As janelas do imaginário

Renata Reinhoefer França

  • Em sequencia, o Salão Amarelo, antes conhecido como Salão Veneziano, abriga o piano de cauda (Eiard) do século XIX, O Salão Pompeano, que era destinado às mulheres. Após 1897, as imagens do teto foram trocadas por motivos referentes à História do Brasil e o Salão Nobre, um dos principais do palácio. Decorado com cenas mitológicas e temas tropicais, foi cenário de bailes e eventos sociais no Império e na República.Ao passar de carruagem pelo Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, Agostinho Santos delicia-se num infinito de desejos, encantado pelas grandes janelas e portas, a supor um interior repleto de “bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias...”. Mas seus pensamentos sucedem-se depressa, a acompanhar a andadura dos cavalos da vitória, que não atrasa as rodas para que seus sonhos acabem.      

    O personagem, criado por Machado de Assis para o romance Esaú e Jacó (1904), traduz o impacto da casa aos transeuntes do século XIX. Passagem obrigatória de toda a gente do Rio de Janeiro, o palácio guarda dois salões que delimitam as áreas masculinas e femininas: o Salão Mourisco, para os homens; e o Pompeano, para as mulheres.

    Todo esse capricho começou a ser pensado em 1854, quando Antonio Clemente Pinto (1795-1869), rico fazendeiro da região de Cantagalo e Campos, na província do Rio de Janeiro, recebeu do imperador o título de barão de Nova Friburgo pelos serviços prestados. O prestígio o obrigou a se mudar para a capital, e em 1858 ele comprou a casa de número 159 da Rua do Catete e um terreno de fundos que ia até a Praia do Flamengo, onde construiu sua nova residência. Influenciado pelos palacetes urbanos de Florença do final do século XV e pelas construções que ficavam à beira do Grande Canal de Veneza, o projeto do palácio é assinado pelo arquiteto alemão Carl Friedrich Gustav Waehneldt (1830-1873). O prédio foi concluído em 1867, mas o barão já havia se mudado para lá no ano anterior, enquanto ainda eram feitas obras de acabamento.

    No palácio, após o horário do jantar, os comensais se dividiam em diferentes aposentos. Os homens seguiam em direção ao Salão Mourisco, onde se entregavam aos prazeres do fumo – um modismo no Segundo Reinado (1840-1889) – e dos jogos de salão. Decorado com figuras orientais e sensuais em trajes exóticos, envoltas em véus e arabescos, o ambiente era coberto de paredes em azul, vermelho e dourado.

    Para o crítico literário norte-americano Edward Said (1935-2003), a associação entre Oriente e sexo era quase imediata na Europa do século XIX, e isto era expresso na literatura da época, como nas obras do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880). Um salão como o Mourisco provavelmente levaria seus frequentadores a imaginar fábulas cujos personagens desejavam coisas que não aconteciam em suas entediantes e reprimidas vidas burguesas, e se deixavam levar por sonhos de liberdade sexual. As imagens de “haréns, princesas, príncipes, escravos, véus, rapazes e moças dançando, sorvetes, unguentos e coisas do gênero”, citadas por Said em seu livro Orientalismo – Oriente como invenção do Ocidente (1996), certamente fizeram parte desses devaneios. Afinal, como ficariam indiferentes à sedução do ambiente quando cercados por uma arquitetura e uma decoração tão suntuosas e que proporcionavam, por meio do imaginário, uma enorme sensação de poder?

    Mas o homem daquele final de século precisava seguir um padrão muito rígido de comportamento: tinha que ser austero, comedido e racional. Esse ar de austeridade continuou presente no Palácio do Catete mesmo depois que o palácio foi vendido pelo conselheiro Mayrink para o governo federal em 1897. A partir deste ano, a Presidência da República passou a ocupar o casarão, e o Salão Mourisco causou constrangimentos à elite política que frequentava o local por conta de seu exagero decorativo. Nesse momento, a encenação e a frivolidade ornamentada da corte já eram coisas do passado.

    A localização do Salão também contribuiu para tornar o ambiente masculino. Pelo fato de estar voltado para os fundos, onde havia uma ampla visão da propriedade, dos jardins e da rua lateral, o cômodo era, evidentemente, um ponto de controle. Aqueles que frequentavam o local podiam ver mais do que serem vistos, espreitar a rua de uma certa distância e vigiar a propriedade de perto.

    Enquanto isso, as mulheres se reuniam em um outro ambiente do segundo andar do palácio, o Salão Pompeano. Dominado pela cor vermelha nas paredes, nas quais figuras e alegorias estavam aplicadas sobre um fundo branco, o recinto fazia referência às descobertas arqueológicas na cidade italiana de Pompeia a partir de 1817. Se das janelas do salão masculino podia-se vislumbrar toda a extensão da propriedade, as do Pompeano se abriam para o movimento das vias públicas.

    Atribui-se à baronesa da Nova Friburgo a ideia pouco usual de posicionar o palácio na esquina da Rua do Catete com a Rua Silveira Martins, o que deixava um imenso terreno para trás. É possível conceber a ideia de que a baronesa queria apreciar a agitação da rua, já que em suas fazendas de Cantagalo e Friburgo ela vivia cercada de árvores e não tinha como vislumbrar qualquer cenário que fosse remotamente urbano..

    A senhora Clemente Pinto, naturalmente, almejava desfrutar da vida mais cosmopolita e sofisticada da capital, que teve impulso em 1808 com a chegada da Corte de D. João. Os novos hábitos trazidos pela fidalguia lusitana acabaram sendo absorvidos pela sociedade do Rio de Janeiro, que logo se tornou a sede do Reino de Portugal, Brasil e Algarves (1815). O número de estrangeiras na cidade aumentou bastante nessa época, e a mulher inaugurou sua participação, ainda que com restrições, em diversas atividades sociais nas quais não era incluída. Afinal, os costumes coloniais anteriores reservavam à mulher de determinados extratos sociais normas de comportamento rígidas, em regime de semiclausura.

    Com uma vida social mais movimentada, a mulher estreou sua frequencia em bailes e serões. Foi também nessa época que as damas passaram a usar roupas elegantes apenas para ver as vitrines da Rua do Ouvidor, no Centro da cidade. Dado o mundanismo que invadia o Rio de Janeiro, a mulher de classe alta começou a desempenhar não só o papel de dona de casa e mãe, mas também o de dama de salão. Ela não se restringia mais à fé católica e às aulas de leitura, escrita, cálculo, costura e bordado. Com o novo status, a mulher iniciou-se no estudo do canto, da dança, e na prática da conversação..

    Portanto, não é de espantar que Agostinho Santos, ao passar pelo palácio, erga os olhos em sua direção “com o desejo de costume, uma cobiça de possuí-lo”. Afinal, entrevê salões ligados às delícias do presente: grandes festas únicas e damas expostas à rua pelas grandes janelas das salas, como objetos de desejo. Ao vislumbre, opõe-se a distância do toque, restando-lhe apenas imaginar as maravilhas de seu interior: o glamour dos bailes com sua gente bem arrumada e de modos finos, dançando e cantando. Seus pensamentos vagueiam por uma imensidão enigmática de prazeres, da qual o resto de seu corpo jamais chegaria a participar. Porque o acesso  é permitido apenas a alguns e em determinados momentos. Artifícios da sedução e do poder, sempre exclusivos e seletivos.

     

    Renata Reinhoefer Françaé autora da  dissertação “Continuidades descontinuadas: reflexões sobre o encontro intersubjetivo com a arte” (UERJ, 2008).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    Museu da República: Guia do Visitante. Rio de Janeiro: Museu da República, 1994.

    ALMEIDA, Cícero Antonio F. Catete – Memórias de um Palácio. Rio de Janeiro: Museu da República, 1994.

    PROURB, FAU-UFRJ (professores e alunos). Um Palácio na Cidade. Internet: http://www.fau.ufrj.br/prourb/catete, “Interior: Estética e Função : 2 pavimento”.