Apropriação indevida

Neil Safier

  • Luís XIV e Colbert em visita à Academia de Ciências de Paris (1671). O Rei Sol e seu ministro prestigiavam os letrados de seu tempo. Gravura de Sebastian Le Clerc.Na mítica cidade do El Dorado, em meio a florestas exuberantes, um cacique mergulhava todos os dias numa lagoa de puro ouro, circundado por seus fiéis súditos. Perto dali, às margens de um imenso rio, cujo nome viraria símbolo da extraordinária beleza e biodiversidade do mundo tropical, mulheres guerreiras – chamadas de “Amazonas” por sua semelhança com as da Antiguidade grega – reuniam-se longe dos seus parceiros masculinos, com os quais só se encontravam uma vez por ano, para assegurar a reprodução do seu grupo. Essas histórias maravilhosas, originárias do centro do continente, espalharam-se pelo mundo no século XVI, logo após a chegada dos primeiros viajantes à América do Sul. Na Europa, a imagem que se criou da bacia amazônica era repleta de lendas e fantasia.

    Os acadêmicos franceses que em 1745 foram assistir à conferência de um colega, recém-chegado das Américas, na Academia Real das Ciências de Paris, esperavam uma desmitificação dessas crenças exageradas. Coube a Charles-Marie de La Condamine (1701-1774) – astrônomo, geógrafo e amigo dos mais conhecidos filósofos franceses, como Voltaire (1694-1778) e Diderot (1713-1784) – refutar esses mitos na sua fala pública. No entanto, não foi exatamente isso que ele fez.

    Segundo uma das revistas literárias mais celebradas da França, o Mercure de France, na edição de agosto de 1745,  La Condamine “entreteve” a assembleia com o relato da sua descida pelo rio das Amazonas, no qual ele incluiu comentários sobre plantas e animais da região, costumes, crenças e línguas indígenas – sem esquecer de mencionar os mitos e lendas sobre a raça de mulheres guerreiras. Por meio da narrativa de suas próprias experiências, a palestra – publicada mais tarde sob o título Relação abreviada de uma viagem feita no interior da América meridional (1745) – transportou a plateia para um mundo de florestas nevoentas, “encantados” palácios dourados e guerreiras ferozes e nuas. A conferência incluiu também as primeiras descrições da célebre “árvore-da-borracha” amazônica (Hevea brasiliensis) e referências às terríveis flechas indígenas envenenadas com curare. As evocações coloridas da flora e da fauna tropicais forneceram uma bela imagem do continente sul-americano, desde as montanhas andinas da América espanhola às terras baixas da Amazônia portuguesa, e dali até o Atlântico.

    La Condamine atiçava de propósito a curiosidade e alimentava as crenças do seu público, formado por habitués de salões, cafés e casas literárias. “As amazonas realmente existiam?”, perguntavam eles. La Condamine respondia que era bem plausível, pois um índio lhe dissera que as tinha visto, e a existência dessas guerreiras não era mais improvável que a dos escravos fugidos que se escondiam dentro da mata para escapar dos seus senhores. Queriam saber se ainda existiam vestígios da cidade de El Dorado. La Condamine não os vira pessoalmente, mas afirmava ter descoberto a localização de um lago que tinha todas as características da “Cidade de Ouro” evocada por Pedro Teixeira,  português que foi o primeiro a desbravar o Rio Amazonas, em expedição de 1639. Desta forma, ele correspondia às expectativas de um público mais amplo que, nas suas palavras, tinha o direito de saber a verdade sobre certos mitos ligados à história do continente sul-americano.

    Na época da passagem do viajante pela bacia amazônica, não havia limites fixos entre os territórios equatoriais das coroas espanhola e portuguesa. Existia ali uma série de zonas de interação frequentadas por índios, missionários, comerciantes, tropas de resgate de escravos, sertanistas e, ocasionalmente, por viajantes europeus. O relato de La Condamine refletia o caráter híbrido e os diversos fluxos desta zona de fronteira, entrelaçando descrições geográficas – os cursos de rios, a composição da floresta, a topografia – com um catálogo de comportamentos dos povos indígenas que ele observara – ou dizia ter observado – na sua viagem rio abaixo. Suas conclusões sobre o caráter dos nativos não poderiam ter sido mais contundentes, e tiveram um efeito bastante negativo sobre a visão europeia do ameríndio – já que os viajantes eram, na maioria das vezes, percebidos pelos leitores europeus como observadores confiáveis. La Condamine explicou que a insensibilidade era a base do caráter dos índios: eles eram mentirosos, crédulos, inimigos do trabalho e incapazes de reflexão. Concluiu que “eles passam a vida sem pensar,” e que “envelhecem sem sair da infância, da qual eles conservam todos os defeitos”.

    De onde La Condamine teria tirado tais afirmações cáusticas, levando-se em consideração o fato de que sua viagem de volta pelo rio foi bastante acelerada? Na realidade, para compor o retrato etnográfico do índio americano, o viajante tomou emprestadas muitas observações de relatos manuscritos, sem citar suas fontes, e se aproveitou da sabedoria de eruditos americanos para organizar suas conclusões geográficas. A fim de compilar o Rio Amazonas para um público europeu, La Condamine recolheu materiais extremamente diversificados, criando a ilusão de que haviam sido coletados durante suas próprias observações.

    Um dos textos no qual ele provavelmente se baseou foi o relato manuscrito de Jean Magnin (1701-1753), um jesuíta suíço. Algumas das conclusões de La Condamine a respeito dos povos nativos da região parecem ter sido retiradas diretamente desta obra, que não chegou a ser publicada (La Condamine havia dito que cuidaria pessoalmente desta edição, mas não cumpriu a promessa). Ao descrever a nação dos omáguas, por exemplo, Magnin afirmara que eles achavam “belo ter uma face como a lua”. Na versão de La Condamine – que escreve como se os índios lhe tivessem descrito diretamente tais características de sua própria cultura –, “esses povos têm o costume bizarro de comprimir a testa de suas crianças recém-nascidas entre duas tábuas, para deixá-las com essa estranha forma que, segundo dizem, lembra a lua cheia”. O viajante apresentou esses elementos como se fossem o resultado de um estudo aprofundado, e não de furtivas anotações de um observador de passagem. No final, deixou uma imagem extravagante de povos cujas características ele não havia estudado com o devido rigor – exatamente o oposto do que faria, dois séculos mais tarde, seu compatriota, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), no seu Tristes trópicos, clássico estudo sobre os índios brasileiros.

    Mas foram os seus argumentos a favor da existência das amazonas americanas que mais causaram alvoroço entre seus leitores europeus. Cinquenta anos mais tarde, o explorador prussiano Alexander von Humboldt (1769-1859) teve de responder mais explicitamente a essa questão e afirmou que La Condamine talvez tivesse defendido a existência das amazonas “para se aproveitar de uma generosa recepção numa sessão pública da Academia, e de sua ansiedade por [ouvir] coisas novas”.

    O savant francês estabeleceu ainda uma relação entre a realidade das amazonas americanas e a história mais ampla dos quilombolas do Novo Mundo. Tirou conclusões a partir de sua própria experiência: entre Belém do Pará e Caiena, ele compartilhou sua jangada com um escravo negro que havia fugido das crueldades do cativeiro na Guiana Francesa para buscar refúgio em território português. “É bastante comum,” escreveu La Condamine, “que escravos maltratados ou descontentes fujam em bandos pela floresta... e que ali passem muitos anos e, às vezes, toda sua vida, na solidão”. Em seguida, concluiu que da “vida errante” das ameríndias nascera a ideia de “se livrar do jugo de seus tiranos”, ou seja, dos seus maridos, e de viver independentemente deles, numa república à parte.

    Viajantes como La Condamine não viviam numa bolha, insensíveis e impermeáveis às circunstâncias sociais de seu entorno. Pelo contrário, a adesão do viajante ao mito amazônico devia muito à sua própria experiência de dividir um pequeno barco com um escravo fugido da Guiana Francesa e ao miserável estado das índias americanas que ele observava ao longo da sua viagem pelo rio.

    A Relação abreviada, mais que qualquer outro relato contemporâneo, transmitiu aos seus leitores uma imagem bastante negativa do índio americano e de sua cultura – uma visão repetida inúmeras vezes na literatura filosófica da época. O que ficou menos explícito foi a maneira como La Condamine adquiriu sua reputação, que muito deve à contribuição de terceiros. Fossem eles jesuítas ou escravos fugidos, o certo é que esses indivíduos forneceram grande parte dos testemunhos oculares com os quais o viajante conseguiu construir suas imagens coerentes, às vezes pejorativas e, sobretudo, míticas do mundo amazônico do século XVIII.

    Neil Safier é professor de História da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver (Canadá), e autor de Measuring the New World: Enlightenment Science and South America (University of Chicago Press, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia

    LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
    MELO FRANCO, Afonso Arinos de. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
    MEIRELLES FILHO, João. Grandes expedic?o?es a? Amazo?nia brasileira: 1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009.

    SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.