O caminho que desce da montanha conduz ao vale fechado onde a presença de uma igreja se afirma com certa relutância. Aderimos aos passos lentos de homens e animais que descem pela rua não pavimentada, entre fileiras de casas simples, da vila de Bananal. Alcançamos então a igrejinha, azulada pela distância e delimitada por traços sutis, que esboçam apenas a sua fachada. Reduzida à imagem plana de sua vista frontal, é o ponto de confluência de vários eixos dessa aquarela feita por Jean-Baptiste Debret entre 1827 e 1829. À sua frente, o caminho descendente forma o eixo vertical, enfatizado, por sua vez, pelas montanhas elevadas acima. Á sua esquerda morre a diagonal que nasce no canto do papel, desce entre as montanhas mais distantes e pela mata do morro mais próximo. À sua direita sobe uma trilha de casas e árvores que acompanha a horizontalidade do relevo desta parte da paisagem e funciona como elemento de ligação entre a vila e a natureza que a cerca.
O que estaria Debret nos dizendo com a presença ambígua dessa igreja de Bananal? Por um lado, elemento central, estruturante mesmo da ordenação espacial imposta pelo artista ao ambiente brasileiro. Por outro, existência quase imaterial, imagem pálida e fantasmática de uma construção religiosa. Para respondermos a essa questão, precisamos olhar com cuidado para a pequena aquarela, feita quando da viagem de Debret ao sul do Brasil, que se tornara independente poucos anos antes. Nesta ocasião, o artista aproveita para retratar cidades do sul fluminense, de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Há estudos que demonstram a inadequação de alguns dos títulos de identificação das localidades, e alguns desses equívocos foram corrigidos. Mas não interessa propriamente a discussão sobre a veracidade do que está representado na aquarela, mas sim o discurso histórico que a obra pretende nos comunicar.
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Para começo de conversa, temos que falar da própria técnica utilizada: a aquarela. Para artistas formados pelo neoclassicismo francês, como Debret _ sobrinho e aluno do grande artista neoclássico Jacques Louis David (1748-1825), pintor engajado no processo da Revolução Francesa, de seus primórdios ao período napoleônico _, este era um meio artístico menor, hierarquicamente inferior à pintura a óleo. A fluidez da tinta à base de água impossibilitava, por princípio, a rígida ordenação do desenho, considerado a base fundamental da arte neoclássica. Para os artistas desse movimento, o desenho era o princípio de honestidade da arte _ sem ele, as formas se diluiriam e, com elas, o rigor moral clássico que queriam fazer renascer. Em nítida oposição aos exageros decorativos do período rococó que os antecedeu, arquitetos e artistas buscam na legibilidade do traço, na racionalidade da composição linear, o ideal de uma verdade restaurada. O desenho se torna, então, o lugar privilegiado dessa experiência de ordem, clareza e delimitação das formas.
A aquarela, por sua vez, ainda que não dispense o desenho prévio, não se subordina com precisão às linhas de contorno. Entretanto, parece se adequar mais especificamente à atividade de Debret: retratar de forma rápida e apenas indicativa os lugares por onde passava. Vários artistas viajantes _ que visitam o Brasil no século XIX em busca de imagens da natureza e dos costumes do continente pouco conhecido _ usam a aquarela como meio propício a essa rapidez do registro. A grande maioria deles, por certo, não considerava essas aquarelas como obras acabadas. Ao contrário, somente se tornavam trabalhos de interesse quando transpostas para a pintura a óleo ou quando inseridas nos Atlas (álbuns de imagens) que acompanhavam os relatos dessas viagens. No caso de Debret, serviram de base para as gravuras que publicou quando voltou à França, em 1834, no seu famoso livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. A aquarela “Bananal”, contudo, não veio a fazer parte dessa publicação, o que a torna particularmente interessante para nós, por preservar esse aspecto inconcluso, vago.
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Cabe ainda dizer que a própria temática _ pintura de paisagem _ tampouco ocupava o topo na hierarquia dos gêneros neoclássicos. O tema histórico era sempre de maior destaque. As paisagens funcionavam, em sua imensa maioria, como fundo para as ações do homem, arquiteturas solenes para o desenrolar de cenas históricas ou mitológicas. Por outro lado, o paisagismo romântico que se desenvolve no início do século XIX, interessado nos aspectos pitorescos da natureza, não chega a contradizer esse ideal de serenidade. Segundo o antropólogo e naturalista oitocentista Sir John Lubbock (1834-1913), cuja obra tem grande penetração em toda a Europa, a natureza deve servir sempre a seu ideal de beleza, calma, ordem e quietude moral. Em seu livro Pleasures of Life (Prazeres da Vida), publicado na Inglaterra em 1887, ele adverte que, mesmo em suas experiências extremas, o mar, o deserto, o vulcão e as geleiras _ cuja descrição literária ou artística daria uma idéia sempre insuficiente –, nada deveria contradizer a preservação desse ideal pitoresco da natureza. Mas se vê obrigado a fazer uma ressalva com relação às florestas tropicais, especialmente as do Brasil, nas quais os troncos se erguem a alturas excessivas, proliferam as plantas trepadeiras e a folhagem forma uma abóbada ininterrupta. Nelas “nos sentimos perdidos, esmagados, cheios de temor, em uma palavra, aterrorizados”.
Também as regras artísticas que garantiam a estabilidade e a unidade das belas-artes européias eram desafiadas pela natureza tropical. Muitos foram os pintores viajantes que experimentaram verdadeiros dilemas artísticos diante da natureza tropical. Rugendas (1802-1858), por exemplo, considerou-a um desafio à ordenação espacial por meio da perspectiva linear, em uso desde a sua descoberta, no Renascimento. A natureza tropical não se oferecia como aquele cenário bucólico de vivência do ideal de tranqüilidade. Dá origem a uma natureza diversa, cuja consistência renuncia às estruturas da visibilidade européia. Era próxima demais, intrincada demais, envolvente demais, com árvores altas demais. De dentro dela, era realmente impossível criar a distância necessária entre o observador e a natureza para transformá-la em paisagem. A não ser por certos recursos artísticos, que exigiam dos pintores uma visão mais frouxa e maleável das antigas regras acadêmicas.
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Vejamos como Debret enfrenta esse dilema pictórico em sua aquarela “Bananal”. Em termos de ordenação espacial, sua obra renuncia à rigidez da perspectiva linear. Mas não o faz substituindo-a pela perspectiva aérea, atmosférica, muito utilizada pelos paisagistas pitorescos. É certo que sustenta algumas das convenções da pintura acadêmica, tal como a regra criada a partir da descoberta de Leonardo da Vinci de que, à distância, os objetos parecem envoltos numa bruma azulada. Ao pintar de azul as montanhas da serra ao fundo, Debret estaria mostrando a sua vinculação aos ensinamentos neoclássicos. Também a estruturação espacial em três planos pode ser relacionada à sua formação neoclássica: no primeiro plano, casas, cercas e árvores, criando uma distância mínima para a apreciação da paisagem; no segundo plano convivem a vila e a natureza ao seu redor, ordenadas pela centralidade da igreja; ao fundo, montanhas que se afastam na obscuridade azul. A despeito da horizontalidade da aquarela, predomina a sensação espacial de circularidade, reforçada pela ligeira curvatura que a sombra produz no chão, no primeiro plano.
Entre o espectador e a natureza, Debret coloca a pequena vila de Bananal, com suas casas regulares pela pequenez e pela simplicidade. Cria, assim, uma certa distância para a apreciação da paisagem. Mas a escala cromática faz com que vila e natureza não cheguem a se diferenciar nitidamente. Na realidade, entre os tons ocres quentes e os frios azuis, há uma espécie de tom geral, entre o verde e o castanho, que produz a sensação de uma única matéria para todos os elementos da aquarela. É como se a mesma cor fosse se adensando ou diluindo e, nesse movimento, servisse de suporte para os traços sutis que vão definindo as figuras. Como se houvesse uma espécie de pressão do ambiente sobre os corpos que ameaça a individuação das figuras. Mas que pressão poderia ser esta? O que Debret estaria nos dizendo com isso?
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É certo que, depois de uma década de estada em terras brasileiras, o artista francês havia vivenciado o aprendizado de uma decepção. O sentido missionário que cercou a chegada do artista ao Rio de Janeiro _ dar à cidade colonial uma feição moderna e digna de abrigar a corte portuguesa recém-instalada _ não havia encontrado propriamente as bases culturais para a sua realização. Algumas de suas aquarelas apontam para essa questão. É o caso de “Um cientista em seu gabinete” (1827), em que os elementos característicos do trabalho científico, como livros, globo, pássaros empalhados, cadernos de anotações e estantes envidraçadas, não são capazes de apagar a instabilidade da rede que sustenta um sábio de roupão e chinelos e das cadeiras e bancos que servem de suporte precário para as penas e tintas com que registra os seus conhecimentos. Ou ainda uma série de obras na qual Debret fala de sua atividade como artista. Em “Meu ateliê no Catumbi, Rio de Janeiro” (1816), o personagem principal _ o artista _ está a um só tempo ausente e central. Os quadros pendurados, a tela inacabada, o manequim do rei, os instrumentos de pintura, figuram uma ausência. Já em “Debret na pensão”, a questão se manifesta, ao contrário, na presença do artista desolado, sentado à mesa, desprovido de seus instrumentos de trabalho, em oposição ao escravo ao fundo, este sim realizando plenamente uma atividade produtiva. E não podemos deixar de citar um pequeno estudo, “Debret trabalhando”, no qual a figura do artista mal acomodado sobre uma almofada listrada, apoiando precariamente uma folha de papel sobre os joelhos e usando um curioso chapéu pontudo para se proteger do sol, tem algo de patético e dramático.
Nas paisagens, Debret parece estar falando de semelhante inadequação. Suas tentativas de ordenar pictoricamente a natureza apresentam a mesma precariedade de suas autocaracterizações como artista. A vivência duradoura no Brasil possibilitou ao artista compreender que, por mais que ele tentasse organizar a nova realidade que se descortinava à sua frente, sempre haveria algo resistindo ou escapando de suas estratégias artísticas. A natureza local, assim como a sua história, permaneceria permanentemente inarticulada, já que obedeceria a uma ordem completamente diversa. Neste sentido, aquilo que muitos quiseram ver como o estilo de Debret _ ou seja, a sua contribuição pessoal, subjetiva _ identifica-se, paradoxalmente, com a sua negação: é a natureza tropical que se expressa na estruturação espacial ambígua, na unidade cromática, no desenho sutil, na fachada fantasmática da igrejinha de Bananal.
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Se compararmos essa aquarela com outras que o artista fez na mesma viagem ao sul do Brasil, perceberemos alguns elementos comuns, que reforçam essa qualidade ambivalente. As imagens de Pindamonhangaba, Taubaté ou Mogi das Cruzes apresentam a mesma organização em três planos com uma cruz central, o mesmo ponto de vista ligeiramente superior do primeiro plano, a mesma unidade cromática, a mesma horizontalidade, a mesma circularidade espacial, a mesma imprecisão de limites entre as vilas acanhadas, mas regulares na disposição de suas construções, e a natureza envolvente. Como se Debret nos oferecesse, mais do que um documento sobre as nossas cidades de então, uma idéia cética sobre a distância intransponível que separa o Velho Mundo do Novo. Aqui, diante do ineditismo da realidade brasileira e sua natureza tropical, coube ao artista uma missão menos heróica do que aquela postulada pela arte neoclássica e seu engajamento na construção dos valores universalmente válidos de racionalidade.
Vera Beatriz Siqueira é doutora em História Social pelo IFCS/UFRJ e professora de História da Arte do Instituto de Artes da Uerj, onde também coordena o Programa de Pós-Graduação em Artes.
Árvores altas demais
Vera Beatriz Siqueira