É dia de festa em Vila Bela da Santíssima Trindade, na jovem capitania de Mato Grosso. Estamos em dezembro de 1789 e o capitão-general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1739-1797) realiza um dos últimos atos de seu governo, iniciado dezessete anos antes. Para comemorar o aniversário da rainha D. Maria I (1734-1816), ele serve um banquete com direito a ingredientes, talheres e panelas vindos de Portugal. Todas as pessoas ilustres da região estão convidadas. Eventos como esse eram comuns na época e viraram instrumentos de diplomacia, garantindo que o domínio sobre a fronteira oeste da América portuguesa fosse exercido com o menor desgaste possível.
O principal motivo da criação da capitania de Mato Grosso, em 1748, foi impedir que os espanhóis tomassem a região e chegassem a Goiás e Minas Gerais. Era a época em que Portugal e Espanha discutiam as cláusulas do Tratado de Madri, finalmente assinado em 1750, que fixou os contornos aproximados da atual fronteira brasileira, substituindo o Tratado de Tordesilhas (1494).
Para reforçar ainda mais a presença na região, os portugueses estabeleceram em 1752, às margens do Rio Guaporé, a Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso. A cidade, que hoje tem apenas 14 mil habitantes e fica a 540 quilômetros de Cuiabá, na atual fronteira com a Bolívia, foi o cenário da maioria desses banquetes – uns poucos foram realizados em Casalvasco, povoação vizinha surgida em 1782. Para homenagear a realeza portuguesa, estreitar os laços diplomáticos com os vizinhos espanhóis, comemorar os dias de santos ou saudar os oficiais que faziam a demarcação de limites da região, foram realizadas vinte e oito reuniões em torno da mesa farta, de 1760 a 1789.
Os dois primeiros banquetes de que se tem registro, de novembro de 1760, tiveram como objetivo fazer um agrado aos vizinhos. Foram oferecidos ao espanhol José Nunes Cornejo, governador da vizinha província de Santa Cruz de la Sierra (hoje na Bolívia), pelo capitão-general Antônio Rolim de Moura (1709- 1782), conde de Azambuja, primeiro governador da capitania (1751-1764) e fundador de Vila Bela.
Quem fez desses eventos uma tradição local – apesar de não ter sido pioneiro na iniciativa – foi outro militar: o capitão-general Luís de Albuquerque. Ele ofereceu vinte e seis banquetes, entre os quais um diplomático. Em agosto de 1783, emissários espanhóis foram enviados a Vila Bela para levar correspondência ao capitão-general e, de quebra, verificar como andava a ocupação portuguesa nas terrras ainda em litígio. Foram tão bem recebidos que ninguém diria que havia ali uma disputa entre dois impérios.
Embora tenha organizado essas refeições coletivas quase todos os anos em dezembro para lembrar o aniversário de D. Maria I, o forte de Luís de Albuquerque eram as festas populares. Ao longo de seu governo, ele deu vários banquetes em homenagem a Santo Antônio de Lisboa, de quem era devoto e em cuja homenagem mandou construir uma igreja.
O primeiro desses eventos com motivo religioso foi realizado em 1777. Mas foi a partir de 1781 que a celebração ganhou corpo com a inauguração da igreja – após dois anos de construção – e a entronização da imagem do santo. A festa começava sempre no primeiro dia de junho e ia até o dia 13, quando era realizado um jantar – como era chamada na época a refeição servida por volta do meio-dia – no palácio do governador e capitão-general. Às vezes, o jantar era acompanhado de “orquestra, assembleia e baile”, além de fogos de artifício e salvas de tiros, segundo os documentos oficiais da época. No ano da inauguração da igreja, houve intensa participação de Albuquerque, que ajudou a carregar a estátua do santo e distribuiu “medalhas ou verônicas (imagens religiosas gravadas sobre uma superfície) de ouro e prata por toda nobreza e militares”, como relata a documentação oficial.
Dependendo da situação financeira da capitania, em alguns anos havia mais fartura que em outros. Mas nunca se abriu mão de utensílios importados de Lisboa para cozinhar e servir. Caçarolas eram trazidas da metrópole junto com toalhas de mesa, guardanapos, pratos, talheres e castiçais. Muitos alimentos também eram portugueses, como farinha, embutidos, queijos, azeite, biscoitos, chocolate, vinho e aguardente. Era a oportunidade de se experimentarem pratos diferentes, com ingredientes finos, fugindo da comida do dia a dia. Na hora do preparo, os cozinheiros misturavam os produtos vindos de Portugal com os da terra, como milho, feijão, mandioca e derivados da cana-de-açúcar. Na sobremesa, as frutas locais eram consumidas ao natural ou em compota, servidas com os doces típicos portugueses, adaptados aos ingredientes locais. Para beber, havia sucos de frutas, entre as quais se destacavam laranja, limão e melancia.
O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), ao analisar esses banquetes no livro Contribuição para uma sociologia da biografia (1978), sobre Luís de Albuquerque, presumiu que no cardápio houvesse “peixes e talvez caça das águas e das matas tropicais de Mato Grosso”. Ele se baseou no fato de que, naquela época, os produtos oriundos da caça faziam parte do cardápio das refeições mais finas oferecidas na Europa. Até a Revolução Francesa, “a caça permaneceu uma prerrogativa da nobreza, portanto um símbolo de status”.
No Brasil, o costume da caça durou até o século XIX, e se em Mato Grosso não havia peixes de água salgada nem salmões e trutas como em Portugal, encontrava-se um substituto à altura no pacu: um peixe “da classe dos salmões do (rio) Minho acima, do mesmo gosto e do mesmo volume”, segundo relato do astrônomo e matemático Antônio Pires da Silva Pontes Leme (1750-1804), de 1781. Integrante da equipe que produziu o “primeiro reconhecimento cartográfico e as medições astronômicas precisas” da região, Silva Pontes falava com conhecimento de causa: ele foi um dos que experimentaram os banquetes oferecidos por Luís de Albuquerque.
A expedição do astrônomo chegou a Mato Grosso em 1782, após viajar cinco meses pela Amazônia, e permaneceu na região até 1790. Com ele viajavam Francisco José de Lacerda e Almeida (1750?-1798), também astrônomo e matemático, e o engenheiro português Ricardo Franco de Almeida Serra (1748-1809). Presença certa nas festas, que às vezes tinham danças e baile de máscaras, o trio encantava a população local com seu “talento e erudição”, como afirma um documento sobre um banquete realizado em 1783: “À noite houve um baile no palácio, de máscaras e gostosas danças, na forma costumada, como também uma comédia. Depois, em várias salas, uma magnífica e grandiosa ceia, assistindo as senhoras principais, e repetidas várias poesias pelo (...) capitão Ricardo Franco de Almeida e pelo doutor Antônio Pires da Silva Pontes. Já no ano passado, primeiro ano da sua chegada, mostraram estes o seu talento e erudição fecunda nesse dia”.
Prestigiados, os viajantes se sentavam sempre às melhores mesas, ao lado das figuras mais respeitadas da região, enquanto os soldados, por exemplo, ficavam em mesas piores. Era a mesma hierarquia que havia nas procissões religiosas, em que os ricos ocupavam os primeiros lugares e os demais fiéis ficavam atrás.
O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) foi outro viajante que experimentou os banquetes de Vila Bela. Ele percorreu o Pará, o Rio Negro e o Mato Grosso de 1783 a 1790 estudando a flora e a fauna da região. Luís de Albuquerque criou até uma instituição chamada “mesa real”, que correspondia às despesas e serviços realizados para alimentar os funcionários reais empregados nas demarcações de limites. As refeições eram oferecidas no palácio do governador.
Mas o número de banquetes diminuiu bastante depois de 1789, quando o capitão-general foi substituído no cargo por seu irmão João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ( ? – 1796). Vila Bela foi perdendo prestígio aos poucos e deixou de ser o centro do poder de Mato Grosso em 1824, quando a capital da então província foi transferida para Cuiabá. Ainda assim, hoje a culinária local guarda vestígios de uma época em que jantares podiam ser muito mais do que uma simples refeição.
Masilia Aparecida da Silva Gomes é professora da rede estadual de ensino de Cuiabá e autora da dissertação “Produção agrícola e práticas alimentares na fronteira oeste: Vila Bela da Santíssima Trindade (1752-1790)” (UFMT, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia
ANZAI, Leny Caselli; MARTINS, Maria Cristina Bohn (orgs.). Histórias coloniais em áreas de fronteiras: índios, jesuítas e colonos. Cuiabá: EdUFMT/São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2008.
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JOANONI NETO, Vitale; HARRES, Marluza Marques (orgs). História, terra e trabalho em Mato Grosso: ensaios teóricos e resultantes de pesquisa. Cuiabá: EdUFMT/São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2009.
LUCÍDIO, João Antônio Botelho. Ofício e arte: fotógrafos e fotografias em Mato Grosso (1860-1960). Cuiabá: Carlini & Caniato/EdUFMT, 2008.
Apetite diplomático
Masilia Aparecida da Silva Gomes