O russo Servim Gueraibekov desembarcou no Rio de Janeiro com mais 48 conterrâneos em agosto de 1982. Todos teriam vindo para participar do 12º Congresso da Associação Internacional de Ciência Política. Mas Gueraibekov acabou rendendo grande repercussão na imprensa da época. O motivo era simples: ele desapareceu. E quanto mais se investigava sobre seu paradeiro e sua vida, mais páginas ele ganhava no noticiário.
O Instituto Médico-Legal suspeitou que um corpo encontrado dentro de uma manilha de amianto na Zona Oeste do Rio pudesse ser do soviético. Paralelamente a esta versão, havia rumores de que ele estivesse no Consulado dos Estados Unidos, onde teria pedido asilo. O episódio foi suficiente para a revista Veja publicar uma reportagem tentando ligar os pontos entre os serviços secretos dos EUA e o da União Soviética: “No Rio, some um cidadão russo, aparece um cadáver mutilado, e as faces da CIA e da KGB despontam nos bastidores de uma trama de espionagem”. Mas a mesma publicação desmente a ligação do russo com o corpo encontrado em uma nota, duas semanas depois, afirmando que, quando o cadáver apareceu, Gueraibekov já estava na Alemanha Ocidental: “Tanto os americanos quanto os brasileiros sabiam disso, mas alimentaram a história para esfumaçar a verdadeira trama”. E assim, como um fugitivo da URSS, Gueraibekov foi esquecido pela imprensa brasileira.
Na véspera do fechamento desta edição, uma informação nova ajudou a montar este quebra-cabeça. O soviético se dedicava a um estudo não muito comum: as cobras. Obertal Mantovanelli Neto, que trabalhava na Embaixada brasileira na URSS na época, acompanhou os bastidores da diplomacia e lembra o episódio: “Ele sabia tudo de veneno, seus conhecimentos eram importantíssimos para a chamada bioguerra”.
Foi preciso que se passassem quase trinta anos para alguém falar abertamente sobre o assunto. A imprensa da época chegou a apurar que o soviético era graduado em Filosofia e História e que trabalhava na Academia de Ciências de Baku, do Azerbaijão – ele não era advogado, como tinha declarado na ficha do hotel em que se hospedou, mas não se deu conta de que seus conhecimentos científicos poderiam ser ameaçadores no período da Guerra Fria. A rápida passagem de Gueraibekov pelo Brasil demonstra como o país esteve na rota desses personagens clandestinos que deixaram lacunas em alguns episódios.
As interrogações que rondam a história da espionagem não são apenas coisas do passado. O serviço secreto que temos hoje, na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tranca suas informações a sete chaves. Seu objetivo, como em todo serviço de inteligência, é mapear possíveis ameaças à integridade do país e identificar oportunidades de fortalecimento. Para isso, é preciso preservar os chamados “conhecimentos sensíveis”, ou seja, os que podem ser estratégicos para a segurança do Estado.
Assim como hoje não se sabe exatamente quais são esses conhecimentos mapeados pela Abin, durante o Estado Novo havia muito sigilo rondando o país. Um caso que ganhou popularidade recentemente foi o do espião Johann Heinrich Amadeus de Graaf (1894-1980), o Johnny. Nascido na Alemanha, ele fingia ser agente do serviço secreto soviético e colaborava com os ingleses. Sua biografia ganhou um capítulo sobre o Brasil, onde ele teve que executar uma missão: ajudar Luiz Carlos Prestes a organizar uma revolução comunista. Mas Johnny, como bom espião duplo, passava as estratégias traçadas por Prestes para o serviço secreto britânico (MI6), que, por sua vez, as transmitia ao ministro do Exterior brasileiro, Oswaldo Aranha. As informações eram entregues pelo Itamaraty ao presidente Getulio Vargas e ao chefe da Polícia Civil e diretor da Delegacia Especial de Segurança Política e Social (Desps). Assim, o governo ficou sabendo das intenções da rebelião e o quanto estavam preparados para o embate – muito pouco, segundo Johnny. O resultado foi o fracassado Levante Comunista ou Revolução de 1935, no Rio de Janeiro .
Mas a novela da espionagem estava apenas começando. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), outros capítulos intrigantes entrariam em cena. Só em 1941, o Abweher – serviço secreto do Exército alemão – tinha dez células no Brasil, e cada uma delas contava, no mínimo, com dez pessoas envolvidas. Os estrangeiros buscavam informações sobre as movimentações dos países aliados – Estados Unidos, União Soviética, França e Inglaterra – no Brasil, como rotas de navios e a capacidade militar brasileira. Em 1942, policiais paulistas desmantelaram uma célula do Partido Nazista no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Entre a papelada encontrada estavam as coordenadas de viagem do navio britânico Queen Mary, que havia partido do porto do Rio com oito mil soldados canadenses. Os dados já haviam chegado à Alemanha, mas os policiais conseguiram alertar a Embaixada da Inglaterra. O navio, então, mudou de rota antes do ataque alemão e chegou à Austrália, escapando de ser afundado por submarinos nazistas.
A historiadora Priscila Perazzo, da Universidade de São Caetano do Sul, estuda a espionagem nesse período há vinte anos, e pondera que, apesar da disponibilidade de dados oficiais hoje em dia, pesquisar este assunto é uma tarefa complexa. “Sempre foi um assunto secreto e, por isso, algumas vezes os documentos não estão disponíveis ou são de difícil acesso. A documentação da polícia e do Itamaraty são acessíveis, mas as do Exército, não. Porém, o maior problema é mesmo a aura que envolve o tema. Pessoas que se envolveram com o nazismo não falam sobre isso. Não falaram nunca e já morreram levando todas essas histórias”, diz Perazzo.
Não falaram, mas deixaram algumas pistas. Muitos imigrantes que já moravam no Brasil colaboraram com o serviço de espionagem da Alemanha de Adolf Hitler. No início da Segunda Guerra, o Brasil tinha uma comunidade alemã de quase 900 mil pessoas. Para a Abwehr, essa população seria conveniente para transmissões radiotelegráficas clandestinas, obtendo assim dados sobre os países aliados. Priscila acabou conhecendo mais a fundo um caso particular a partir das memórias de Ingrid Koster, de 82 anos.
Criada pelo padrasto, um alemão que emigrou para o Brasil nos anos 1920, Ingrid não se conformou com o fato de ele ter sido preso em 1942 pela polícia de Getulio Vargas sob a acusação de espionagem, e procurou a historiadora. Priscila reconheceu no alemão, morto em 1967, características que se encaixavam no perfil dos espiões desse período. “Normalmente eram homens, cultos e especialistas em alguma tecnologia da época. Vindos da Alemanha após a Primeira Guerra (1914-1918), muitos já haviam vivenciado a guerra anterior. O pai de Dona Ingrid tinha esse perfil, apesar de não termos provas que ele tenha sido espião”, diz Priscila. A pesquisa acabou resultando no livroIngrid, uma história de exílios(Editora Sagui, 2010), de Marcílio Godoi, que contou com a consultoria da historiadora. Na narrativa, o alemão aparece com o nome fictício de Karl von Schütze a pedido da família, que entregou mais essa pista aos estudiosos do tema.
Nessa época, espionar não era uma empreitada que contasse com as armas de uma produção cinematográfica, como os filmes do agente 007, imortalizado pelo ator Sean Connery. “Alguns imigrantes foram à Alemanha para serem treinados. O que tinha de melhor eram os rádios para transmissão de dados, mas esses equipamentos eram grandes e só eram operados por técnicos experientes. De resto, passavam todo tipo de código das formas mais rotineiras, no meio das mensagens cotidianas”, diz a especialista, que encontrou em suas pesquisas uma técnica de tinta invisível para escrever cartas. Recentemente, o historiador inglês Keith Jeffery revelou que Walter Kirke, representante do serviço secreto militar britânico na França, desenvolvera uma técnica para usar esperma como tinta.
Uma grande diferença entre o famoso espião da ficção e os da vida real está na sua apresentação. Depois de desvendar algum mistério, o personagem comete um erro primário para qualquer espionagem dizendo: “Meu nome é Bond, James Bond”. E lá se foi toda a discrição por água abaixo... Um espião que se preze não revela a identidade; normalmente, sua assinatura é uma sequência numérica. Assim agiam os diversos agentes que atuavam no Brasil e, principalmente, os brasileiros encarregados da contraespionagem, dos quais nada se sabe. Nem a polícia secreta, que os preparava, tem arquivos que tratem de dados pessoais desses agentes. “O espião não tem identificação nenhuma, nem dentro da polícia. Isso porque, apesar de ser muito estimado, ele é também uma figura descartável. Se ele falasse demais, estaria bem enrascado”, suspeita o historiador Thiago Pacheco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coautor de O Brasil e Segunda Guerra Mundial (Multifoco, 2010).
Por outro lado, algumas referências nos filmes de James Bond parecem não ser tão fantasiosas. “Usar uma mulher bonita para seduzir alguém e conseguir informações não é um clichê, isso acontecia mesmo. Se fosse preciso, ela iria até para a cama. Alguns relatórios corroboram essa ideia”, diz Pacheco. Uma informante relatou a um espião brasileiro, em 1939, que uma jovem alemã estaria recebendo “a título não se sabe de quê”, dinheiro da Embaixada alemã, e que, portanto, seria uma espiã de Hitler.
O objetivo da contraespionagem brasileira durante a Segunda Guerra era saber o que estavam querendo principalmente os espiões estrangeiros, com atenção dobrada aos do Eixo – Alemanha, Itália e Japão. Coordenados pela Desps, os agentes tinham especial preocupação com células de espionagem nazistas no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Porto Alegre e no Recife, obrigando a polícia política a estar presente em todo o país. Esses espiões eram enviados pela polícia secreta alemã, a Gestapo, ou pelo Exército alemão. No Brasil, eram recebidos pela Embaixada alemã ou vinham disfarçados de empresários e homens de negócios.
Ficar de olhos abertos para qualquer movimento de alemães, italianos e japoneses era uma necessidade óbvia para o Estado brasileiro. Mas para se sentir ainda mais seguro, não custava nada saber também o que andavam fazendo os americanos e ingleses. “É até delicado falar isso, porque a polícia do Estado Novo é reconhecida pelos atos de tortura que cometeu. Mas, sem querer acobertar seus pecados, ela foi fundamental para a segurança do Estado na medida em que não foi subserviente aos Estados Unidos e à Inglaterra. Ela investigou todas as potências”, pondera Pacheco.
Nesse jogo de xadrez, todo cuidado era pouco. Por isso, o Brasil também estava atento à Argentina, que tinha uma posição de neutralidade. “Houve um enorme fluxo de espiões alemães para Buenos Aires. Alguns bilhetes de agentes brasileiros enviados para a Argentina diziam, com muita certeza, que o nosso vizinho não tomava nenhuma providência com relação a isso”. O agente D-11 relatou em um bilhete, no dia 13 de maio de 1940, um pouco das pretensões dos nossos hermanos: “Os argentinos, com o fim de intensificar, com o Japão, a troca de trigo por carvão, estão procurando fretar todos os navios gregos atualmente em portos sul-americanos, inclusive um que está em nosso porto”.
Mas a contraespionagem brasileira não estava limitada a vigiar os estrangeiros. Os agentes eram preparados pelo Desps para agir contra grupos de opositores internos, como comunistas e integralistas. Em suas pesquisas, Thiago Pacheco encontrou um bilhete de 1941 que ilustra essa investigação, em pleno Estado Novo: “Os integralistas continuam a encontrar na nossa Marinha excelente campo de ação para as suas nefastas atividades. No Club Naval, principalmente, eles avultam em maior número”.
O historiador americano Stanley Hilton também se dedicou a esse tema na década de 1970 e enfrentou duras críticas de integralistas a seus estudos. Quando lançou o livro Suástica sobre o Brasil (1979), Hilton foi acusado na imprensa, pelos camisas-verdes, de ser agente da CIA. Em resposta, o historiador se defendeu e ainda apontou que diversos integralistas, inclusive o líder Plínio Salgado, teriam colaborado com o serviço secreto do Partido Nazista ou com o Abwehr.
A rede de espiões era bem tramada: o governo estava ligado nas potências do Eixo e também nos aliados, além dos opositores internos; os comunistas estavam atentos ao governo e aos integralistas, que também não podiam se descuidar. Para a trama não dar nó, era preciso manter os informantes fiéis, e isso o serviço secreto brasileiro fazia, normalmente oferecendo em troca algumas facilidades ao agente. Diferente da espionagem americana, esse trabalho raramente era pago em dinheiro. Um trabalhador braçal poderia ser infiltrado num sindicato, por exemplo, para espionar comunistas. Com o tempo, ele poderia galgar posições de liderança naquele meio sob a proteção do Estado.
Espiões daqui ou estrangeiros, a favor ou contra o Estado, são sempre, aos olhos dos serviços secretos, peças de um jogo. Vence quem guarda mais informações na manga.
O buraco negro da inteligência
Se um funcionário começa a adquirir bens e serviços que são incompatíveis com sua renda, tome cuidado. Ele pode ser um espião. Se uma empresa concorrente consegue fechar contratos frequentemente, oferecendo só o suficiente para cobrir a sua proposta, fique atento também. Esses são alguns dos alertas dados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre possíveis agentes secretos infiltrados na sociedade. A lista, diferentemente da maioria das informações processadas pelo órgão, não é segredo: está disponível no site da instituição com livre acesso para qualquer internauta, que também pode denunciar esses indícios de espionagem pelo próprio site. Quantas denúncias a Agência já recebeu? E quais foram? Isso já é querer saber demais... A Abin não revela este tipo de conteúdo porque, segundo o órgão, quando o assunto é inteligência, muitas informações podem se tornar perigosas caso cheguem ao conhecimento de algum inimigo, qualquer que seja ele. O órgão garante apenas que “o Brasil é detentor de conhecimentos que despertam interesses internacionais”, mas diz não poder informar quais são.
Essa preocupação em preservar informações para a proteção do Estado não é de hoje. Em 1927, no governo de Washington Luís, foi criado um órgão civil federal que tinha exatamente este objetivo, o Conselho de Defesa Nacional. Em 1946, o serviço secreto apareceu no papel, e só em 1956 foi implementado. De lá pra cá, o órgão já passou por mudanças em suas estruturas, de acordo com os governos vigentes. Por isso, já foi identificado por diversos nomes: Serviço Federal de Informações e Contra-informação (Sfici), de 1956 a 1964; Serviço Nacional de Informações (SNI), de 1964 a 1990; Departamento de Inteligência (DI), de 1990-1992; Subsecretaria de Inteligência (SSI), de 1992 a 1999; e, finalmente, Abin, desde 1999.
O jornalista Lucas Figueiredo pesquisou o assunto por sete anos, e em seu livro Ministériodo Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (Record, 2005), faz algumas críticas à gestão do serviço secreto. “Sua principal função, definida de forma legal, é reunir informações estratégicas, sobretudo aquelas relacionadas à segurança do Estado”, escreveu Figueiredo. Mesmo tendo se debruçado sobre o tema por tanto tempo, ele não conseguiu todas as informações que queria, porque parte dessa memória foi perdida ou pelo desaparecimento de figuras centrais do Serviço ou pela destruição proposital da documentação. “Boa parte da história do serviço secreto brasileiro é, ainda hoje, um segredo bem guardado, sobretudo pelos militares”, afirma o jornalista.
Antenas ligadas
Vivi Fernandes de Lima