António Costa Pinto

Nashla Dahás

  • Professor e coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, António Costa Pinto tem se destacado como expressão de uma historiografia mais rigorosa e menos ideológica a respeito do passado ditatorial em Portugal. De família típica da classe média urbana e antissalazarista, no início de sua juventude assistiu ao processo de crise da ditadura e participou como militante no contexto revolucionário, que incluiu reforma agrária popular, alta politização das Forças Armadas e a real possibilidade de instalação de uma nova ditadura, de tipo socialista. Suas pesquisas contemplam as transições democráticas e a justiça de transição em Portugal e na Europa em geral, e mantêm diálogo intenso e profícuo com a historiografia brasileira. O historiador traçou para a RHBN um panorama do processo de transição e construção da ordem democrática em Portugal.
     
    Quais foram as bases de sustentação do longo regime salazarista? 
     
    O salazarismo nasceu e consolidou-se no início dos anos 1930, portanto, na época do fascismo, e algumas das suas instituições foram influenciadas pelo fascismo italiano. Mas a influência da Igreja Católica, a atração das várias “famílias políticas” da direita conservadora e das elites sociais temperaram seus compromissos políticos. O Estado Novo manteve-se neutro e colaborou com os aliados na Segunda Guerra Mundial, mas é a Guerra Fria que lhe assegura a sobrevivência. Pragmático, Salazar aumentou o “pluralismo limitado” do regime, entrou na OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] por proposta norte-americana e nos anos 1960 conseguiu mesmo aderir à EFTA [Associação Europeia de Livre Comércio], um clube econômico da Europa desenvolvida.
     
    No campo das esquerdas, como era a militância em Portugal nos anos 1960?
     
    O regime atravessava uma fase de grande crescimento econômico, mas foi a resistência à descolonização que acabou por provocar a crise final da ditadura. Salazar foi afastado por questões de saúde, em 1968, e o seu sucessor, Marcelo Caetano, após uma curta fase de “liberalização” do regime, não conseguiu evitar o agravamento do conflito com os militares após a guerra ter se radicalizado na Guiné-Bissau. Provocou assim a queda descontrolada da ditadura em 1974.
     
    Quais as especificidades da transição por ruptura?
     
    A transição portuguesa, iniciada em 1974, teve um aspecto singular: é simultaneamente um processo de democratização e de descolonização, após 14 anos de guerras coloniais na África. Depois, é um processo de ruptura, caracterizada por uma crise acentuada do Estado após a derrubada da ditadura por movimentos sociais poderosos e ainda pelo papel dos militares no campo político. Convém referir que foi a primeira transição da chamada “terceira onda” de democratizações, ainda na Guerra Fria, e com grande surpresa da comunidade internacional. Foi uma transição com uma forte dinâmica “antiditatorial”, marcada por uma crise pré-revolucionária. A reforma agrária nos campos do Alentejo e as nacionalizações dos principais grupos econômicos foram marcos decisivos em 1975. O bloco ocidental teve então uma estratégia de intervenção anticomunista que passou pelo apoio aos partidos moderados e por uma dinâmica de violência política contra os comunistas e outros movimentos esquerdistas no norte de Portugal. As eleições de 1975 deram a vitória aos partidos moderados. Após um golpe vitorioso dos militares moderados em novembro de 1975, em 1976 inicia-se a consolidação da democracia, com as eleições legislativas e presidenciais.
     
    É possível apontar semelhanças entre as redemocratizações de Portugal, Espanha e Brasil?
     
    Expressam tipos opostos de democratização: a Espanha e o Brasil, por um lado, Portugal, por outro. No primeiro caso, ainda que com uma pressão democratizadora importante da sociedade civil, o processo resulta de um pacto entre as elites, tem elementos continuístas e conhece a clássica anistia para a elite autoritária. Portugal foi uma transição por ruptura, como na Grécia. Mas na Grécia, em 1975, não houve crise do Estado. Em Portugal houve. As semelhanças são poucas, exceto no mais importante: todas deram origem a democracias consolidadas. A grande maioria das transições na América Latina e na Europa Central e Oriental estão mais próximas do tipo de transição da Espanha e do Brasil. 
     
    A justiça de transição também foi diferente em Portugal?
     
    Num livro que publiquei no Brasil em 2013 [O passado que não passa, Civilização Brasileira], com o meu colega Francisco Martinho, da USP, tentamos realizar um estudo comparativo que ilustra as diferenças e as semelhanças entre a justiça transicional na Europa do Sul e na América Latina. No caso de Portugal, a justiça transicional concentrou em 1974-1975 todas as faces contraditórias da tentativa de punir as elites autoritárias e seus colaboradores. Numa segunda fase, atingiu também as elites econômicas e empresariais. O fundamental das medidas de punição dos colaboradores da ditadura deu-se naqueles anos, antes do funcionamento pleno de uma nova legitimidade democrática. Muitos agentes da polícia política foram julgados, elementos das Forças Armadas foram aposentados compulsoriamente, a administração pública e a mídia conheceram processos de depuração, ainda que poucos dirigentes políticos da ditadura tenham sido punidos. Com o fim da transição e com a institucionalização da democracia, muitos foram reabilitados e reintegrados, com base num discurso de reconciliação. No entanto, no caso português houve uma ruptura real e simbólica com o passado autoritário e poucos dirigentes políticos da ditadura conseguiram sobreviver politicamente na democracia. No Brasil foi o contrário: primeiro, a anistia para o aparelho repressivo da ditadura, e depois sim, uma justiça de transição baseada em “comissões de verdade”, na reabilitação dos desaparecidos e torturados. Mas sem punição nem criminalização.