Amadorismo que revela

Adriana Maria Martins Pereira

  • “Ah! Não há dúvida de que vocês entraram no domínio da verdadeira arte ouviu muitas vezes dizer quem escreve estas linhas; e assim de boca em boca, o sucesso foi se espalhando pela cidade”. Com estas palavras começa o artigo publicado na revista Renascença, em julho de 1904, sobre a primeira exposição do Photo-Club do Rio de Janeiro. O evidente entusiasmo do autor tinha motivo: o clube era algo inédito na cidade e no país. Numa galeria de arte chamada Cambiasso, situada na rua do Ouvidor, surgia a primeira mostra dedicada exclusivamente a fotografias. E o grupo responsável por ela era liderado por fotógrafos amadores.

    Era um período de novidades. A reforma urbana da capital federal, empreendida pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906), e que teve como um dos principais condutores o prefeito Pereira Passos, avançava em meio a um clima de euforia e repulsa. Tendo a fisionomia de parte do Rio de Janeiro alterada, o Rio “civilizava-se”, nos dizeres da imprensa que celebrava, aos olhos da elite, a chegada da modernização urbana. Paris, a capital francesa, seria uma de nossas referências principais para a moda, a arquitetura e um jeito de habitar e ver a cidade. Conflituosamente, estávamos impregnados pelas ideias da “civilização”, sobretudo europeia. E com aqueles fotógrafos amadores não seria diferente. Em meio a toda essa movimentação na cidade, eles tentaram transplantar, para nossas paragens tropicais, o que se discutia no Photo-Club de Paris. Fundado em fins da década de 1880, ele era um dos principais clubes europeus de fotografia, constituído por amadores que propunham normas estritas para a produção de suas obras “artísticas”.

    Com a temática fervilhando em revistas ilustradas nacionais e nas muitas publicações estrangeiras que aqui circulavam, era de bom-tom saber fotografar ou pelo menos conhecer o que se falava no momento. Os fundadores do Photo-Club do Rio de Janeiro viviam nesse mundo. Eram todos homens cultos e refinados que acompanhavam o que ocorria lá fora; alguns vindos do mundo das artes ou próximos a ele.  O presidente era o advogado e colecionador Alfredo Ferreira Laje (1865-1944), mas havia músicos como Antonio Barrozo Netto (1881-1941), compositor e professor do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, e outros como Fernando Guerra Duval (?-1950), um dos amadores mais engajados.

    Naquele momento, o Brasil já contava com inúmeros praticantes da fotografia, mesmo sem existirem associações como na Europa e nos Estados Unidos. São aqueles que “vivem no segredo da nova arte” e “se dedicam a ela com amor e que dela tudo o sabem”, como descreve a primeira reportagem sobre o clube – também publicada na revista Renascença, em 1904. Alberto de Sampaio (1870-1931), um advogado que residia em Petrópolis e fotografava desde 1888, era um desses amadores. Tinha muitos anos de experiência quando o Photo-Club surgiu no Rio de Janeiro e, embora não se saiba de sua adesão, ligou-se expressivamente às atividades do grupo.

    Na verdade, Alberto de Sampaio foi um dos poucos amadores a publicar imagem de sua autoria na Renascença, além dos membros efetivos do clube. A cena escolhida, uma abstração da natureza de Petrópolis, nos mostra uma solitária árvore ao lado do rio e que, pela sua importância, aparece numa página inteira na edição de maio de 1907. Era uma escolha representativa de sua produção e dos modelos de fotografia difundidos na época por muitos daqueles clubes. De maneira geral, o discurso desses grupos aproximava a fotografia da pintura, na temática e nos efeitos visuais. Por trás disso, no entanto, havia um problema crucial: os amadores criticavam grandes panoramas, vistas do alto de morros e o excesso de nitidez encontrado em muitas cenas dos profissionais. Alegavam que esses eram apenas registros documentais, e buscavam se distinguir valorizando a paisagem comum (em geral, a cidade ficava de fora) e um ponto de vista que revelasse certo espaço de intimidade, próximo ao observador. A atmosfera subjetiva completava-se com o recurso do fora de foco, um meio de aproximar o olhar fotográfico do processo fisiológico da visão.

    A imagem da árvore de Alberto de Sampaio carrega parte desses pressupostos. Num espaço delimitado, estão ressaltados os elementos da topografia – terra, água e vegetação – que, unificados, se integram visualmente pela ação da luz. Fica de lado a definição precisa dos contornos, pois aqui se pretende evidenciar que a natureza é um lugar acolhedor, onde tudo se articula. Cena trivial, compreendida não só pelos amadores: certos profissionais iriam compartilhar, em algumas de suas obras, essas mesmas ideias.

    Estamos em 1907, na terceira exposição do Photo-Club, e o prestígio da mostra só aumenta. Por isso, agora o endereço é outro: a sede do Museu Commercial, na recém-inaugurada Avenida Central. A Renascença e suas matérias sobre o Photo-Club do Rio de Janeiro funcionam como uma extensão do grupo e Alberto de Sampaio continua atento a tudo o que acontece. E por ter olhar treinado e interesses variados, dialoga com outras vertentes. É o caso da paisagem, que não é seu maior interesse, mas na qual ele faz referência a modelos conhecidos, num tipo de exercício que o aproxima da produção dos profissionais. Às vezes busca o ponto singular, como no registro da praia do Arpoador. Nessa tomada, o primeiro plano é formado pela pedra, já desaparecida, que compõe o conjunto com a cadeia de montanhas do Morro Dois Irmãos e a Pedra da Gávea ao fundo. Inspiração das fotografias que valorizavam a estética de uma natureza poderosa, sublime, em que a figura humana é apenas referência para a grandiosidade do cenário, como muitas cenas do importante fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923).

    Em outras situações, Sampaio experimenta o que estava longe da cartilha dos grupos de amadores avançados como ele. Adquire a câmera Kodak, que se popularizou enormemente no período por não exigir do usuário grandes conhecimentos. No exterior, isso iria gerar polêmicas e debates: afinal, quem eram os verdadeiros fotógrafos amadores? Aqueles dos clubes ou os que simplesmente apertavam botão? Inúmeros artigos em revistas debatiam o problema da autodenominação: fotógrafos amadores “artistas”, de um lado, e os “kodakeres”, de outro, interessados na fotografia apenas como diversão. Tal polarização não ocorreu no Brasil, pois os dois grupos ainda eram pequenos.

    Mas o fato é que as câmeras Kodak eram muito apropriadas para serem usadas em instantâneos nas ruas. Alberto de Sampaio não perde a oportunidade e faz uso da sua na inauguração do Palácio Monroe em plena Avenida Central, em 1906. Registra o burburinho das pessoas, nessa festa que foi de grande impacto para a cidade. O amador, no entanto, deixa de lado os modernos edifícios da avenida, o espaço suntuoso que iria merecer cliques de Augusto Malta (1864-1957). Para Sampaio, o importante é a evolução dos desfiles, seu caráter cenográfico: no trecho escolhido, andaimes e tapumes estão à mostra, deixando entrever as construções inacabadas. É uma cena que não veríamos em prestigiadas revistas como a Kosmos (1904-1909), ou mesmo na Renascença (1904-1908), que teriam seletos profissionais responsáveis por documentar oficialmente esse dia na cidade.

    O equipamento de fácil manuseio teria ainda grandes repercussões no ambiente doméstico. Isto porque o registro da família manteria vínculos com aquele universo povoado por revistas ilustradas, cartões-postais e mesmo o cinema, ainda em seus anos iniciais – imagens diversas que iriam se integrar sutilmente a novos repertórios, como na tomada em que Sampaio registra seus filhos fotografando com algum modelo da Kodak. Nesse instantâneo encenado, a pose convencional é substituída pela ação, o movimento que parece nos surpreender – atitude pouco comum para um retrato do início do século XX, mas que não era uma novidade. Já a partir de 1900 a Kodak havia produzido equipamentos destinados às crianças, e fotografar tinha um sentido de diversão, com a câmera se convertendo quase num brinquedo infantil – situação marcada na cena em que os meninos se movem alegremente, gesticulando no exato momento do que seria o clique da imagem.

    Ora no Photo-Club do Rio de Janeiro, ora saindo às ruas com as Kodaks, os amadores utilizavam suas câmeras de maneira inusitada, na vertente dos “artistas” ou daqueles que desejavam apenas se divertir. Divisão que deve ser relativizada. Em ambos os casos há a mesma circunstância: quando equipamentos de todos os tipos invadiam o trabalho, a vida em família e as experiências mais íntimas das pessoas com a cidade e com a natureza, a câmera fotográfica não estava destinada apenas à função documental. Como os amadores nos mostram, fotografar servia para muito mais. Permitia se comunicar, se relacionar com as pessoas, e era uma forma de interagir com o mundo.


    Adriana Maria Martins Pereiraé autora da tese “A cultura amadora na virada do século XIX: a fotografia de Alberto de Sampaio (Petrópolis/ Rio de Janeiro, 1888-1914)”, (USP, 2010).

     

    Kodak, um divisor de águas

    A primeira câmera Kodak, o modelo nº 1, foi lançada em 1888 com um slogan que sacudiu o mundo dos fotógrafos amadores: You press the botton, we do the rest (“Você aperta o botão, nós fazemos o resto”). O equipamento vinha carregado com negativos de celuloide em rolo, com 100 chapas prontas para serem utilizadas. Para a revelação, enviava-se a câmera por correio para a fábrica em Rochester, nos Estados Unidos; algum tempo depois as fotografias eram recebidas em casa junto com uma nova máquina com mais negativos. Em 1900 mais uma novidade: a Kodak lança a câmera Brownie, destinada às crianças, vendida pela bagatela de 1 dólar. O slogan agora era Let the children Kodak (“Deixe as crianças fotografarem com a Kodak”). Em pouco tempo, Kodak se tornaria sinônimo de fotografia.

     

    Amadores “artistas”

    Os livros de história da fotografia no Brasil indicavam o ano de 1910 como o da fundação do Photo-Club do Rio de Janeiro. Com escassez de informações, havia como registro a data, mas nada sobre o seu funcionamento. Mas nas pesquisas da minha tese de doutorado, encontrei novos dados. O Photo-Club do Rio de Janeiro surgiu ainda em 1904, quando organizou a primeira exposição, seguida por outras em 1905 e 1907 – as duas primeiras na Galeria Cambiasso e a última no Museu Commercial do Rio de Janeiro. O clube atraiu até mesmo profissionais renomados, como Augusto Malta e Luis Musso. Desse grupo, com os artigos da revista Renascença, temos os mais antigos e extensos materiais no Brasil, que tratam sobre o funcionamento de uma sociedade dedicada exclusivamente à fotografia.

    Saiba mais

    COSTA, Helouise & SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

    FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1998.

    FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar. Fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. Vol. 1. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

    MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: EdUff, 2008.