento e transmutação. A técnica impressionista dilui as linhas entre as figuras, dando destaque, simultaneamente, ao todo e a cada um; evocando a idéia de agregação e esforço individual. Não era essa a idéia básica, o pano de fundo, das correntes ideológicas socialistas naquele momento? E isso não causaria nos freqüentadores da Biblioteca Nacional uma impressão primeira de estranhamento e depois a contemplação mais detida, seguida da reflexão?

    O aspecto etéreo das alegorias propõe o olhar para o passado e o seu contraste com o presente. Para Visconti, havia a possibilidade de um presente encarnado em um espírito de progresso e solidariedade/instrução, independentemente do movimento vertiginoso dos mecanismos da máquina. Resquícios de idéias positivistas? Possivelmente. Agregado a um fator adicional: a junção do belo e da reflexão para a compreensão das contradições sociais.

    Ao eleger a “multidão” presente nos quadros modernos — elemento identificador da modernidade nas grandes cidades e experiência humana típica da vida moderna —, Visconti propôs a celebração do espírito frente ao avanço incessante da máquina do progresso. Ao mesmo tempo, indicou, nessa mesma multidão, a condição individual e humana para a elevação espiritual.

    Visconti projetou imagens de solidariedade e progresso de maneira a compor mensagens de otimismo e suave esperança, mesmo em meio a névoas e turbulências, como forma de indicar para as pessoas da época – e também para a posteridade – o momento que vivia, a modernidade e a sensibilidade que impregnavam seu olhar.

    Ana Heloísa Molina é professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina e autora do artigo “O pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro: uma possibilidade de leitura de referências visuais do início do século XX”, In: LIMOLI, Loredana e MENDONÇA, Ana Paula F. (orgs.) Nas Fronteiras da Linguagem. Leitura e produção de sentido, Londrina, 2006.