Arquivos Implacáveis

Muza Clara Chaves Velasques

  • No domingo ensolarado de 12 de maio de 1946, estreava o caderno literário Letras e Artes, do jornal A Manhã. Ainda nesse mês, as páginas centrais trariam mais uma novidade: a seção “Arquivos Implacáveis”, de João Condé (1912-1996). Neles, o jornalista pernambucano reunia comentários e informações sobre os mais diversos escritores brasileiros, publicando desde perfis e detalhes biográficos, curiosidades e entrevistas bem-humoradas, até trechos de manuscritos e poemas inéditos de autores jovens ou consagrados. A abordagem singular transformava os escritores em personagens e alimentava a curiosidade dos leitores em relação às formas de produção das obras e à vida privada dos literatos mais conhecidos.

    A cidade do Rio de Janeiro vivia intensa vida literária desde a década anterior.  Os “homens de letras” dispunham, nos anos 1930-1940, de um vasto campo para suas publicações: revistas, suplementos e colunas literárias em jornais diários, além de casas editoras. A época conheceu uma fase de profissionalização do escritor, que passava, ao menos potencialmente, a ser capaz de viver de livros.  O desenvolvimento do mercado editorial se refletiu no aumento de tiragens, de pontos de vendas e do público leitor, além de regulamentar e, mesmo que de modo limitado, respeitar os direitos autorais. Os “Arquivos Implacáveis” tiveram papel de destaque na divulgação de obras e autores a partir desse período.

    O material de João Condé era fruto de uma prática bastante interessante e original de lidar com as pessoas e coisas literárias. Ele era um misto de secretário, arquivista e memorialista que colecionava e organizava em sua própria casa os originais dos documentos que conseguia com os escritores e que publicava em sua coluna. Por se tratar de uma “coleção”, os documentos eram “propriedade privada” de Condé, mas seu esforço tinha o objetivo de compartilhá-los com o seu público. E o jornal era o meio ideal para isso.

    A estratégia de Condé para obter originais era oferecer-se para datilografar os manuscritos dos escritores. Atender aos apelos do jornalista poderia ser tanto uma forma de agradar a um amigo quanto de livrar-se de uma parte desgastante do trabalho de preparação de um livro, mas era, com certeza, uma garantia de publicidade. E ele sabia valorizar seu papel, principalmente quando trabalhava em uma obra de porte, como no caso de Fogo morto, de José Lins do Rego, em que sua participação incluía assumir funções de revisor e editor. A atuação de Condé preservava os originais de grandes autores e também a relação dos literatos com sua criação:

  • “(...) José Lins cisma de me telefonar quase de madrugada para me ler trechos de um novo capítulo que acaba de fazer. (...) O mais curioso é que a impressão que se tem ao escutar o romancista falar do seu livro é de um leitor estranho que estivesse lendo o romance pela primeira vez, sem nem ao menos conhecer o autor.”

    Os “Arquivos implacáveis” eram divididos em várias seções. A seção “Diário” relatava as impressões de Condé sobre seus encontros com diferentes escritores, no esforço para conseguir o vasto material utilizado na preparação da coluna. “Confissões” era o título de outra das seções dos “Arquivos Implacáveis”, na qual Condé revelava “confidências” dos autores sobre a construção de seus livros, o porquê de tê-los escrito, se eram encomendados ou não, qual a intenção etc.  Encontramos ali Guimarães Rosa (1908-1967) falando de Sagarana ou  Érico Verissimo (1905-1975) revelando a trajetória de Caminhos Cruzados. Uma outra seção podia levar o leitor a conhecer diferentes aptidões dos ilustres escritores: Gilberto Freyre (1900-1987) aparece como caricaturista, Marques Rebelo (1907-1973) como poeta e Carlos Drummond de Andrade como desenhista.

    A grande marca era o humor com que o articulista registrava suas impressões. Uma graça que se prolongava em seções como “Galeria política”, “Álbum de família” e “Correspondência”. Na primeira, uma foto de luta de judô podia vir acompanhada da legenda “O governador Ademar de Barros quando se preparava para a luta livre da política”. Em “Álbum de família” havia preciosidades como a foto de Oswald de Andrade (1890- 1954), com a legenda: “aos onze meses de idade, quando só tinha sonhos inocentes e não sonhava ainda com a antropofagia e o Pau Brasil”. Na “Correspondência” apareciam desde cartas inéditas trocadas entre escritores até a “carta de Monteiro Lobato a sua genitora quando tinha 15 anos de idade”.

    Em “Poetas vistos por poetas”, Condé tenta tornar públicas as relações de amizade ou a admiração mútua entre os escritores. Uma divertida crítica a esta proposta é feita por Carlos Drummond de Andrade, ao comentar a troca de gentilezas entre ele e o poeta Augusto Frederico Schmidt (1906-1965):

  • “(...)Qual teria sido a intenção de João Condé: fazer-nos correr, a Schmidt e a mim, um páreo de gentilezas? Exigir de nós um julgamento crítico recíproco?Divertir-se, comprometer-nos?Chatear-nos?Quem sabe? Na dúvida, limito-me a confessar o meu acabrunhamento (...)”

    Mas não era sempre que Condé agradava. Segundo ele mesmo, às vezes provocava certo retraimento dos autores mais conhecidos.  Em uma das idas diárias à livraria José Olympio, um dos pontos de encontro dos literatos da época, o “implacável” revela que Graciliano Ramos o recebera com desconfiança. Ao tentar arrancar algumas confissões do escritor, ouve como resposta:

    – (...) Você vem com estas manhas e depois vai inventar lendas a meu respeito (...).

    E a conversa, segundo Condé, não pôde continuar porque o “seu” caro Graça se “fechou em copas”.

    A partir de 1948, uma nova seção surgiu nos “Arquivos”, com o nome “Flasch”. Publicava-se ali um “auto-retrato” de personalidades, quase sempre literárias. Passaram pelo perfil José Américo de Almeida, Jorge de Lima, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos e Carlos Lacerda, entre muitos outros. O questionário que gerava os perfis trazia perguntas sobre data de nascimento, altura, peso, estado civil, colarinho, gostos, leitura, bebidas, referências literárias e impressões sobre as letras e as artes no país. O “Flasch” de Graciliano Ramos (1892-1953), publicado em 1º de agosto de 1948, quando o autor estava com 56 anos, revelava:

  • “(...)Não gosta dos vizinhos./Detesta rádio, telefone e campainha.(...)/Sua leitura predileta: A Bíblia.(...)/É ateu./(...)Odeia a burguesia./(...)Gosta de palavrões escritos e falados./(...)Apesar de o acharem pessimista, discorda disto./Só tem cinco ternos de roupa, estragados./Refaz seus romances várias vezes. Esteve preso duas vezes./ (...) É-lhe indiferente estar preso ou solto./ (...) Seus maiores amigos: Capitão Lobo (um oficial conhecido na prisão em Pernambuco), Cubano (vagabundo encontrado na colônia correcional), José Lins do Rego e José Olympio./ Tem poucas dívidas./ Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construir estradas./ Espera morrer aos 57 anos.”

    Já Oswald de Andrade se dizia:

    “(...) antropólogo./ (...) péssimo correspondente epistolar / (...)Pessoalmente é pessimista ./ (...)Não tem amigos. / (...)Várias vezes foi homem rico, outras, homem pobre. / (...)Espera viver até os 83 anos para desgosto de muita gente.”

    O trabalho de João Condé nos “Arquivos Implacáveis”, segundo ele mesmo, deu-lhe uma notoriedade ora agradável, ora incômoda. Acabou criando uma personagem, na verdade, um “duplo”: o “homem dos arquivos”. Sua sanha curiosa à cata dos mais diversos vestígios da produção intelectual podia inclusive espantar algumas de suas fontes potenciais. Dizia ele que “o homem dos arquivos já é, pois, uma personagem desligada do autor. E que, por cometer algumas indiscrições, acabava por afugentar...”

  • Para o papel que exercia, de “guardião da memória literária nacional”, não poupava esforços. Foi o caso de sua “Missão em São Paulo”, quando se dedicou a resgatar os arquivos de Monteiro Lobato (1882-1948), então sob a guarda do crítico e biógrafo Edgard Cavalheiro (1911-1958), que o recebeu com alguma desconfiança. Ele tinha certeza de que a ida de Condé tinha o propósito de transferir a guarda da coleção.  Após conhecer os documentos, Condé se confessa arrependido de ter deixado todo aquele material escapar-lhe por entre os dedos. Lamenta o escrúpulo e a honestidade que o impediram de roubar ao menos uma das cartas de Lobato. Sem sucesso, concluiu ameaçadoramente que, um dia, o seu outro eu, “sem remorsos e preconceitos, se vingaria do fracasso do Condé honesto”, deixando agir um Condé implacável. As tentações, afinal, eram muitas. Ainda em São Paulo, por exemplo, ele esteve no gabinete do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969) e na Biblioteca Municipal, com o crítico Sérgio Milliet (1898-1966), bastante atento para que Condé não levasse nada sem sua autorização. Sua fama já era grande.

    Mas o próprio Condé traduz de forma bastante clara o seu papel e o entendimento do clima intelectual de sua época: “(...) para o futuro, tudo isso constituirá um acervo poderoso para um melhor conhecimento dos homens de letras do meu país. Sou um cidadão à margem da literatura, mas luto, aborreço, sofro, sonho, e amo verdadeiramente as coisas dos espíritos, procurando contribuir para que as gerações vindouras, através de documentos, confissões, depoimentos, exigências, tenham um conhecimento mais seguro do clima em que viviam os homens de letras desse nosso tempo.”

    Os “Arquivos Implacáveis” saíram no Letras e Artes até 1948 e fizeram de João Condé uma referência no mundo das letras, especialmente no que diz respeito ao espaço para publicação e divulgação dos trabalhos literários. Tanto que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) disse – e sua opinião vinha grafada como epígrafe desde o primeiro dia de circulação da seção: “Se um dia rasgasse os meus versos por desencanto ou nojo da poesia, não estaria certo de sua extinção: restariam os Arquivos Implacáveis de João Condé”. A preocupação do poeta com o destino de seus escritos era, sem dúvida, a melhor definição para o trabalho de Condé. Os “Arquivos Implacáveis”, que continuaram pela década de 1950 adentro na revista O Cruzeiro, foram um esforço consciente de fabricação de uma memória literária nacional.


    Muza Clara Chaves Velasques é professora de História da Universidade Veiga de Almeida e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, e autora da tese “Homens de letras no Rio de Janeiro dos anos 30 e 40” (UFF, 2000).