Arte divina

Adalgisa Arantes Campos

  • Livro da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, de 1807. O trabalho de Ataíde ficou restrito à folha de rosto.Considerado até hoje um dos maiores pintores do barroco mineiro, Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), mais conhecido como Mestre Ataíde, não pintou apenas telas e forros de igrejas. Há outra faceta do trabalho deste artista que também merece atenção: a ilustração de livros de compromisso de irmandades. Essas obras tinham um lugar importante dentro das associações leigas porque registravam os direitos e os deveres dos irmãos, as atribuições da mesa administrativa e o valor das anuidades dos filiados. 

    O livro de compromisso não era manuseado no dia a dia – como aqueles reservados aos termos, deliberações, receitas e despesas de irmãos – e tinha o valor simbólico de livro sagrado, já que, na maioria das vezes, era o documento fundador da irmandade. Assim, essas associações, quando angariavam recursos, tentavam aprimorar a ornamentação deles, cuidando de reservá-los a um calígrafo caprichoso.
    O miniaturista ou iluminador era o responsável pela pintura em pequena escala, em que são usadas tintas molhadas em goma arábica e depois diluídas em água para suavizá-las. O trabalho é concluído com a ponta do pincel, por meio de pontilhados e com pequenas linhas que se cruzam várias vezes.  O suporte pode ser o papel, o pergaminho e até a madeira. É um tipo de trabalho que requer paciência e cuidados, já que não pode ser retocado quando o fundo já se encontra seco. Mas não se sabe se o miniaturista e o calígrafo eram, em geral, a mesma pessoa.

    Mestre Ataíde fez trabalhos artísticos em dois desses livros de compromisso: o da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, da Freguesia de São Bartolomeu, e o da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, de Antônio Pereira. Atualmente, ambos estão sob a guarda do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

    No primeiro, datado de 1807, a atividade de Ataíde como miniaturista restringiu-se à folha de rosto, já que o restante do livro não tem tratamento artístico. O livro de compromisso da Irmandade de São Bartolomeu, de Ouro Preto, é decorado com aquarela e folha de ouro sobre papel, segundo a análise de Hélio Gravatá e Affonso Ávila, ambos estudiosos do barroco mineiro. Na miniatura, prevalecem aspectos puramente decorativos, como elementos em C, guirlandas e capitulares, excetuando a cruz e a coroa, que possuem um valor simbólico. Como Mestre Ataíde não foi agremiado dessa irmandade, certamente pintou o livro de compromisso quando esteve no arraial de São Bartolomeu, a serviço, para decorar o forro da nave de sua  Igreja Matriz.

    O outro trabalho mencionado de Ataíde foi a decoração do frontispício e das molduras das folhas dos estatutos da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, situada na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Pereira, também no distrito de Ouro Preto. Esses manuscritos de 1810 são decorados com aquarela, também segundo Gravatá e Ávila. É possível que tenha sido usada a técnica mista e folha de ouro nas pinturas de vocabulário rococó que emolduram as páginas,  nas capitulares e nos títulos de cada capítulo. No frontispício fica a imagem de Nossa Senhora da Conceição.

    No frontispício do livro dessa irmandade, Ataíde representa a iconografia tradicional de Nossa Senhora da Conceição, sob a sugestão formal direta daquela tela existente no altar-mor da Sé Catedral onde fora batizado. Ele também homenageia a titular da paróquia da santa: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Pereira, localidade voltada para a peregrinação. Sendo assim, o compromisso é da confraria de Nossa Senhora da Lapa, mas a iconografia alude a Conceição, bastante parecida com a Virgem do medalhão do forro da nave da Capela de São Francisco em Ouro Preto, cuja obra fora executada por Ataíde no mesmo período (1801-1812).

    A página seguinte do mesmo compromisso apresenta moldura com conchas, rocalhas, flores e graciosa capitular, trabalho típico de Ataíde. Analisando folha a folha, observa-se uma rubrica no canto direito superior com a mesma tinta e igual destreza da grafia do corpo do texto dos capítulos compromissais. Neste caso, é possível considerar que Mestre Ataíde foi o calígrafo e o ilustrador. No entanto, não se sabe se o pintor teria pertencido à mesa administrativa daquela irmandade.

    Ataíde estabeleceu ajustes com diversas irmandades e ordens terceiras, principalmente nas três primeiras décadas do século XVIII, período áureo de sua trajetória, quando se destaca como pintor de forros e de pintura de cavalete. Ao mesmo tempo em que executou a policromia de altares, talhas e imagens, ele desenhou cartas geográficas e ilustrou manuscritos. Ainda dedicou parte do seu tempo a dar aulas de pintura. Não se sabe, no entanto, o nome de quem teria ensinado o ofício de pintor ao jovem Ataíde.

    Em 1825, ele ilustrou o estatuto dos terceiros franciscanos do município de Mariana, em exposição no Museu Arquidiocesano da cidade. Esta obra constituiu, até o momento, a única referência sobre decoração de manuscrito do artista, autoria que só agora é constatada.
    Natural de Mariana, Mestre Ataíde cresceu na década em que o estilo rococó era introduzido em Mariana e Ouro Preto. Na Europa, as primeiras manifestações do rococó – termo que vem do francês rocaille (rocalha) datam da década de 1720 e geralmente envolviam a ornamentação e a ourivesaria. A moda acabou ficando para trás em meados do século XIX. Filho de Maria Barbosa de Abreu e do capitão Luiz de Costa Ataíde, homem branco – como está descrito em registro de óbito –, foi batizado no ano de seu nascimento, 1762, e crismado em 1780, na Catedral de Nossa Senhora da Assunção. A relação dele e de sua família com a religião católica era estreita, assim como de toda aquela sociedade colonial. 

    O nascimento de Ataíde coincidiu também com o período de consolidação da colonização: Mariana tornara-se sede de Bispado em 1745, com instalação do mesmo em 1748. O primeiro bispo, D. frei Manoel da Cruz (1748-1764), foi cuidadoso com a catequese, a moralização dos sacerdotes e dos paroquianos, o decoro e o embelezamento dos ritos sagrados. Na década de 1760, o Bispado de Mariana já possuía 43 igrejas paroquiais, 289 capelas a elas filiadas, que deveriam seguir as cerimônias regulamentadas pela Sé Catedral. O pintor viu de perto esta afirmação da cristandade luso-brasileira.

    Ataíde conviveu com irmandades, lugares sagrados e homens consagrados – um de seus dois irmãos, aliás, foi sacerdote. Sua devoção era grande, agremiando-se em ordens terceiras e irmandades, chegando a ser membro de dez delas, como Nossa Senhora da Boa Morte, Ordem Terceira de São Francisco da Penitência – ambas em Vila Rica – e Senhor do Bom Jesus de Matosinhos, de Congonhas.

    Segundo seu testamento, Ataíde também fora filiado à Irmandade Nossa Senhora da Lapa de Antônio Pereira. Acredita-se que ele tenha ilustrado e elaborado todo o compromisso referente a esta irmandade em sinal de devoção, ou seja, gratuitamente, ou para não ter que pagar as anuidades. Naquela época, era comum artistas trocarem pequenos trabalhos por esse tipo de ressarcimento. Tal costume se difundiu também entre os músicos do século XVIII e XIX em Minas Gerais.

    Embora tenha permanecido solteiro a vida toda, consta no testamento de Ataíde que, por “fragilidade humana”, teve quatro filhos com Maria do Carmo Raimunda da Silva. Sem oficializar matrimônio, ele viveu durante décadas com esta mulher parda e de condição social inferior. Este fato o levou a se considerar indigno, conforme declaração dele mesmo. Certamente por isso, quando morreu, em 1830, aos 68 anos, foi enterrado em campa, ou seja, uma sepultura logo à entrada do templo franciscano, lugar não muito qualificado. O homem religioso que chegou a ter reconhecimento artístico em sua própria época – não lhe faltando contratos para executar pinturas artísticas – acabou sendo enterrado em um lugar de pouco prestígio.

    Adalgisa Arantes Campos é professora da Universidade Federal de Minas Gerais e organizadora da coletânea Manoel da Costa Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e  técnicos (C/Arte, 2005).

    Saiba Mais - Bibliografia

    MORATO, Elisson Ferreira. Do conteúdo à expressão: uma análise semiótica dos textos pictóricos de Mestre Ataíde. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.

    MARTINS FILHO, Amilcar Vianna (org.). Compromissos de irmandades mineiras do século XVIII. Belo Horizonte: Claro Enigma/Instituto Cultural Amilcar Martins, 2007.