Arquibancada e palanque

Maurício Drumond

  • Copa do Mundo no Brasil. É tempo de festa, empolgação, mobilização... ou de protestos? Para quem estranha que esporte e política possam habitar o mesmo noticiário e dividir as atenções da nação, vale lembrar que isso já é tradição no país.

    Praticado entre nós desde o final do século XIX, o futebol começou a se organizar nacionalmente em 1916, com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). A entidade já nasceu sob o signo da política: foi ratificada em uma reunião na casa de Lauro Müller, então ministro das Relações Exteriores. O país corria o risco de não participar do primeiro campeonato sul-americano, organizado na Argentina, e o diplomata interveio para unir grupos que lutavam pelo controle do futebol no país e assegurar presença no evento.

    O Brasil foi sede da terceira edição do campeonato, em 1919, no Rio de Janeiro. A grande mobilização de torcedores e a ampla cobertura da imprensa demonstravam a força do futebol. Três anos depois, o evento voltou a ser realizado na cidade, em tempos mais turbulentos: em 1922, centenário da Independência, quando o país viveu instabilidade política e cultural, com a sucessão de Epitácio Pessoa e a eleição de Artur Bernardes, o levante dos 18 do Forte em Copacabana, a criação do PCB e a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo. O futebol emergia como um marco de unidade nacional. Como prévia da convocação da seleção, realizou-se pela primeira vez um torneio de pretensões nacionais: o campeonato brasileiro de seleções teve equipes representando sete estados e o Distrito Federal (o Rio de Janeiro).

    Com o início do governo de Getulio Vargas (1930-1945), a relação entre política e futebol ganhou ares oficiais. Festas cívicas eram realizadas em estádios, contando com a participação do presidente, como as celebrações do 1º de maio, no estádio do Vasco da Gama em 1940, 41 e 42. Anotações de Getulio em seu diário mostram sua atenção para as mobilizações populares na vitória brasileira sobre o Uruguai na Copa Rio Branco de 1932, em Montevidéu, e durante a Copa do Mundo de 1938, na qual sua filha, Alzira Vargas, foi nomeada a “madrinha” da Seleção Brasileira. “A população da capital ficou empolgada pela descrição da partida, ouvida através do rádio, até que esta se decidisse pela vitória dos brasileiros”, escreveu o presidente, em 5 de junho de 1938, sobre o jogo Brasil x Polônia. Comentaria também as partidas seguintes, até a eliminação: “A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se se tratasse de uma desgraça nacional”.

    O futebol era importante demais para permanecer longe do controle direto do governo. Em 1942, Vargas cria o Conselho Nacional de Desportos (CND), órgão que passa a supervisionar clubes e federações, exigindo que sigam suas normas. Entre elas a portaria que proibia aos clubes adotar nomes ligados a nações estrangeiras – sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi o que levou equipes como os dois Palestra Itália, de São Paulo e Belo Horizonte, a se transformarem em Palmeiras e Cruzeiro, respectivamente.

    Terminou a ditadura do Estado Novo (1937-1945), houve a redemocratização do país, mas os governantes continuaram se utilizando do esporte para ganhos políticos. Juscelino Kubitschek associou o seu mandato (1956-1961) a grandes conquistas esportivas. Em época de euforia nacional com o Plano de Metas (“50 anos em cinco”) e a construção de Brasília, a vitória na Copa do Mundo de 1958 coroava a imagem de nação vitoriosa, que se via entre as principais potências mundiais. Glória reforçada pelo triunfo no Mundial de Basquete em 1959, os títulos da tenista Maria Esther Bueno em Wimbledon em 1959 e 60, e as vitórias de Eder Jofre no boxe. Em todas essas conquistas, Juscelino buscava aparecer na mídia junto aos atletas brasileiros.

    A ditadura militar iniciada em 1964 foi o período em que o futebol esteve mais identificado com a intervenção governamental. Militares passaram a exercer a presidência do CND e da CBD, assim como de diversas federações esportivas regionais. O apogeu da utilização do futebol como instrumento político foi a Copa do Mundo de 1970. A propaganda maciça em torno do certame, em meio ao período do “milagre econômico”, mobilizava o povo em torno de motes nacionalistas: “Pra frente Brasil!”. A paixão do presidente Médici (1969-1974) pelo futebol ajudava: o presidente aparecia nos jornais assistindo aos jogos, com o radinho de pilha junto à orelha, ou fazendo embaixadas após o título mundial.

    Criado no ano seguinte, o Campeonato Brasileiro também obedecia aos objetivos do governo, representando o ideário de integração nacional. Em sua primeira edição, a Série Especial (1ª divisão) contava com 20 equipes de oito estados. Com o passar dos anos, o número de equipes e de estados representados aumentou gradativamente, até alcançar incríveis 94 times de 20 estados, em 1979. É dessa época a expressão “onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”, associando a entrada de clubes no campeonato à necessidade do partido governista de aumentar sua base aliada e fortalecer seus resultados, após a derrota nas eleições gerais de 1974.

    Ainda hoje o esporte funciona como elemento de aproximação entre o Estado e o povo. Governantes recebem atletas campeões nos palácios ou usam jargões futebolísticos em suas comunicações. Já saiu de moda a tese segundo a qual o futebol funcionaria como “ópio do povo”, provocando alienação política. O esporte pode até ser palco de contestação, como demonstraram jogadores politizados, como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates. Talvez embalados pelas manifestações populares de 2013, hoje um grupo de atletas reivindica seus direitos profissionais publicamente no chamado “Bom Senso Futebol Clube”.

    Com a Copa no Brasil, a política entra em campo de novo. Resta saber de que lado.

    Maurício Drumond é professor do Colégio Liessin e da Escola Suíço-Brasileira do Rio de Janeiro eautor de Estado Novo e Esporte: a política e o esporte em Getúlio Vargas e Oliveira Salazar (1930-1945), (7letras, 2014).

    Saiba Mais:

    AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional.  Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2002.

    COUTO, Euclides. “A esquerda contra-ataca: rebeldia e contestação política no futebol brasileiro (1970-1978)”. Recorde: Revista de História do Esporte, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 2010. Disponível em: http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde/pdf /recordeV3N1_2010_12.pdf. Acesso em: 15/01/2011.

    SARMENTO, Carlos Eduardo. A regra do jogo: uma história institucional da CBF. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.