Paris, conhecida como cidade luz, por vezes acende outro tipo de clarão. Luz difusa, luz entre grades, faixas tímidas de luz correspondem melhor ao vocabulário de uma bela exposição, que acaba de fechar no Musée Carnavalet, instituição em geral dedicada a consagrar a capital dos franceses, quase um símbolo das urbes modernas. Espetacular por definição e por ação das reformas urbanas, centro dos eventos que marcam o início da modernidade ocidental e suas vanguardas, Paris sempre “deu muito o que falar”. Assim, se não adianta correr para ver a mostra, sobra tempo para adquirir o livro de fotos homônimo: L’impossible photographie. Prisons.
O conjunto de imagens faz de um tempo longo, composto de realidades diversas, um argumento homogêneo, difícil de descrever. Tudo lembra o relato de Walter Benjamin, Experiência e pobreza (1933), em que o autor anotou o retorno dos soldados da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) no mais completo silêncio. É conhecida a passagem do livro de Joseph Conrad, Coração das trevas (1902), em que o coronel Kurtz, perdido no meio da selva do Congo Belga e tendo abandonado os limites entre civilização e barbárie, e vice-versa, diz: “O horror ... o horror”. Também o filme “OenigmadeKasparHauser”, do cineasta Werner Herzog (1974), tem início com um adágio de Tomaso Albinoni, sob a imagem de um campo de feno ao vento e a frase: “Que horríveis barulhos são esses ao nosso redor; os sons do silêncio”.
Exemplos não faltam, e eles remetem a situações em que é melhor calar. E foi essa a aura que envolveu a exposição parisiense e seu livro. Tudo parece econômico e solene, à semelhança da arquitetura do encarceramento. O texto de Jean Gaurmy – Les incarcérés, de 1983 – que abre o livro, retoma a mesma percepção: “A realidade das prisões escapa à objetividade de uma câmera. Aqui se perdem as noções essenciais do efeito destrutivo do tempo (...). Não é que as imagens sejam falsas, mas elas permanecem incompletas, parciais, ilusórias”. Gaurmy convida o leitor a visitar uma história que não se conta, mas que se conforma como parte essencial (a despeito de escondida) da identidade da cidade. Ela desafia, também, a pensar sobre as próprias noções de liberdade, para uma sociedade que abre mão dela em nome de conceitos como a harmonia e o bem-estar. O livro recupera 100 anos de um universo carcerário que parece ser a face oculta do espaço expositivo, normalmente dedicado ao belo.
As prisões conformam, por definição, locais fechados: as grades, as camas rasas, os cobertores finos, as portas pesadas com suas janelas pequenas e os objetos que garantem confinamento, entre algemas, armas de todo tipo e correntes. Impactante é a foto em que um guarda observa o interior de uma cela, por meio de sua pequena janela, e carrega chaves pesadas em suas mãos. Não nos é mostrada a realidade que se abre dentro do cubículo, mas o aparato silencioso que recobre a foto permite imaginar o espetáculo que se desenvolve em seu interior.
Prisioneiros também são captados trabalhando, numa época em que as teorias acreditavam que era preciso “regenerar” os criminosos por meio da ocupação produtiva, que os devolveria ao seio da civilização. Ao mesmo tempo, ao lado de modelos eugênicos, que vinculavam a saúde dos povos a certas medidas de saneamento físico e moral, ganhavam força concepções inspiradas na antropologia criminal do médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), que visavam à prevenção e à erradicação da contravenção a partir da descoberta de seus elementos mais racionais e externos: estigmas e atavismos (sinais externos e fisionômicos que remetiam a perversões e vícios internos). O objetivo era prender o criminoso antes que ele consumasse o ato, e, para tal, quadros sinópticos, portando estigmas dos criminosos, funcionavam como mapas. Formatos de nariz, olhos e orelhas, sinais solitários nas palmas das mãos, eram parte dessa engenharia do controle, compondo uma espécie de estética do crime. Fotos mostram prisioneiros tendo seus cérebros medidos, os órgãos avaliados: tudo em nome da mensuração determinista do crime e da demonstração da correlação entre traços físicos e degeneração.
O fato é que a fotografia entrou rápido nos presídios, como uma técnica de identificação. O daguerreótipo (técnica fotográfica que começava a permitir a multiplicação de paisagens e retratos se transformaria na coqueluche das elites, carentes de símbolos de status – logo revelaria também potencialidades para a classificação da população carcerária. Uma nova forma de humilhação se estabelecia então, prometendo o oposto das cartes de visite, os famosos retratos feitos às dúzias e oferecidos pelos elegantes estúdios da Rua do Ouvidor. Se, como mostra a escritora norte-americana Susan Sontag (1933-2004) em Sobre a fotografia, na maioria das vezes as fotografias entregam mentiras, como rostos mais jovens ou famílias sempre harmoniosas, no caso desta exposição elas investem no real: tornam a criminalidade visível para melhor controlá-la. Verdadeiras “câmaras de tortura” – por conta do tempo longo e da posição imóvel que exigiam de “seus clientes” –, as sessões de fotografia convertiam criminosos rebeldes em corpos passivos e, ademais, classificáveis. No entanto, e a despeito da técnica restritiva, não poucas vezes os prisioneiros parecem driblar a situação projetando sua imagem: vestem as melhores roupas, fazem-se fotografar com objetos de predileção ou simplesmente encaram de maneira desafiadora a lente do fotógrafo. Tudo em silêncio.
A história carcerária é longa e se mistura com o processo de urbanização, que se adensa no século XIX. O espetáculo da multidão parece clamar por práticas de intervenção, como a de debelar a criminalidade e isolá-la. Foi o filósofo Michel Foucault (1926-1984) quem revolucionou a compreensão da lógica das prisões, quando em Vigiar e punir (1975) estudou mecanismos presentes nesses novos sistemas penais. Tomando o invento do filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832)–o Panóptico de 1785, uma torre central disposta no presídio e que permitia a sensação de autovigilância) – como modelo, Foucault mostrou como a engenhoca permitia difundir a sensação de que se era olhado, sem jamais saber de onde e por quem.
No Brasil, a situação era ainda mais complexa, por conta do trabalho escravo que se espalhava por todo o território e não poucas vezes sinalizava descontrole. Desde a rebelião no Haiti (1791-1804), proprietários de escravos temiam pela “onda negra” e faziam de tudo para não serem arrastados por ela. Por outro lado, com as teorias raciais entrando em voga a partir dos anos 1870, a condenação da mestiçagem e a “certeza” das desigualdades biológicas fizeram com que o tema ganhasse a alçada do poder público, que passava a legislar sobre a situação prisional.
Era necessária uma constante atualização da prática, alimentada pelas experiências realizadas nas prisões europeias e norte-americanas. Afinal, além da polêmica questão das motivações do crime, andavam em pauta a punição e a estruturação das prisões. Nesse momento, dois sistemas ditavam moda: o de Filadélfia e o de Auburn. O primeiro, implantado nesta cidade do estado de Nova York em 1818, priorizava o isolamento completo do preso e o mais absoluto silêncio, que levariam à reflexão e ao arrependimento. Já o segundo prescrevia o isolamento noturno, com trabalho coletivo e diurno, igualmente silencioso.
No Brasil, as penitenciárias surgem debatendo justamente o tema da adequação carcerária. Nossa história de vigilância do corpo social foi, de certa forma, inaugurada em 1850, com a criação da Casa de Correção da Corte, que nascia obedecendo ao modelo do Panóptico. Buscava-se conciliar trabalho com meditação e muita disciplina, e o Código Criminal de 1890 seria adequado a esse cenário ainda desconhecido. Afinal, tudo, ou muita coisa, era novidade: o final da escravidão em 1888, o começo da República em 1889, assim como as esperanças da virada de século. Segundo Fernando Salla – autor de As prisões em São Paulo: 1822 a 1940 –, o novo código representava um amadurecimento em relação ao antigo, de 1830. Além de suprimir os artigos relativos à escravidão, abolia as penas de galés (quando escravos eram obrigados a trabalhar nas embarcações, sob a força de castigos corporais), eliminava o caráter perpétuo das penas e determinava o tempo máximo de 30 anos para seu cumprimento. Fixou-se também o modelo irlandês – uma espécie de combinação dos dois sistemas prisionais dominantes – como padrão.
Mas o código já nasceu atrasado, e às críticas a ele endereçadas somavam-se outras, que faziam parte do coro dos descontentes com a própria República, logo descrita como “aquela que não foi”. O desafio era pensar em como lidar com ideais de igualdade e livre-arbítrio numa sociedade entendida como desigual e pautada por “diferenças raciais”, àquela altura consideradas normativas e essenciais. A “modernidade científica” era dada pela antropologia criminal, que rapidamente ganhou o aval de juristas, médicos e penitenciaristas, que preferiam a certeza de um receituário científico à “subjetividade” dos modelos voluntaristas da cidadania e da igualdade.
De alguma maneira, perpetuava-se a história de um duplo modelo de cativeiro: escravidão e encarceramento, e agora mestiçagem, degeneração e reclusão. Se no Brasil não existe ainda obra fotográfica que trate exclusivamente das prisões, vale a pena destacar uma pequena mas significativa coleção, que faz parte do acervo da Biblioteca Nacional, chamada “Galeria dos condenados” [Ver “De frente para o crime”, RHBN nº 49]. O filão foi divulgado pelo historiador Manolo Florentino e vem sendo trabalhado por pesquisadores como Durval de Souza Filho (autor de Ensaios sobre a escravidão), Sandra Koutsoukos (Negros no estúdio de fotografia) e Magali Engels. São 320 retratos tirados na Casa de Correção da Corte (318 homens e duas mulheres), que correspondem à primeira experiência fotográfica no Brasil a serviço da identificação e do encarceramento. Acomodadas em dois álbuns – um deles mais vistoso, com arabescos dourados nas bordas e o brasão do Império no centro da capa –, a cada página se destaca um retrato individual do prisioneiro em plano americano – da cintura para cima –, e, abaixo, o nome, a entrada, o registro, o crime cometido, a pena, a sentença e, em alguns casos, a notícia da morte, a data da soltura ou do perdão do imperador, que tinha por hábito – e jogo de imagem – comutar penas em ocasiões especiais.
A primeira “galeria dos vagabundos” foi feita em Albany, no estado de Nova York. Mas a ideia se espalhou, chegando a Moscou em 1867 e a Londres em 1870. Segundo os profissionais, condenados eram modelos fáceis: nunca reclamavam, jamais pediam o negativo nem se mostravam insatisfeitos, demandando uma segunda pose. Eram “objetos de ciência” e, portanto, a ela não reagiam.
Mas não é bem essa a situação presente nas fotos tiradas no Rio de Janeiro entre 1859 a 1878. É certo que todos os documentos trazem os mesmos dados classificatórios, mas a variedade de expressões desmente o arbítrio exclusivo do fotógrafo. Conhece-se ainda pouco sobre esse verdadeiro laboratório – com emulsões, bacias, balanças, papéis albuminados e outros instrumentos de precisão – criado na penitenciária carioca. No entanto, nota-se como a técnica, que era pouca, vai melhorando, na mesma proporção em que os fotografados ganham certa individualidade. Benedito Criolo, por exemplo, cruza os braços, olha irado para a lente, mostra suas roupas puídas e deixa entrever a atadura que traz em um dos braços. Definitivamente, não foi instruído para a ação que estava prestes a desempenhar e parecia sofrer com o ferimento – “tétano espontâneo”, diz o documento – que o levaria à morte.
Diferentemente de Benedito, outros prisioneiros passam a se arrumar mais: Basílio Pires de Sá, por exemplo, posa em 1862 com uniforme aprumado e cabelo ajeitado para sair bem na foto. Amado Mina, pelas escarificações (marcas rituais) que traz no rosto e a maneira como cuida da barba, parece muçulmano e de origem animista. Isabel Jacintha, que dera entrada na prisão em 1859 e fora fotografada em 1872, apresenta-se com pano da costa enrolado ao corpo, cabelo ralo, mas arrumado, e mostra muita dignidade no olhar. Após 33 anos, Isabel foi solta. Liberta até mesmo de sua condição escrava, mas já doente e idosa, pouco usufruiu do pecúlio que juntara com seu trabalho na prisão. José Sebastião Rosa, conhecido no Rio de Janeiro como feiticeiro Juca Rosa e obrigado a cumprir pena de seis anos por estelionato, veste roupa muito bem cuidada. Famoso por sua clientela feminina, Rosa prestava todo tipo de serviço: quebrava feitiços, curava quebrantos e maus-olhados. Há um único preso que posa de óculos: José Candido de Pontes Visgueiro, o bacharel da turma, que se adequa à situação como se estivesse em um charmoso ateliê de fotos. São inúmeros pequenos sinais, indícios de individualidades roubadas por um constrangedor silêncio, que fala por meio de expressões, reações, roupas ou ataduras.
É interessante pensar que o álbum pertenceu à família imperial. Quem sabe por meio dele D. Pedro II comprovava sua fama de “Magnânino”: um grande comutador de penas. De 1850 a 1875, foram transformadas 195 penas de morte de escravos em prisões perpétuas ou perpétuas com galés, e perdoados alguns poucos criminosos. Isso sem esquecer que, após 1875, as condenações por pena de morte se tornaram raras, tendo o imperador afirmado em seu diário de 1861 que “não era partidário” delas e que usaria o Poder Moderador para comutá-las sempre que “as circunstâncias o permitissem”. Se juntarmos dois mais dois, o álbum seria, então, um tipo de troféu, um símbolo da benignidade do soberano. Mas D. Pedro II fez mais: ao que tudo indica, a “Galeria” seguiu com ele até a exposição de Filadélfia de 1876, quando, além de ser o primeiro monarca a pisar em solo norte-americano, abriu a mostra universal junto com o presidente Ulysses Grant. Nosso álbum figuraria entre os produtos da terra, talvez como prova de que a civilidade é possível também nos trópicos.
Antes que a fotografia aprisionasse de vez os encarcerados, com seus números, marcas e convenções, e que o escrevente da prefeitura de Paris Alphonse Bertillon (1853-1914) tivesse inventado um meio científico de identificação dos presos reincidentes – a bertillonage, que correspondia a uma ficha contendo medidas –, até mesmo nos tempos da escravidão, as fotos dos prisioneiros possibilitavam ver alguns registros de individualidade por parte dos apenados, mesmo que nas frestas deixadas pela técnica. No caso da prisão correcional do Rio de Janeiro, a situação era ainda mais paradoxal. Ao que tudo indica, o fotógrafo da “galeria dos condenados” era ele próprio um prisioneiro da divisão criminal. Não era um galé, daqueles então remetidos a Fernando de Noronha, até porque foi libertado após anos de reclusão. Se saiu mundo afora fotografando e exercendo o ofício que aprendeu na prisão, não há como saber. O fato é que adquiriu o direito ao barulho da multidão, com o qual passou a conviver desde que ganhou a liberdade. Deve ter incorporado, porém, a experiência sensível do silêncio das prisões e dos fotografados. Silêncio que se traduzia por meio de situações inesperadas: pelo som das expressões faciais, pelo barulho das vestes, através do ruído dos pequenos atos. Pequenas falcatruas.
Lilia Moritz Schwarczé professora da USP e autora de Espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Saiba Mais - Bibliografia
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Além do enquadramento
Lilia Moritz Schwarcz