Quando a Unidos da Tijuca, então campeã do carnaval carioca, aceitou o patrocínio do governo alemão para o desfile de 2013, o carnavalesco Paulo Barros se viu diante de uma tarefa aparentemente impossível. Como representar a cultura alemã em um evento tão genuinamente brasileiro? Não seriam completamente opostos brasileiros e alemães? O calor e o frio, a espontaneidade e o cálculo, a paixão e a lógica?
Barros conseguiu unir essas diferenças utilizando imagens da cultura alemã que lhe pareciam acessíveis a um público brasileiro mais amplo, como contos de fadas, tecnologia, fuscas e chocolate. De forma bastante significativa, o desfile se encerrou com uma comemoração da imigração alemã no Brasil. Sambistas representando os imigrantes foram seguidos por um bloco vestido alegoricamente como cevada – um produto trazido pela primeira vez para o Brasil por agricultores alemães e que é ingrediente fundamental para se produzir cerveja. O último carro, representando uma cervejaria, tinha como destaque bailarinos pintados dançando sobre tulipas de chope, inclusive com um colarinho artificial.
O que esse enredo da Unidos da Tijuca, batizado de “Alemanha encantada”, nos diz sobre a identidade e a cultura alemãs no Brasil de hoje? Muitos descendentes de imigrantes alemães responderiam "absolutamente nada". Entretanto, o desfile não foi vulgar ou pouco autêntico. Os símbolos alegóricos certamente eram destinados a representar as múltiplas diferenças presentes no Brasil, pressupondo que o público no Sambódromo reconheceria esses símbolos como alemães-brasileiros, ou seja, como uma identidade étnica.
Brasilidade e germanidade estão e sempre estiveram em constante negociação e diálogo. Outra “Alemanha encantada” ajuda a ilustrar isto. Este é o nome de um parque temático em Gramado (RS), cheio de prédios típicos alemães, referências aos irmãos Grimm e bares típicos que provocam as mesmas associações feitas na apresentação da Unidos da Tijuca. Os turistas vão ao parque para experimentar um pedaço da cultura alemã: beber um pouco de chope e comer salsicha. Mas não é só: por estar localizado em uma região marcada pela colonização alemã, o parque quer parecer realmente autêntico, a ponto de anunciar que sua paisagem é composta de árvores trazidas diretamente da Floresta Negra, na Alemanha. Tão autêntico que mesmo as árvores são imigrantes! A afirmação de autenticidade do parque Alemanha Encantada envolve tanto os visitantes locais quanto os externos, tanto os que afirmam pertencer a uma etnia alemã quanto aqueles que a ela não pertencem.
Outro exemplo dessa relação mútua é o famoso "café colonial", que é servido em todo o Sul para os turistas e os habitantes locais, particularmente em áreas de colonização alemã. Trata-se de uma quantidade impensável de pães, cucas, geleias, queijos, embutidos, sucos, café e diversos salgadinhos. Esta "tradição" evoluiu a partir do hábito de tomar Kaffee und Küchen (café e bolos) na hora do chá da tarde, diferente da hora do chá inglesa. No entanto, a enorme diversidade do estilo rodízio seria quase irreconhecível na Alemanha. De fato, o café colonial aqui servido revela o quanto os brasileiros adoram a variedade e a fartura. Mesmo a "cultura tradicional" deve ser reconhecida em seu contexto contemporâneo.
Mas o que de fato significa “ser alemão” na vida dos indivíduos e das comunidades? O período do Estado Novo (1937-1945), que culmina com a participação do país na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), modificou o lugar dos imigrantes alemães e de seus descendentes na sociedade brasileira. Durante oito anos, alemães, italianos, japoneses e outros grupos de imigrantes foram alvos de uma campanha de nacionalização. Também conhecida como campanha pela "brasilidade”, era uma tentativa de assimilar esses grupos ao que o governo Vargas considerava ser a cultura nacional brasileira. Escolas em línguas estrangeiras, jornais, instituições religiosas e clubes foram pressionados a usar somente o idioma português ou fechar as portas. No Rio Grande do Sul, até nos túmulos a linguagem foi regulamentada.
Após a guerra, acentuou-se o desejo de distanciar a cultura nacional da derrotada Alemanha nazista. Alguns começaram a preferir o termo "teuto-brasileiro" em vez de alemão-brasileiro (Deutschbrasilianer), a fim de enfatizar a identidade étnica e cultural, em vez de uma associação nacional ou política. Esse distanciamento se refletiu na taxa de naturalização de cidadãos alemães durante o período: entre 1940 e 1960, o número de alemães que se tornaram brasileiros foi 14 vezes maior do que no período entre 1920 e 1940, apesar de o número de imigrantes ser quatro vezes menor. Outros optaram por abandonar publicamente qualquer expressão étnica pública.
A importância da língua como um marcador da identidade alemã no Brasil também declinou rapidamente. Muitas instituições germano-brasileiras – como o clube Gesellschaft Germania, de Porto Alegre – mantiveram seus nomes "nacionalizados" – no caso, Sociedade Independência – muito tempo depois do fim do Estado Novo. O clube só voltaria ao seu nome original, Sociedade Germânia, em 1971. Outros, como o Deustche Schule, em São Paulo (hoje Colégio Visconde de São Leopoldo), e a Turnerbund (hoje Sociedade de Ginástica Porto Alegre) nunca retornaram aos seus nomes germânicos.
Ao mesmo tempo, o Estado desenvolvia novas ferramentas para consolidar a sua capacidade de difundir o que julgou ser a cultura brasileira em todo o território do país. A escola pública tornou-se obrigatória e só o idioma português era permitido como língua de instrução. Rádio, cinema, música e, mais tarde, a televisão ajudaram a nacionalizar a cultura predominantemente produzida no Rio de Janeiro e em São Paulo para um público mais amplo. Por trás da tentativa de difusão deste tipo de brasilidade está o que alguns chamam de teoria da democracia racial (a polêmica ideia de que no Brasil a miscigenação generalizada impediu o racismo e a desigualdade que assolaram os Estados Unidos e outros países. Consequentemente, os brasileiros que desejavam expressar ou preservar uma identidade alemã o fizeram em um contexto cultural de constante mutação.
O resultado foi o surgimento de concepções difusas sobre germanidade, visões muitas vezes associadas a uma mistura de folclore com as percepções brasileiras de um europeísmo mais geral. Sobraram muitas comunidades onde a língua e as instituições especificamente alemãs, como a Igreja Luterana, eram os marcos significativos de diferença cultural. Entretanto, certas coisas que os brasileiros, desde os tempos de D. Pedro II, imaginaram ser particularmente alemães, se tornaram lentamente parte de como os alemães-brasileiros pensavam a si mesmos. Elementos como o cuidado com a ordem, a indústria e a seriedade eram supostos marcadores de diferenças positivas em comparação com a identidade nacional brasileira. A literatura popular da época, como a de Josué de Guimarães, autor de A ferro e fogo (1972), representa os colonos alemães como individualistas em oposição a um suposto corporativismo da uma sociedade luso-brasileira.
Nas comemorações do 150º aniversário da chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Rio Grande do Sul, em julho de 1974, o Comitê Executivo, composto inteiramente por alemães-brasileiros, planejou três dias de festividades. Dignitários presentes, o presidente militar Ernesto Geisel (descendente de alemães) e o embaixador da Alemanha Ocidental foram brindados com um desfile alegórico representando o processo migratório e as contribuições dos imigrantes para a sociedade brasileira. “Utopia Ontem, Hoje Realidade”, título do desfile, demonstrou o desejo do Comitê Executivo de alçar os brasileiros de ascendência alemã a um papel central no desenvolvimento e na prosperidade do país. O cheiro de costeleta, linguiça e cuca foi sentido naquelas tardes frias de julho. Dezenas de milhares de visitantes exploraram os pavilhões da exposição que apresentava tecnologias industriais e agrícolas produzidas por empresas alemãs e germano-brasileiras. Esta era a face que as elites de alemães-brasileiros queriam enfatizar: uma que os brasileiros pudessem reconhecer e apreciar, aproximando-se.
Assim como a identidade nacional brasileira tem evoluído desde o século passado, o mesmo acontece com a identidade e a cultura étnicas alemãs. A imaginada "Alemanha encantada" pode mudar ao longo do tempo, ou de pessoa para pessoa, mas continua a ser uma visão fundamentalmente brasileira. A forma de ser alemão – e não deutsch – está intrinsicamente ligada à forma de ser brasileiro.
Glen Goodman é professor da Emory University (Atlanta, Georgia).
Saiba Mais - Bibliografia
FROTSCHER, Méri. Identidades móveis: práticas e discursos das elites de Blumenau (1929-1950). Blumenau: Edifurb, 2008.
GERTZ, René. O aviador e o carroceiro: Política, etnia e religião do Rio Grande do Sul de 1920. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
GERTZ, René. O perigo alemão. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991.
Internet
Brasil Alemanha
As Alemanhas encantadas
Glen Goodman