O distintivo da Cobra Fumando costuma ser exibido com orgulho pelos veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Nas fotografias feitas logo após a Segunda Guerra Mundial, os combatentes mostram uma postura altiva e marcial. Mas o aspecto bem-sucedido dos soldados brasileiros oculta uma série de imprevistos e improvisos que fizeram parte da trajetória da FEB na guerra.
Antes de entrar em ação, a capacidade de combate foi duramente questionada. Até mesmo o general Mascarenhas de Moraes (1883-1968), comandante da FEB, reconheceu problemas de organização e treinamento do contingente. Mas o despreparo inicial foi compensado pelo bem executado processo de indução dos soldados ao Exército, sob uma liderança capaz.
A instrução dos brasileiros foi realizada em várias etapas, desde a incorporação dos recrutas e voluntários no Brasil – quando recebiam treinamento nos quartéis do pré-guerra – até estágios emergenciais de treinamento na Itália, antes do batismo de fogo. No dia 8 de novembro de 1944, uma nota da Infantaria fornecia orientações para o treinamento dos pelotões de fuzileiros no ataque, juntamente com técnicas de lançamento de granadas de mão e esgrima com baionetas. Na véspera do engajamento no front, o comando da FEB se esforçava para incutir noções básicas de conduta em combate a fim de melhorar as condições de sua tropa. Mas esse esforço não foi suficiente: após os primeiros combates em Monte Castello, no final de 1944, o comando da divisão expedicionária emitiu uma nota de instrução, em 15 de janeiro de 1945, resignando-se e reconhecendo a urgência de métodos para renovar as habilidades táticas dos pelotões da Infantaria brasileira.
Nos primeiros meses de 1945, a Infantaria Expedicionária passou a treinar táticas de infiltração, que foram empregadas no ataque final contra Monte Castello, realizado no dia 21 de fevereiro daquele ano. Um conhecido aforismo militar apregoa que o melhor instrutor é o próprio inimigo, e os brasileiros se beneficiaram tanto da instrução intensiva ministrada no front quanto da prática em combate.
Mesmo com o treinamento preliminar e o aprendizado nas montanhas italianas, era imprescindível manter a prática de exercícios de campo meses depois da estreia em combate. No início de abril de 1945, os veteranos passaram a realizar programas semanais de educação física, aulas sobre patrulhas noturnas e sobre como proceder no caso de alguém cair prisioneiro. Os exercícios eram conduzidos em dois turnos, na vizinhança das trincheiras, permitindo que um se mantivesse nas posições enquanto o outro recebia a instrução. Isto era necessário para adequar a tropa à realidade dos combates.
O sucesso da FEB, portanto, é explicado pelo profissionalismo militar. A rápida assimilação de conhecimentos e habilidades capacitou toda a tropa, que pôde planejar e executar as operações – inclusive o aparato tecnológico –, reagindo ao imprevisto causado pelo inimigo.
Outro motivo da saída vitoriosa da FEB é a qualidade de seus soldados. Apesar de os instrutores americanos terem avaliado negativamente a preparação preliminar dos brasileiros, esses mesmos instrutores os consideraram inteligentes e motivados. Além de oficiais de carreira, a divisão brasileira contou com muitos tenentes de Infantaria provenientes dos Centros de Preparação dos Oficiais da Reserva (CPOR). Eles eram mais numerosos do que os oficiais da ativa em várias das unidades de Infantaria.
Sargentos, cabos e soldados eram majoritariamente de origem urbana, alfabetizados, e apresentavam robustez e resistência física, a ponto de a FEB precisar confeccionar uniformes maiores que ao do fardamento normal do Exército. Do total de praças, 80,7% eram originários das regiões Sul e Sudeste do país. Os convocados oriundos do Nordeste, escolhidos por suas ótimas condições de saúde e grau de instrução, eram, na maioria, estudantes que serviram como cabos e sargentos, incorporados para suprir a deficiência de graduados experientes. No total, cerca de 25.500 brasileiros compuseram a FEB.
Apesar dessas constatações, as narrativas sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial permanecem imbuídas de uma variedade de anedotas e mitologias. O episódio foi responsável por suscitar crenças nas supostas qualidades de uma excepcionalidade brasileira pretensamente capaz de dominar as mais duras adversidades a partir de “saberes inerentes”.
Estariam os brasileiros, portanto, dispensados de aprender de acordo com as regras dos gringos sem jogo de cintura, sendo capazes de vencer as durezas da guerra unicamente com as soluções de arremedo inventadas no calor do momento. Nada de manual de campanha e instrução convencional! Pelo menos é o que dizem várias das narrativas ufanistas. Uma das mais conhecidas se refere à artimanha brasileira para conter o problema do “pé de trincheira”, o congelamento dos pés: em vez de limpeza constante e troca das meias, os soldados da FEB teriam sido capazes de erradicar a moléstia inserindo palha nas galochas de inverno fornecidas pelo Exército americano. Entretanto, os próprios registros médicos da FEB revelam que a quantidade de pé de trincheira entre os brasileiros foi ligeiramente maior que a das demais divisões do Exército americano ao qual o contingente brasileiro foi incorporado. Ainda assim, a lenda sobre a palha ainda é repetidamente alardeada.
Outra das anedotas mais reproduzidas diz respeito ao suposto “medo” que os combatentes alemães sentiam das armas brancas empregadas pelos brasileiros, embora fossem raríssimas as oportunidades de se aproximarem do inimigo durante o combate para que houvesse a chance de se utilizar a baioneta ou a faca de trincheira – havia outros recursos mais eficazes prontamente disponíveis, como os fuzis e as metralhadoras. Por exemplo, José de Oliveira Ramos, oficial médico da FEB, aponta que, dos 1.862 ferimentos que contabilizou entre brasileiros, apenas três foram causados em combate corpo a corpo.
É certo que as narrativas dos correspondentes de guerra, que raramente tiveram a oportunidade de ir à linha de frente, contribuíram para a profusão de anedotas. O jornalista Joel Silveira escreveu sobre um sargento brasileiro que teria conseguido se livrar de um cerco dos alemães “de ‘lambedeira’ na mão e dando berros de insano”. Já o veterano Leonercio Soares, que realmente teve a chance de combater contra os alemães, tinha outro ponto de vista: “destros em esgrima a baioneta, não seria uma insignificante faca que os iria intimidar”.
É natural que tenha surgido uma série de fábulas como essas. Toda unidade militar precisa reforçar seu moral para o combate e instigar o espírito de corpo, e as bravatas são uma parte importante neste processo. Mas é interessante perceber como as narrativas mais exacerbadas da FEB na Itália remetem a elementos da cultura nacional sem relação com a Segunda Guerra e se aproximam da celebração do “jeitinho” brasileiro de resolver problemas. A criatividade seria o recurso empregado para que pudessem ser superadas as dificuldades de origem. A bugiganga tecnológica americana inventada para os rigores do inverno teria sido superada pela gambiarra com palha. O combativo militar alemão teria sido vencido pela “malandragem” de carregar peixeiras.
O ímpeto do avanço brasileiro sobre o vilarejo de Montese foi preocupante para os alemães, gerando a maior concentração de artilharia na jornada de combates do dia 14 de abril de 1945. As baixas neuropsiquiátricas da FEB foram semelhantes às das divisões americanas na Itália – cerca de 350 de um grupo de 15.000 homens em oito meses de combate – o que mostra que os soldados brasileiros estiveram tão expostos aos rigores do front quanto seus companheiros de armas das divisões americanas.
A FEB concluiu a campanha como um importante elemento no avanço Aliado pelo norte da Itália. Nos combates que antecederam a rendição de Fornovo, quando 14.779 alemães e italianos se tornaram prisioneiros em dois campos instalados pelos brasileiros, a taxa de baixas fatais entre o inimigo foi cinco vezes maior do que as perdas do Brasil.Mas, mesmo com as recentes pesquisas feitas a partir da documentação de campanha – estudos de campo e narrativas e diários de combatentes –, a ideia do “jeitinho de fazer a guerra” continua em voga. Tanto o triunfalismo quanto o provincianismo dos combatentes brasileiros ainda contribuem para consolidar uma imagem pueril da experiência de guerra vivida pela FEB, ao darem a impressão de que o improviso bastou para derrotar um inimigo calejado e senhor do terreno.
Cesar Campiani Maximiano é autor de Barbudos, Sujos e Fatigados. São Paulo: Grua Livros, 2010.
Saiba Mais - Bibliografia
FERRAZ, F.C. Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
MASCARENHAS DE MORAES, J.B. A FEB pelo seu Comandante. Rio de Janeiro: Bibliex, 2003.
MAXIMIANO, C.C.; Bonalume Neto, R. Brazilian Expeditionary Force in WWII. Londres: Osprey Publishing, 2011.
OLIVEIRA, D. Os Soldados Alemães de Vargas. Curitiba: Juruá, 2008.
Aprendendo com o inimigo
Cesar Campiani Maximiano