Biblioteca, escrivaninha e o célebre divã. Eis tudo o que se esperaria encontrar no escritório de Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Tudo, se ele não fosse um aficionado por arqueologia. O local de trabalho era enobrecido e embelezado por mais de 2 mil peças antiquíssimas: esculturas de porte médio ou menor, fragmentos de pintura em gesso, papiro e linho, recipientes e pedaços de vidro. Havia objetos gregos, romanos e asiáticos, mas Freud tinha especial predileção pela cultura egípcia, que compreendia quase metade de sua vasta coleção.
Por quase meio século, o psicólogo austríaco mostrou-se um colecionador que conhecia profundamente a arte antiga. A inclinação já se fazia presente na adolescência, quando se revelou um entusiasta estudante de latim e grego. Mais tarde afirmaria que, desde aquele primeiro contato com a extinta civilização greco-romana, estudar culturas antigas lhe trouxe conforto e consolação ao longo dos inúmeros dissabores de sua vida atribulada.Tinha uma curiosa relação com Roma: entre 1895 e 1898, tentou visitar a cidade nada menos do que cinco vezes, mas uma irresistível inibição o fazia voltar atrás. Em sua obra Interpretação dos Sonhos (1900), ele próprio interpretou tal fenômeno relacionando-o com sua origem judaica e o crescente antissemitismo de então: nos tempos de estudante identificava-se com Aníbal, general cartaginês de origem fenícia, semítica, portanto contra Roma, inimiga figadal de Cartago. Como aquele grande general, Freud sentia-se inibido, constrangido a não entrar em Roma. Com a publicação daquela obra, viu-se enfim livre do estranho preconceito, tornando-se um empolgado visitante da cidade italiana e, claro, de suas antiguidades.Costumava dizer, com graça, que o trabalho do arqueólogo se assemelha ao do psicanalista: ambos empenhados em descobrir algo entranhado no passado. “O psicanalista, como o arqueólogo, deve escavar camada após camada da psique do paciente antes de ter acesso aos profundos e valiosos tesouros”. Freud adorava olhar e tocar algumas de suas antiguidades sobre a mesa em que trabalhava, e ficava profundamente grato aos amigos e admiradores que lhe conseguiam novos artefatos. Sua coleção era imensa, integrada por objetos valiosos de culturas de todas as partes do mundo, até mesmo da China. O acervo tinha nada menos que 3 mil artefatos, vasos, gravuras, ushabtis (pequenas efígies egípcias colocadas nas tumbas para servir ao falecido na eternidade), bustos, fragmentos de papiro, pedras preciosas, estampas. Chamava carinhosamente as preciosas estatuetas sobre sua escrivaninha de “deuses velhos e encardidos”.Em 1938, certo de que as autoridades nacionais-socialistas, ao anexarem a Áustria à Alemanha, iriam confiscar sua coleção de antiguidades, escolheu o artefato de sua predileção para fazer sair de seu país: uma pequena imagem da deusa Atena – certamente porque este era, para Freud, o mais significativo símbolo da racionalidade e da sabedoria. Foi um período de grande tensão na vida de Freud. A perseguição aos judeus austríacos fez com que médicos, advogados, professores universitários e intelectuais abandonassem a Áustria de forma clandestina ou oficial. Freud, sua mulher Martha e sua filha Anna, mesmo considerados inofensivos pelas autoridades, dependiam de autorização para deixar o país, e ela demorou a ser expedida. A este problema somava-se outro, para ele talvez tão importante quanto a vida e a liberdade: sua amada coleção de antiguidades. Ela corria sério risco, dada a sua importância cultural, de permanecer na Áustria nazista contra a vontade de seu aflito proprietário.
As autoridades mostravam-se volúveis e inconsequentes e, enquanto o acervo não era liberado, Freud passava dias de apreensão. Procurava distrair-se passeando por sua querida Viena, à qual, bem sabia, nunca mais iria voltar. No dia 23 de maio de 1938 veio a boa notícia: todas as peças foram liberadas por Hans Demel, tolerante diretor do Museu de História da Cultura de Viena, mediante uma taxa de 400 marcos alemães.Exilado na Inglaterra, afirmou em carta enviada ao amigo escritor e compatriota Stefan Zweig: “Fiz muitos sacrifícios pela minha coleção de antiguidades gregas, romanas e egípcias e, na verdade, tenho lido muito mais sobre arqueologia que sobre psicologia”. Mudou de residência pela última vez em setembro de 1938. Morava em Hampstead quando pôde se cercar de novo de seus queridos artefatos. Morreu apenas um ano depois, e o destino das suas cinzas fez jus ao seu amor pela arqueologia: os restos mortais do criador da psicanálise repousam depositados em uma legítima urna grega do século III antes de Cristo.Marcus Acquaviva é professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo.Saiba MaisBURKE, Janine. Deuses de Freud – A coleção de arte do pai da Psicanálise. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2010.PRICE, Simon & THONEMANN, Peter. The birth of classical Europe – A History from Troy to Augustine. London: Penguin Bookes, 2011.ZUSMAN, Waldemar. Sigmund Freud e a Arqueologia – Sua coleção de antiguidades. Rio de Janeiro: Salamandra Consultoria Editorial S/A, 1994.
Arqueologia no divã
Marcus Cláudio Acquaviva