As desventuras de um pecador

Milena Fernandes Maranho

  • Mapa do século XVII mostra parte do Rio São Francisco por onde passou a expedição de Gabriel Soares de Souza.O Eldorado, um reino perdido fabuloso, rico em ouro e pedras preciosas, que existiria na América espanhola ou mesmo na Amazônia, foi uma obsessão de muitos conquistadores. Desde as primeiras descobertas de prata, feitas em 1545 por índios no Cerro de Potosí, nas montanhas andinas da atual Bolívia, a busca por fontes minerais jamais deixou de ser um desejo dos colonizadores do Novo Mundo. O mito das incalculáveis jazidas da América do Sul atiçou de forma surpreendente a cobiça de espanhóis, portugueses, ingleses, franceses e holandeses desde o final do século XVI, quando teve início a decadência do envio dos metais para a Espanha.

    Apesar de o mito do Eldorado ter perdido força ao longo do tempo, as expedições em busca de metais valiosos foram fundamentais para a conquista do território da América. Por parte dos portugueses, ao mesmo tempo em que os engenhos de açúcar eram construídos, expedições partiam à procura de pedras preciosas, ouro e prata.

    De fato, o açúcar e os metais preciosos foram as oportunidades de enriquecimento mais procuradas nos primeiros séculos da colonização portuguesa na América. Mesmo com o trabalho árduo na lavoura e com os animais nos séculos XVI e XVII, o desejo pelo ouro era uma constante para muitos habitantes das Américas, e atingia até mesmo quem já conquistara posição social e grande produtividade com o açúcar. E não faltaram aventureiros para se embrenhar nos sertões, correndo todo tipo de perigo para realizar um desejo até então inatingível. O português Gabriel Soares de Souza (c. 1540-1591), senhor de um grande engenho de açúcar na Bahia, foi um deles.

    Vindo de Portugal em 1567, Souza aportou em Salvador devido às muitas possibilidades de lucro com a produção de açúcar. Além disso, seu irmão, João Coelho de Souza, estava estabelecido na região. Após a morte do irmão, ele herdou um itinerário do descobrimento de várias minas na região das cabeceiras do Rio São Francisco intitulado “Relação do descobrimento das esmeraldas”. Este caminho já havia sido percorrido em parte por João Coelho durante três anos, e, como escreveu o próprio Gabriel Soares, o irmão havia “neles descoberto metais preciosos e, segundo parece, até já diamantes ao falecer”.

    Viajou para a Europa a fim de conseguir financiamento do rei de Espanha, Filipe II, já que entre 1580 e 1640 ocorreu a união política e territorial dos reinos ibéricos. Pediu concessões e privilégios para encontrar de fato as minas. Enquanto esperava a liberação de seus requerimentos, Gabriel Soares escreveu um tratado que fez toda a diferença para as interpretações acerca da vida e dos anseios dos colonos no final do século XVI.

    No Tratado Descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho justificou a obra ao influente estadista D. Cristóvão de Moura, embaixador que auxiliou Filipe II a negociar com as Cortes portuguesas em 1580. Na justificativa, afirmou que sua pretensão era “manifestar a grandeza, fertilidade e outras grandes partes que tem a Bahia de todos os Santos e demais Estados do Brasil, do que os reis passados tanto se descuidaram”. Apesar da demora na resposta – algumas concessões foram obtidas por Gabriel Soares a partir de carta régia de Filipe II no final de 1591 –, o detalhado relatório sobre as possibilidades e riquezas da costa do Brasil, em especial da Bahia, alcançou seu objetivo.

    Entre as concessões mais importantes estavam várias recompensas no fim da jornada, tanto para o senhor de engenho quanto para os capitães que o acompanhassem.Em 13 de dezembro de 1590, diversos alvarás foram promulgados provando que, quando se tratava da possibilidade de um ganho tão importante como era o ouro, muitos privilégios e poderes poderiam ser concedidos. Os alvarás diziam respeito às pessoas que acompanhariam Gabriel Soares na empreitada e aos direitos que ele detinha sobre esses descobrimentos. Filipe II prometeu a quatro cunhados, dois primos e mais 12 pessoas que seguiriam viagem com o senhor de engenho “foro de fidalgo da minha casa (...) aos capitães, soldados e mais pessoas, até o número de 100” que o acompanhassem. Alcançar a fidalguia, ou seja, o estatuto de nobre reinol, era um privilégio de extrema importância, e cobiçado pelas vantagens que trazia.

    A Gabriel Soares de Souza, em especial, além do cargo de “capitão-mor e governador da conquista e descobrimento do Rio de São Francisco”, foi concedido por Filipe II a exclusividade do descobrimento de minérios em todas as capitanias que fossem “mais adiante do dito Rio de São Francisco”. Mesmo lucrando com a produção de açúcar, o senhor de engenho deixou tudo para trás a fim de se embrenhar nos sertões em busca das minas. Eram as ações e as motivações dos colonos que consolidavam as novas possibilidades do Novo Mundo e constituíam a base para que a colonização das novas terras fosse efetivada. Ainda que os riscos fossem consideráveis, muitos tentavam o sucesso de seus empreendimentos na Colônia. Mas no caso de Gabriel Soares, tudo deu errado.

    Em 7 de abril de 1591, embarcaram 360 homens na urca Grifo Dourado, e partiram do porto de Lisboa tendo o senhor de engenho à frente da empreitada. No entanto, em meados de junho, o navio naufragou no Rio Vaza-Barris, próximo à costa, entre os atuais estados da Bahia e de Sergipe. A maior parte da tripulação se salvou e a expedição se refez, retornando a Salvador para prover-se de carne e de farinha. A farinha de mandioca, a carne bovina ou suína salgadas, além dos peixes e de outros legumes plantados nos arraiais fundados pelos caminhos, eram a base da alimentação das primeiras expedições coloniais.

    Caminhando pela margem direita do rio Paraguaçu rumo ao Rio São Francisco, Gabriel Soares e seus homens sofreram mais privações, tendo vários deles adoecido de febres e mordidas de cobras. As enchentes periódicas também ilharam várias vezes os membros da incursão. Para subir a Serra do Cocal, nascente do rio que vinham margeando, as dificuldades foram ainda maiores. Com muito nevoeiro e frio, “começaram todos a esmorecer”, conforme conta o historiadorFranciscoAdolfo de Varnhagen (1816-1878), que descobriu a autoria do relato no século XIX, e Gabriel Soares, provavelmente “cansado dos trabalhos”, adoeceu e faleceu em seguida.

    Com a morte do comandante, seu substituto, o mestre de campo Julião da Costa, viu-se numa situação complicada, e por isso escreveu ao governador-geral D. Francisco de Souza, que mandou a expedição regressar. O último percalço que faltava para invibializar a continuidade da viagem naquele momento foi a morte do índio Araci, principal guia de Gabriel Soares. Os índios tinham papel essencial nas expedições, tanto para auxiliar a entrada pelos matos e caminhos íngremes como para facilitar o deslocamento, quando tribos inimigas atacavam os grupos.

    Com o fim da expedição, e de posse de todos os roteiros, já no início do século XVII o próprio Francisco de Souza, após deixar o cargo de governador, passou a organizar novas incursões em busca dos minérios tão almejados, mas nunca encontrados em grandes quantidades por mais de um século. Após algumas poucas descobertas de breve proveito, foi somente no final do século XVII, entre 1693 e 1696, que as tais buscas finalmente renderam frutos significativos na localidade mais tarde chamada de Minas Gerais.

    Ao conquistador e senhor de engenho talvez tivessem sido válidos os conselhos posteriores do padre Antônio Vieira. Em 1656, Vieira se referia à possibilidade de existência das minas de metais valiosos como “perdição”, e pedia que todos se contentassem pacificamente com “o que a agricultura colhe da superfície da terra”. Gabriel Soares foi um dos que não se contentaram com essa possibilidade, e talvez por isso tenha pedido em testamento que o epitáfio no seu túmulo fosse “Aqui jaz um pecador”.

    Apesar dos malogros na expedição em busca do itinerário herdado, o tratado escrito por Gabriel Soares para auxiliá-lo em seus pedidos às autoridades é um rico documento sobre a geografia, a economia e a vida colonial quinhentista. Grande parte das descrições feitas diz respeito às riquezas da terra e da produção agropastoril, fontes mais concretas de riquezas existentes na época. Durante dois séculos, antes do período aurífero, foi somente esse tipo de trabalho que organizou a vida econômica colonial e delineou os papéis das diversas regiões da América portuguesa.

     

    Milena Fernandes Maranhoé professora do Centro Universitário N. Sra. do Patrocínio (Itu-SP) e autora de A opulência relativizada (Edusc/Fapesp, 2010).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História colonial. Brasília: Editora da UnB, 1998.

    FRANÇA, Jean Marcel Carvalho e RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil colonial. Catálogo comentado (1503-1808). São Paulo: Editora Unesp, 2008.

    HUE, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento – A gastronomia brasileira no século XVI. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

    SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ Editora da Universidade de São Paulo, 1971.