Os relatos e diários de viagem costumam fornecer pistas interessantes do estranhamento típico do viajante. O Diario da viagem, que fez á Colonia Hollandeza de Surinam o Porta Bandeira da Setima Companhia do Regimento da Cidade do Pará pelos Certoens, e Rios deste Estado em Diligencia do Real Serviço, de 1799, não é uma exceção. Encontrado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, comprova a diversidade cultural no território sul-americano do final do século XVIII, tamanha é a variedade de etnias e nacionalidades descrita em suas páginas. A missão – ou “diligência” – que motivou a viagem foi um verdadeiro encontro entre um povo – os “judeos portuguezes” –, sua identidade e sua história.
O “Porta Bandeira” que aparece no título e autor do diário é Francisco José Rodrigues Barata, português que participou posteriormente dos principais acontecimentos políticos na capitania do Pará. Sua tarefa era entregar ao médico Davi Nassi, morador da colônia holandesa, uma carta do ministro português D. Rodrigo de Souza Coutinho. Nassi era membro da chamada “Nação Judaica Portugueza”, formada por descendentes de judeus que começaram a sair dos domínios lusitanos 140 anos antes, por conta das conversões forçadas e das perseguições religiosas. A reconquista dos territórios ibéricos, que expulsou os mouros, acabou por afastar os judeus e promover um clima de intransigência que durou séculos. A carta trazia um inusitado convite para a comunidade judaica retornar a Portugal.
O contato entre os portugueses e os judeus do Suriname foi retomado em uma circunstância nada fortuita. Em 1797, a situação belicosa em que França e Portugal se encontravam – consequência da participação portuguesa na chamada Campanha do Rossilhão (1793-1795), na qual os lusitanos ajudaram a Espanha a lutar contra os revolucionários franceses – chegava às águas caribenhas. Corsários da Guiana Francesa tomaram uma embarcação portuguesa e a venderam para comerciantes holandeses do Suriname. Os tripulantes foram deixados à própria sorte. Para sua surpresa, eles foram acolhidos por um grupo de judeus locais, descendentes dos mesmos que haviam fugido de seu país séculos antes. Nassi e seus companheiros fretaram uma embarcação para que os marinheiros retornassem a Portugal, recusando qualquer pagamento. Quando o príncipe regente D. João tomou conhecimento do fato, expediu uma ordem para o governador do Grão-Pará determinando que ele enviasse alguém à colônia holandesa para a diligência.
O Diario de Barata é uma descrição minuciosa dessa jornada. Ele partiu de Belém do Pará rumo a Paramaribo (até hoje a principal cidade do Suriname) em simples canoas, atravessou rios, desbravou cachoeiras enormes e se aventurou em mar aberto, correndo sérios riscos em paisagens raramente frequentadas. Ao longo do caminho, Francisco ia estabelecendo relações cordiais com tipos inusitados, como as ricas “mulatas holandezas”, habitantes do território fronteiriço, que o mimaram com sua hospitalidade. Elas eram donas de escravos negros e indígenas.
Barata constatava, com certa vaidade e orgulho, que, à medida que se afastava dos domínios portugueses, ia se tornando uma espécie de atração exótica. Depois de um jantar com oficiais ingleses na região do Rio Essequibo (hoje nos domínios da Guiana), ele escreveu: “Me recolhi para as Canoas, as quaes estavão ainda servindo de objecto de admiração a huma immensidade de povo”.
O risco que Barata correu para chegar à colônia holandesa acabou lhe rendendo frutos. Quando os ingleses que ocupavam militarmente as colônias holandesas de Essequibo, Demerari e Berbice – a atual Guiana – souberam de seu percurso, ficaram estupefatos, assim como os holandeses do Suriname. Barata, sempre que possível, dizia que isso era uma característica dos indivíduos de sua nação, que não mediam esforços para cumprir as determinações de seus soberanos. Segundo seus relatos, o governador do Suriname, um certo Julião Francisco Frederico, teria dito que preferiria ter sido enviado em uma missão semelhante a ocupar um posto como o seu, e recomendava que seu filho, um jovem cadete de 14 anos, seguisse o exemplo de dedicação, comprometimento e privação do Porta Bandeira português.
O convite para que os quase 1.400 “judeos portuguezes” do Suriname retornassem aos domínios portugueses os deixou em polvorosa e foi comemorado na sinagoga. Nassi afirma que tal “honra” era “mui superior aos motivos que a ocasionarão”. Segundo Barata, esses homens mantiveram seus nomes, a língua, e ainda consideravam Portugal a sua pátria. Nassi, por exemplo, seria “natural de Surinam, porem Portuguez na origem, no nome e nos sentimentos”. O Diario de Barata não oferece pistas sobre o que aconteceu depois da viagem do Porta Bandeira, mas o socorro desinteressado da comunidade de judeus e o convite da Corte de Lisboa amenizaram um passado de perseguições.
As canoas da desforra
Iuri A. Lapa e Silva