- Em pouco mais de duas semanas, a cena histórica já estava registrada em pintura e era exibida publicamente. Em 3 de dezembro de 1889, o Diário de Notícias anunciou a exposição do “belo quadro devido ao hábil pincel do paisagista Oscar Pereira da Silva”, no ateliê Paris, centro do Rio de Janeiro. A obra retratava “o grandioso ato da Proclamação da República efetuado no campo da Aclamação, no mesmo campo onde fora outrora levantado o Império”. Elogiada pelo articulista por “representar tudo quanto na ocasião se deu”, já havia sido vista até pelo presidente, o marechal Deodoro da Fonseca. Mas, depois de ampla exposição inicial, seu paradeiro permaneceu desconhecido por mais de um século.Silenciada nos estudos dedicados ao pintor fluminense Oscar Pereira da Silva (1867-1939), a pintura parece, enfim, ter sido localizada. Evidências coletadas na imprensa do período indicam que o quadro Proclamação da República, pertencente ao Museu Casa de Benjamin Constant – cuja datação e assinaturas são desconhecidas – é o mesmo que foi exposto em fins de 1889 no ateliê Paris.A primeira pista foi encontrada no jornal O Paiz do dia 31 de dezembro de 1890. Ele informava que um quadro de Pereira da Silva havia sido reproduzido na revista portuguesa O Occidente. E, de fato, na edição de 21 de dezembro de O Occidente vê-se a imagem de uma pintura atribuída ao “Sr. Oscar da Silva, artista brasileiro”, e a descrição de que representa “a artilharia em frente do quartel de Sant' Anna, salvando com vinte um tiros a proclamação da república feita pelo general Deodoro, Quintino Bocayuva e Benjamin Constant”. As informações sobre a tela ficaram ainda mais completas com a identificação de outra nota, publicada no Jornal do Commercio em 16 de março de 1939, logo após a morte de Oscar Pereira da Silva. A passagem recorda que o artista, “encontrando-se no Rio por ocasião da proclamação da República e tendo assistido ao ato, do edifício da Prefeitura, esboçou a cena no momento, reproduzindo-a depois em magnífico quadro histórico elogiado pelo seu protagonista o Marechal Deodoro, figurando hoje na Casa de Benjamin Constant”.Como síntese do episódio, o pintor escolheu registrar o momento em que a guarda está aquartelada diante do Ministério da Guerra, saudando a proclamação da República. Há um grupo central no qual, apesar do tamanho apequenado das figuras, possivelmente estão Deodoro e outros protagonistas do feito que derrubou o Império. Eles estão diante dos canhões que, ao dispararem as salvas de tiros, produzem uma névoa que se espraia no ar. Próximo do primeiro plano, oficiais se ombreiam em posição de guarda, todos de costas para o observador, criando uma barreira humana à frente da massa de populares que, cheia de entusiasmo, se aperta para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Apenas homens brancos, muitos deles “encartolados”, assistem à ação, que mais se assemelha a uma parada militar. Mulheres, homens negros ou religiosos não são vistos no meio da multidão.Realizada praticamente no calor dos acontecimentos, a pintura de Oscar Pereira da Silva satisfazia à carência de imagens do novo regime que se instaurava. As motivações do artista ao idealizar aquele quadro provavelmente estavam atreladas à situação de impasse que vivia. Em 1887, a Academia Imperial de Belas Artes abriu inscrições para o “Prêmio de Viagem ao Exterior”, a mais importante premiação outorgada pela instituição a seus alunos. Quando discutiam sobre a escolha dos aprovados, um desentendimento se instaurou entre os docentes. Composta por Bethencourt da Silva, Maximiano Mafra e José Maria de Medeiros, a comissão julgadora decidiu premiar Oscar Pereira da Silva. Mas dois professores se opuseram: mesmo excluídos do grupo de jurados, Rodolpho Bernardelli e Zeferino da Costa decidiram opinar, manifestando sua preferência pelo quadro submetido por outro aluno, Belmiro de Almeida.“Falta de originalidade” e “viciado em adquirir as fórmulas antigas e convencionais” foram duas das críticas feitas à tela "Flagelação de Cristo", de Pereira da Silva, pelos professores descontentes, enviadas numa petição para a princesa Isabel junto com um pedido para que o concurso fosse anulado. Os embates estéticos em disputa extrapolaram os muros da Academia, chegando aos principais jornais da Corte, que endossaram as críticas e posicionaram-se contra a obra de Pereira da Silva. Convocado a resolver a questão, o poder Imperial decidiu, em março de 1888, adiar o resultado do concurso.A estratégia do artista, ao apressar os pincéis para expor aos olhos do público sua tela sobre a Proclamação da República, logo após o dia 15 de novembro de 1889, pode ser compreendida como uma forma de mobilizar para si a atenção dos novos atores políticos que ascendiam ao poder e, assim, revisitar a contenda do “Prêmio de Viagem de 1887” – uma “ruidosa questão” das Belas Artes, legada pelo Império à nascente República.A manobra parece ter surtido efeito. A pintura atraiu rapidamente os olhares daqueles que despontavam em cores na pintura. O marechal Deodoro da Fonseca, como sublinha a nota do Diário de Notícias, estava ciente da existência da obra. E sua exposição no saguão do periódico O Paiz – logo após a exibição no ateliê Paris – denota o aceite do quadro por mais um dos envolvidos na queda do Império. Afinal, o jornal era propriedade de Quintino Bocaiuva, um dos protagonistas daquele momento histórico.A batalha pela premiação, porém, não havia chegado ao fim. No dia 16 de maio de 1890, Pereira da Silva ainda redigiu, de seu próprio punho, uma petição direcionada ao então ministro de Estado da Instrução, Correios e Telégrafos, outro dos diretamente envolvidos na proclamação a República: Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Na carta, expôs seu direito a ser pensionista no estrangeiro, desautorizado pela “ex-princesa Regente, por que se queria enviar outro que o suplicante”. Após as consultas ao diretor da Academia para verificar a veracidade do requerimento, o pedido foi enfim atestado por Constant. Meses depois, ele enviaria ao ministro da República dos Estados Unidos do Brasil, Gabriel de Piza, em Paris, o pedido para que acolhesse o jovem pintor na cidade, onde se estabeleceria por cinco anos.Não se sabe ao certo se foi o próprio Benjamin Constant quem adquiriu o quadro para a sua residência ou se esta foi uma oferta feita pelo pintor, após consentimento do ministro ao seu Prêmio de Viagem. De qualquer forma, a tela figurou na Exposição Geral da Escola Nacional de Belas Artes, aberta em abril de 1890. Depois dessa visibilidade inicial, a circulação da imagem acabou se tornando restrita, pois a tela ficou reclusa na residência de Constant por muitos anos. Pouco acessada até 1982, quando se deu a abertura do Museu Casa de Benjamin Constant, a tela passou então a suscitar dúvidas quanto à autoria e à datação.Por tudo isso, a tela de Pereira da Silva não se cristalizou no imaginário nacional como mais uma representação possível do momento em que Deodoro deu início à República, mesmo em se tratando de uma das primeiras pinturas sobre o tema.Agora, com os documentos que contribuíram para elucidar as questões sobre suas origens, a pintura passa a ter grande importância nos estudos sobre a trajetória percorrida por Oscar Pereira da Silva. Talvez ela seja uma tela-chave que ajude a recompor todo o quebra-cabeça dos momentos que antecederam o difícil embarque do artista para Paris, em 1890. Mais que isso: com as dúvidas desfeitas, a obra finalmente sai da sombra para, quem sabe, ganhar espaço nos debates em relação às diferentes representações visuais elaboradas sobre aquela manhã de 15 de novembro.Carlos Lima Junior é coautor de A Batalha do Avaí: a beleza da barbárie – a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo (Editora Sextante, 2013).Saiba maisCARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. 17.ed. São Paulo: Cia das Letras, 2007.CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Belmiro de Almeida (1858-1935), Oscar Pereira da Silva (1867-1939) e o polêmico concurso para Prêmio de Viagem de 1887”. Anais do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, São Paulo, 2006.CHISTO, Maraliz de Castro Vieira. “Pintura de História no Brasil do século XIX: panorama introdutório”. Revista Arbor, 2009.FORMICO, Marcela. “Oscar Pereira da Silva, último bolsista do Impéri”. Anais do XXXII Comitê Brasileiro de História das Artes, Brasília, 2012.SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. “A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX”. Tempo Social, vol. 17, nº 1, 2005.
Apressados pincéis
Carlos Lima Junior