- O dia 25 de fevereiro de 2012 foi assinalado, para o Brasil e para várias nações parceiras, como um dia de tristeza. O incêndio ocorrido na Estação Antártica Comandante Ferraz marcava aquele carnaval como um dos mais tristes vivenciados pelos brasileiros. Grande parte das instalações, conquistas de muitos carnavais, estava destruída. Mas entender o sentido dessa ocorrência perpassa a compreensão do que significa a presença brasileira na Antártica.Descrever este continente, especialmente até o século passado, significava conduzir o leitor a associações quase sempre superlativas, tais como ser aquela região a mais fria, a mais remota, a mais desértica, a mais ventosa, a mais seca, a de mais alta superfície média, denominada por isso de “A Terra dos Superlativos”. Embora estas afirmações estejam corretas, separar a realidade do sensacionalismo que normalmente acompanha as informações sobre o lugar era – e ainda é – uma tarefa difícil, já que a região continua exercendo um grande fascínio sobre a maioria das pessoas.A Antártica possui uma superfície de aproximadamente 13,6 milhões de km² no verão e cerca de 25 milhões de km² no inverno, quando acontece o congelamento dos mares no entorno. Mesmo durante o verão, 95% da área são recobertos por gelo, configurando-se como o maior depósito de água doce do mundo. É curioso observar que em épocas passadas a busca por riquezas minerais, tais como petróleo e ouro, foi um dos principais motivadores para as tentativas de ocupação da Antártica; e hoje, a água contida na forma de gelo já começa a movimentar investimentos e reivindicações, bem como a elevação do título do que era apenas “água” para “petróleo azul”.Em relação ao clima, considera-se como recorde de temperatura mínima do planeta a marca de -89°C, medida na Estação Russa de Vostok, situada a 1.240 km do polo sul geográfico. Já na península Keller, na ilha Rei George, onde se concentram as atividades brasileiras, pode-se considerar o valor de -2,8°C como a temperatura média anual, sendo que a temperatura mínima já registrada foi de -28,5ºC. Além das baixas temperaturas, as rajadas de vento que chegam até a 200 km/h contribuem para tornar o local pouco convidativo para a vida humana.Os motivos que impulsionam a maioria dos países a investir recursos humanos e financeiros no denominado “último continente” são muito semelhantes e podem ser resumidos em três instâncias: a científica, pelo imenso laboratório natural que a Antártica representa; a econômica, por conter grande parte das riquezas que já estão se esgotando no planeta; e a estratégica, por sua localização geográfica e pela importância política na comunidade internacional.No entanto, o interesse específico do Brasil deve-se, ainda, à sua proximidade geográfica. Observa-se que a distância entre Porto Alegre (RS) e a Estação Antártica Comandante Ferraz é de apenas 3.500 km, enquanto a distância entre a mesma cidade e Boa Vista (RR) é de 3.776 km. Essa proximidade é mais perceptível nos fenômenos climáticos, já que muitas frentes frias originadas na Antártica e que alcançam o Brasil interferem diretamente na agricultura, assim como as correntes oceanográficas, cuja dinâmica está estreitamente relacionada às atividades pesqueiras no litoral brasileiro.
O início da presença brasileira na Antártica aconteceu em 1882, durante as atividades vinculadas ao Ano Polar Internacional (YPI, na sigla em inglês), um evento mundial previsto para ocorrer aproximadamente a cada 50 anos e que busca reunir as nações que atuam nas áreas polares para, entre outros objetivos, estabelecer parcerias visando a atividades conjuntas. Naquela ocasião, o Brasil contribuiu para o evento enviando uma expedição que tinha a bordo da Corveta Parnahyba o astrônomo Luiz Antonio Cruls, com a tarefa de observar a passagem de Vênus pelo disco solar, a partir do Estreito de Magalhães.
O Segundo Ano Polar ocorreu em 1932-1933 – dessa vez, sem participação brasileira. O Terceiro, em 1957-1958, também chamado de Ano Geofísico Internacional, foi marcado no Brasil por extenso programa de pesquisas, especialmente nas áreas de meteorologia e oceanografia. O intercâmbio de conhecimentos entre pesquisadores de várias nações ressaltou, na equipe brasileira, o interesse pelos aspectos relacionados à Antártica e sua efetiva influência no território nacional, seja pela proximidade, seja pelas correntes atmosféricas e oceânicas.Nesse momento, iniciava-se também a discussão sobre a eventual divisão geopolítica da Antártica, e o Brasil pleiteou, sem sucesso, participar da conferência de governos, realizada, em 1958, nos Estados Unidos. A recusa foi especialmente motivada pelo fato de o país não exercer atividade científica efetiva e continuada na região. Dessa reunião resultou o Tratado Antártico, o principal documento jurídico de regulamentação internacional das atividades na Antártica. Este instrumento define que toda a região envolvida pelo paralelo 60° Sul é consagrada para fins científicos e pacíficos. Por isso deve ser incentivada a cooperação entre as nações e proibida qualquer atividade de cunho bélico. Começou a vigorar a partir de 1961 com o principal objetivo de congelar as reivindicações territoriais e ordenar a ocupação de forma pacífica e com o mínimo de impacto ambiental.O Brasil ingressou como membro aderente ao Tratado Antártico somente em 1975, criando o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) em 1982. Naquele mesmo ano, realizou sua primeira expedição científica, com a participação dos navios oceanográficos Barão de Teffé, da Marinha do Brasil, e Professor Wladimir Besnard, da Universidade de São Paulo. A expedição também tinha como missão estabelecer o local onde seria construída a futura Estação Antártica Comandante Ferraz.No ano seguinte, o Brasil é elevado à categoria de Parte Consultiva do Tratado Antártico – agora com direito a voto – tornando ainda mais urgente a implantação de uma edificação permanente que caracterizasse a intenção do Brasil em manter atividade continuada na região.A Estação Ferraz foi inaugurada em fevereiro de 1984, contando inicialmente com oito tímidos contêineres pintados de verde, buscando a necessária sinalização da existência da vida humana naquele remoto lugar. Apenas 12 pessoas cabiam na estação, em condições nem sempre confortáveis. A construção em contêineres permitia a implementação da Estação com a rapidez e a segurança requeridas na época, além do mínimo de interferência na topografia natural, representando o primeiro passo rumo ao conceito de cuidado ambiental. Construir lá significava, fundamentalmente, o desafio de lidar com condicionantes incomuns, absolutamente distantes da realidade urbana de nosso país tropical, como o perigo de incêndio.Com o sucesso da implantação de Ferraz, já em 1985 foi promovida a ampliação da Estação, passando a ter 33 módulos e, no ano seguinte, iniciou-se o período de permanência também durante o inverno. Os anos seguintes transcorreram sem sobressaltos, com a Estação sofrendo pequenas ampliações sucessivas. Esse crescimento desordenado gerou consequências, como a necessidade de ampliar ou adequar ambientes de apoio – como cozinha, depósitos, oficinas, motores e instalações sanitárias – que não estavam condizentes com o aumento populacional gradativo.No verão 2003-2004, foram iniciados os procedimentos de revitalização de Ferraz e, nos anos subsequentes, a Estação passou a ganhar melhorias crescentes, como os equipamentos de comunicações. Em 2006 foi aprovado o Plano Diretor da Estação, que teve a totalidade de suas obras realizada em apenas três anos.
Em 25 de fevereiro de 2012 veio a tragédia: no auge de suas condições físicas, o denominado “corpo principal” da Estação Antártica Comandante Ferraz se incendeia e dois militares brasileiros morrem na tentativa de combate às chamas. Apenas no verão seguinte, em uma complexa operação logística amplamente elogiada pelas demais nações com atividades na Antártica, foram retiradas, de forma segura, cerca de 900 toneladas de resíduos resultantes dos escombros do incêndio. Nesse mesmo verão foram construídos os Módulos Antárticos Emergenciais, visando proporcionar condições de segurança para a continuidade das atividades enquanto novas edificações definitivas não sejam prontificadas.Espera-se que, até o verão antártico de 2017, esteja em pleno funcionamento novamente. O Brasil, através da união de esforços das muitas instituições vinculadas ao Proantar, mais uma vez demonstra sua capacidade de vencer desafios e seu firme propósito de desenvolver atividades continuadas na região.Cristina Engel de Alvarez é arquiteta, coordenadora do projeto Arquitetura na Antártica e pesquisadora do Laboratório de Planejamento e Projetos da Universidade Federal do Espírito Santo.Saiba maisANTÁRTICA: ensino fundamental e ensino médio. Coleção Explorando o Ensino. Vol. 9. Coord. Maria Cordélia S. Machado e Tânia Brito. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.MARTINS, Edison Nascimento. Retorno a Ferraz: História de um Pioneiro. Brasília: Ed. UnB, 1998.PALO Jr., Haroldo. Brasil na Antártica: 25 Anos de História. São Paulo: Vento Verde, 2008.PEREIRA, Enio Bueno & KIRCHOFF, Volker M. J. H. O INPE na Antártica. São José dos Campos, SP: Transtec Editorial, 1992.InternetINCT DA CRIOSFERA (Brasil). Dados geográficos básicos da Antártica: www.ufrgs.br/antartica/antartica-antartida.html
Ao sul do sul
Cristina Engel de Alvarez