Às margens do pedestal

Paulo Knauss

  • De Louis Richet, Estátua equestre do Imperador Dom Pedro I, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro. (Foto: Jaime Acioli)Sobre um cavalo, proclamando a Independência, com o Manifesto às Nações na mão. Não é de fatos concretos que se fazem os monumentos históricos, mas de simbologias e versões. A estátua equestre de D. Pedro I, inaugurada em 1862, levou quase quatro décadas para ser realizada. As idas e vindas do projeto ao longo desse tempo, tanto quanto os elementos da obra em si, promoveram diferentes significados sobre a história nacional. 
     
    A enorme festa cívica realizada em 30 de março daquele ano foi condizente com a ineditismo do evento: aquela era a primeira escultura pública do Brasil. Era para ter se realizado no dia 24 de outubro, data da Constituição imperial de 1824, mas as fortes chuvas terminaram adiando o evento. A homenagem ao ex-imperador foi posicionada de frente para a rua da Imperatriz, dirigindo-se para a sede da Academia Imperial das Belas-Artes. Do outro lado, a rua Sete de Setembro conduzia até a praça da estátua, estabelecendo a ligação com o antigo largo do Paço, onde ficava a sede de governo, na região mais frequentada da cidade. A escolha do local acompanhava o plano de remodelação da área, que se transformaria na praça da Constituição, com a escultura  ao centro celebrando o regime monárquico.
     
    Para o grande dia, a imprensa anunciou o aluguel de cômodos com janelas e cadeiras com vista para os festejos. O horário dos trens foi adaptado para garantir a presença do maior número de interessados. Comerciantes se contagiaram: a imagem de D. Pedro I apareceu estampada em uma variedade de produtos, como pesos de vidro para papel, desenhos, hinos e gravuras. Lojas ofereciam artigos de toalete e acessórios para baile e teatro – como cintos, luvas, leques – ornados com estampas do monumento. O comércio também ajudou a embelezar a cidade com folhas de mangueira, cedro e canela. 
     
    As fortalezas, que ocupavam posição de destaque na paisagem, amanheceram embandeiradas. Salvas militares foram lançadas e os sinos soaram para anunciar a cerimônia. Um desfile triunfal reuniu diversas autoridades, apresentadas em alas: à frente representantes da Justiça e da polícia e, na sequência, políticos, homens da Corte e membros da Igreja. Completavam o cortejo representantes da Câmara Municipal, carregando o pálio sob o qual estavam o imperador D. Pedro II, a imperatriz e as princesas. Por toda parte se viam expostas as insígnias imperiais. 
     
    Já na praça, as autoridades se posicionaram na varanda do Teatro São João, o maior da cidade. Desse lugar de destaque, a ordem institucional do país era afirmada pela reunião da família imperial, dos representantes políticos das assembleias provinciais e da Câmara Municipal, além dos membros do corpo diplomático e consular. Ao som do Hino da Independência, o pano que cobria o monumento foi, enfim, descerrado. Houve ainda um ato religioso, discursos políticos e uma marcha militar acompanhada pelo Hino Nacional. 
     
    Cercada por todo esse caráter cívico e de mobilização social, a cerimônia de inauguração da estátua completava um longo processo de ritualização da imagem, que começou bem mais cedo. A ideia original da escultura nasceu em 1825, por iniciativa da Câmara Municipal, que havia sido o centro político do processo de independência. O projeto teve autorização do próprio D. Pedro I, e como local para a obra foi escolhido o Campo de Santana, cenário da aclamação do monarca em 1822. O arquiteto francês Grandjean de Montigny chegou a preparar dois projetos de padrão neoclássico, mas as rápidas mudanças políticas do período, que tornaram o imperador impopular e o levaram à abdicação em 1831, inviabilizaram o processo. 
     
    Os planos foram retomados em 1839, com o lançamento de uma subscrição pública a fim de arrecadar fundos para a confecção da estátua. Isso ocorreu um ano antes do chamado Golpe da Maioridade, que conduziria ao trono o jovem imperador D. Pedro II antes do previsto. Não se pode considerar uma coincidência a retomada do projeto de escultura pública do primeiro monarca do Brasil justamente em um momento de crítica à ordem regencial. Mas o tema só retornaria definitivamente à pauta da Câmara em 1853, quando foi nomeada uma nova comissão. No ano seguinte, a ideia recebeu apoio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), primeira instituição acadêmica do país dedicada a promover a história nacional. A proposta passava, então, a ter um pilar no governo e outro na sociedade civil. 
     
    Em 1855, os jornais publicaram o edital para a seleção do projeto escultórico. Dos 35 inscritos, três foram premiados. Em primeiro lugar ficou João Maximiano Mafra, professor da Academia Imperial das Belas Artes (AIBA). Mas diante das dificuldades técnicas de se realizar a obra no Brasil, o artista francês Louis Rochet – que ficou em terceiro – acabou escolhido para desenvolver o projeto vencedor em seu ateliê em Paris. Em 12 de outubro daquele ano, data de aniversário de D. Pedro I, houve o ritual de lançamento da pedra fundamental, acompanhado pelo enterro de uma caixa com medalha da estátua, moedas dos reinados de Pedro I e Pedro II e uma versão original da primeira Constituição do Brasil outorgada pelo primeiro imperador em 1824.
     
    No desenho em sépia, um dos projetos inscritos no edital, de autoria do francês Magin, o imperador rodeado de deuses gregos que enaltecem sua engenhosidade. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A obra estabeleceu um novo lugar para a escultura na sociedade brasileira, instalando uma tradição. O país se aproximava do que na França seria conhecido como estatuamania. A escultura cívica de lógica monumental tem uma estrutura narrativa que relaciona tempo, espaço e sujeito histórico, afirmando um enunciado-chave. No caso da obra do imperador, o tempo aparece na cronologia inscrita no gradil, onde se veem datas dos principais fatos da Independência. O espaço é tratado pelas alegorias dos rios nacionais, com imagens de índios e animais esculpidos no pedestal, e pelos brasões das vinte províncias imperiais. Encimando o conjunto, o sujeito da história e o produto de sua ação: a estátua equestre mostra o imperador em trajes militares sem insígnias monárquicas, ele tem o braço esticado e traz na mão um livro, que representa o Manifesto das Nações, o primeiro documento de declaração da Independência nacional. A chave de leitura da história, no entanto, se afirma pelo enunciado da face principal, abaixo da estátua: “D. Pedro I, gratidão dos brasileiros”.
     
    A narrativa fixada na escultura pública não nasce no isolamento do artista em seu ateliê, mas em espaços de debate. A relação entre a estátua de D. Pedro I e a história da afirmação do regime monárquico constitucional foi enfatizada numa sessão do IHGB, em 1854, por Joaquim Norberto de Sousa e Silva. A discussão ultrapassou o âmbito do instituto e alcançou a Câmara e os jornais. Foi Araújo Porto-Alegre – membro do IHGB e professor da AIBA – quem defendeu, em O Guanabara, a opção pela solução equestre, associada ao gesto que traduz o ato da Independência. A concepção final conseguiu sintetizar as duas propostas, afastando-se da primeira proposta de Grandjean de Montigny de uma imagem pedestre do imperador. Ao fixar a imagem equestre do imperador no gesto de lançar a mão ao alto segurando o Manifesto das Nações, conseguiu-se a associação original entre o ato de proclamação da Independência e o documento da afirmação do Estado nacional. 
     
    Uma vez pronto e exposto, o monumento do imperador provocou reações também cheias de significado. No dia de sua inauguração, foi apresentado um poema de Luiz Vicente de-Simoni associando Pedro I e Tiradentes numa combinação especial, que não contrapunha os dois personagens. A sobreposição refletia um sentido urbano: o logradouro em que se instalou a imagem do imperador era considerado o lugar do martírio do herói da Inconfidência Mineira. Nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, Teophilo Benedicto Ottoni manifestou sua oposição à estátua, afirmando que Pedro I não era digno da homenagem. Argumentava que a Independência não era obra de um único nome, que a Constituição havia sido outorgada e que a abdicação tinha sido um ato popular liderado pelo Partido Liberal. E ainda celebrava as inconfidências e o movimento pernambucano de 1817, contrapondo D. Pedro I a Tiradentes. Foi contestado por um opúsculo anônimo, segundo o qual Pedro I atuara para o interesse dos brasileiros. 
     
    O caráter público da escultura monumental vai além do fato de se localizar em área urbana. Ela foi criada em um contexto de autoria compartilhada, fruto de debates sobre a simbologia da imagem, e interpretada em um ambiente de disputa de sentidos, confrontando diferentes leituras da história. Se a peça de bronze permanece estática no meio da praça, os significados que emana refletem o dinamismo da história. 
     
    Paulo Knauss é professor da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem-UFF, diretor-geral do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e autor de “A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX”. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/pknauss.htm>.
      
    Saiba mais
     
    RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
    RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “Memória em Bronze: A estátua equestre de D. Pedro I”. In: Knauss, Paulo (org.). Cidade Vaidosa. Imagens Urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999.
    SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780/1831. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.