Apoio estatal

Fábio Kobol

  • Fotograma de "São Paulo Sociedade Anônima", de Luís Sérgio Person (1965): o filme mostra os efeitos do desenvolvimentismo no final dos anos 1950.A ansiedade era grande no dia 8 de julho de 1896. Na Rua do Ouvidor , no Centro do Rio de Janeiro, os presentes aguardavam o início da primeira exibição pública de cinema no Brasil. Como novidade tecnológica, a sétima arte faria sucesso na belle époque carioca. Já no ano seguinte, foram realizados os primeiros filmetes brasileiros. A partir de 1907, Rio e São Paulo contavam com mais de uma dezena de salas de exibição. De 1897 e 1930, foram produzidos cerca 3.100 filmes. De uma curiosidade apresentada por aventureiros, o cinema se impôs como espetáculo e negócio lucrativo.

    Porém, mal começava a andar com as próprias pernas e a produção brasileira já sentia o impacto da desleal concorrência dos filmes estrangeiros. Logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o cinema norte-americano, mais barato e avançado tecnologicamente, passou a dominar o mercado nacional. Não havia outra saída. Era preciso se aproximar do Estado.

    Mas essa relação estreita com o poder público não foi buscada somente em terras tupiniquins. Muito pelo contrário. Em quase todos os países, mesmo nos EUA, o Estado esteve presente em algum momento, assumindo tarefas de fomento, proteção, fiscalização ou apoio à produção. Mas, no Brasil, o buraco era mais embaixo. O cinema nacional sempre conviveu com a presença maciça e hegemônica do produto estrangeiro. Nosso mercado consumidor interno é seletivo e pequeno em relação ao seu potencial. Os avanços tecnológicos chegam por aqui sempre um pouco mais tarde. Uma superprodução americana, como “2012” ou “Avatar”, custa em torno de R$ 350 milhões, enquanto o nosso longa-metragem mais caro, a cinebiografia “Lula, o filho do Brasil”, foi orçado em R$ 15 milhões. Em uma frase: não se pode desligar a produção cinematográfica nacional da ação do Estado.

    Mais do que isso. A história conturbada dessa relação entre a sétima arte e o poder público acompanhou as transformações políticas de cada período. De meados do século passado até nossos dias, todos os órgãos oficiais direcionados ao setor refletiram, de uma maneira ou de outra, o momento político pelo qual o país passava. Foi a partir da Revolução de 1930 que os cineastas se organizaram em associações e procuraram fazer com que suas reivindicações de proteção e incentivo à indústria nacional fossem postas em prática. O governo de Getulio Vargas começou a reconhecer o enorme potencial do cinema como instrumento de comunicação a ser utilizado no ensino público.
    Estava ganhando força no Brasil a ideia de construção de uma identidade nacional. Cabia ao cinema auxiliar o governo na formação cívica e moral e na difusão dos valores da nação que viriam a ser bandeira ideológica do Estado Novo (1937-1945). Em 1937, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) foi encarregado da produção, aquisição e importação de filmes, para distribuir cópias à rede de ensino em todo o país.

    A convite do diretor do Ince, Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), o cineasta Humberto Mauro (1897-1983) dirigiu mais de 300 filmes até 1964: “Dia da Pátria”, “Vacina contra raiva”, “Higiene doméstica”, “O descobrimento do Brasil” (com música de Heitor Villa-Lobos), entre muitos outros. Mauro foi o realizador mais importante dos anos 1920 e se tornou grande inspiração para a geração do Cinema Novo.
    Além do incentivo ao cinema educativo, que ganhou ainda mais força com a criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), o Estado Novo assegurava a obrigatoriedade de exibição de longas nacionais e o subsídio para a importação de filme virgem. Por essas e outras, os anos 1930 marcaram o fortalecimento de um mercado produtor e consumidor interno. Nasceram as primeiras chanchadas e algumas experiências de criação de estúdios organizados em moldes  empresariais, como a Cinédia (1930)  e a Atlântida (1941). A primeira foi berço dos musicais carnavalescos de Carmem Miranda, “Alô, alô, Brasil” (1935) e “Alô, alô, carnaval” (1936). Já a Atlântida nos deu Oscarito e Grande Otelo. A crítica torcia o nariz, mas ninguém, em sã consciência, perdia “Carnaval no fogo” (1949) ou “Aviso aos navegantes” (1950).

    O otimismo era grande. Em 1949, o estúdio cinematográfico Vera Cruz abria suas portas. Era o maior investimento já feito no setor. Fundada em São Bernardo do Campo (SP) pelo produtor italiano Franco Zampari e pelo industrial Francisco Matarazzo Sobrinho, a Vera Cruz possuía estúdios com cerca de 100 mil metros quadrados, além de equipamentos importados de última geração. A empreitada trouxe Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro de fama mundial, de volta ao país, e produziu ao todo 22 filmes, do melodrama “Caiçara” (1950) ao musical “Tico-tico no fubá” (1952), passando pelo drama histórico “Sinhá moça” (1953). Foi nessa companhia que surgiu o fenômeno Amácio Mazzaropi (1912-1981).

    Mas o sonho brasileiro de uma indústria de cinema durou pouco. A Vera Cruz fechou as portas em quatro anos. O estúdio nunca conseguiu resolver o problema da distribuição de seus filmes (os distribuidores e os exibidores ficavam com mais de 60% da arrecadação). E, pressionada pelas dívidas, acabou vendendo para a americana Columbia Pictures os direitos do seu maior sucesso, “O cangaceiro” (1953), do cineasta Lima Barreto. A falência do estúdio deixou o setor em alerta, e o poder público foi acionado. Nesse período, nasceu o Instituto Nacional de Cinema (INC). Criado em 1951, o órgão tinha um perfil intervencionista e recolocava o Estado na condição de árbitro nas disputas do setor.

    O país passava por um novo surto desenvolvimentista, especialmente sob a presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1960). O seu ambicioso Plano de Metas buscava acentuar o projeto de industrialização do país. A ideia era atrair empresas estrangeiras com o apoio e o financiamento oficiais. Em 1956 surgiu a Comissão Federal de Cinema (CFC), cujo objetivo era articular a política pública para o setor, atuando inclusive na taxação dos filmes estrangeiros. Mas o mercado cinematográfico ainda era frágil, não havia ações eficazes de fomento à produção nacional. Com a preponderância do capital externo em todos os setores econômicos, a concorrência no circuito cinematográfico parecia desleal como nunca.

    Esse cenário sofreu um sério impacto com o golpe de 1964. Ao substituir à força o regime anterior, os militares deram início a uma nova etapa na vida política do país. O cinema refletiu mais uma vez essas mudanças. Em 1966, o INC centralizou todas as ações referentes ao campo cinematográfico. Mas foi sob o regime militar que nasceu a mais importante agência de desenvolvimento da atividade no país, a Embrafilme. O papel da nova empresa era financiar, co-produzir e distribuir filmes.

    Com um discurso nacionalista, de conquista de mercado para o produto nacional, os militares conseguiram a adesão de muitos cineastas e produtores. O realizador Roberto Farias (“Assalto ao trem pagador”) comandou a empresa entre 1975 e 1978, alternando apoios a filmes comerciais (“Dona Flor e seus dois maridos”) e autorais (“São Bernardo”). Nos dez anos anteriores à criação do INC, a média anual de longas-metragens produzidos não passava de 40. De 1967 a 1974, esse número chegou a 66 produções, com pico de 94 filmes realizados em 1971. A partir de 1975, o Conselho Nacional de Cinema (Concine) se preocupou exclusivamente com a legislação.

    Havia um porém: o cinema nacional estava cada vez mais dependente do investimento direto do Estado. A fragilidade desse sistema foi posta à prova na década seguinte. Sensível a uma conjuntura de crise mundial, o Brasil acumulou uma enorme dívida externa e enveredou pela crise fiscal. Faltou dinheiro para produzir filmes. O espectador, já acostumado com a televisão, ia cada vez menos ao cinema. E os exibidores iniciaram uma batalha judicial contra a lei que os obrigava a projetar produções nacionais. A crise se agravou no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992). A Embrafilme, o Ministério da Cultura e as leis de fomento à produção e de regulamentação do mercado foram extintos. De acordo com a visão neoliberal vigente no período, o cinema era apenas mais uma mercadoria. Em 1992, o único longa brasileiro que chegou às telas foi “A grande arte”, de Walter Salles, falado em inglês.

    Nesse mesmo ano, a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual abriu suas portas. O cinema brasileiro deu a volta por cima mais uma vez. Leis de renúncia fiscal foram criadas. E alguns sinais de vida foram notados a partir de 1993. Nasceu a chamada “retomada do cinema brasileiro”. O filme que iniciou este período foi “Carlota Joaquina” (1995), de Carla Camurati. Uma nova geração de cineastas ganhou reconhecimento internacional e até uma agência reguladora – a Ancine – foi criada. O público do cinema brasileiro, que correspondia a apenas 0,05% do mercado, passou para 8% entre 1992 e 2002, atingindo um pico de 22% em 2003.

    Não dá para negar: nosso mercado ainda é concentrado, elitizado e dominado pelo produto estrangeiro. Cerca de 90% dos filmes exibidos pela TV nacional são produzidos nos EUA; menos de 10% da população brasileira frequenta cinemas; cerca de 75% do mercado exibidor está ocupado por filmes norte-americanos e mais de 90% dos municípios não possuem salas de exibição. Mas nosso cinema já deu provas de vitalidade. Ao longo do século passado, muitos pressionaram o Estado e lutaram pelo cinema. Cabe aos cineastas, produtores, exibidores, distribuidores e, por que não, aos espectadores, levar essa luta adiante.

    Fábio  Kobol é professor de Gestão Cultural, especialista em políticas públicas e gestão governamental da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.


    Saiba Mais - Bibliografia

    AMÂNCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: cinema estatal brasileiro em sua época de ouro (1977-1981). Niterói: EdUFF, 2000.

    MAJONE, Giandomenico. “Do Estado positivo ao Estado regulador: causas e conseqüências de mudanças no modo de governança”. Revista do Serviço Público,v. 1, nº 50. Brasília: ENAP, 1999.

    NAGIB, Lúcia. O Cinema da retomada: depoimento de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002.

    RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.

    SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1996.


    Saiba Mais - Internet

    www.filmeb.com.br