Por mais de dois séculos, as barcas do Rio São Francisco marcaram o dia-a-dia das populações ribeirinhas da Bahia, de Minas Gerais e de Pernambuco – do século XVIII aos anos 1950. Na segunda metade do século XIX, ganharam o adorno das figuras de proa que as identificavam nos portos. Os remeiros desenvolveram a crença de que as figuras, hoje conhecidas como carrancas, protegiam as embarcações de naufrágios e outros infortúnios, provocados por seres míticos do rio como o caboclo d’água e o minhocão.
Um documento anônimo da primeira década do século XVIII – Informações sobre as minas do Brasil – já falava das “grandes e boas canoas” fabricadas pelos paulistas no Alto Rio das Velhas e que desciam este afluente e o Rio São Francisco, chegando à Cachoeira de Paulo Afonso em quinze dias ou mais. O objetivo das viagens era vender aquelas embarcações para as populações ribeirinhas. Em suas origens mais remotas, a navegação comercial provavelmente utilizou essas grandes canoas em trechos navegáveis do rio. Ainda na segunda metade daquele século, algumas barcas de Sento Sé (BA) já faziam o comércio do “sal da terra” na região. Nas primeiras décadas do século XIX, o artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) retratava as barcas à vela do Rio das Velhas no porto de Sabará.Na primeira metade do século XX, as barcas faziam o transporte a frete e o comércio ambulante, aportando em cidades, vilas e fazendas. Chegavam a percorrer 1.371km entre Juazeiro (BA) e Pirapora (MG). Adentravam os afluentes Corrente, Paracatu e Grande, e visitavam também o Rio Preto. Paquetes, ajoujos – embarcações formadas por duas a três canoas emparelhadas e unidas entre si para transporte de carga – e pequenas barcas navegavam em outros afluentes e no Rio de Baixo – trecho do São Francisco entre Juazeiro e Jatobá.
Em 1867, o viajante inglês Sir Richard Francis Burton (1821-1890), em sua “Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico”, descreveu a barca Baronesa de Minas, com sua ampla cabine, usada como “casa de comércio”, “guarnecida de prateleiras para as mercadorias”. Na década seguinte, o engenheiro inglês James Wells falava das “grandes e coloridas barcas do Rio São Francisco”. E o tenente Manuel Álvares de Araújo (1829-1879), em viagem a bordo do vapor Saldanha Marinho, calculou que existiam de 250 a 300 barcas servindo à população ribeirinha. Possivelmente, essa avaliação se restringiu às embarcações que transportavam entre 10 e 40 toneladas. Mas havia muitas barcas menores, cuja capacidade ficava em torno de três toneladas.
A navegação do médio São Francisco – entre Pirapora (MG) e Juazeiro (BA) – inclui este trecho do rio e seus afluentes navegáveis, e por ali passava a frota de barcas que propiciou a integração regional e inter-regional. Já o transporte por via terrestre era feito por carros de boi e tropas de animais de carga, que ligavam o São Francisco e seus tributários às comunidades não-ribeirinhas, inclusive das províncias (mais tarde, estados) de Goiás e do Piauí e, em menor escala, do Ceará e do Maranhão.
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Durante as décadas de 1940 e 1950, a introdução das “barcas motorizadas” provocou o desaparecimento das chamadas “barcas de figura” da paisagem do Velho Chico. Hoje, sua imagem pode ser apreciada nos objetos artesanais que imitam as antigas barcas com suas figuras de proa e expressam simbolicamente a importante função que esse tipo de embarcação exerceu no médio São Francisco.
Antes dos motores, eram os remeiros que impulsionavam as barcas do São Francisco. Como tripulantes dessas embarcações, alugavam sua força de trabalho para possibilitar o comércio ao longo do rio, implementado por seus patrões. Nas viagens rio acima, utilizavam os “varejões” (grandes varas) para impulsionar as barcas. Nas viagens rio abaixo, trabalhavam com pesados remos. Eventualmente, quando os ventos eram favoráveis, utilizavam velas latinas, de formato triangular, que lhes proporcionavam algum descanso na faina diária.
A jornada de trabalho podia durar até catorze horas. Na linguagem dos remeiros, “fazer uma madrugada” significava que a faina começava às três ou quatro horas da madrugada e terminava com o pôr-do-sol.
E o trabalho era pesado. As varas usadas para empurrar as barcas rio acima produziam ferimentos no corpo dos remeiros. Com uma extremidade da vara apoiada no peito e a outra fincada no leito do rio, era preciso muito esforço para fazer a barca se mover contra a correnteza. O contato da vara com a pele provocava o surgimento de pequenas bolhas, as “cabeças de prego”. Até consumar-se a cura, o novato passava por uma longa e dolorosa iniciação que podia culminar com a aplicação de “toucinho quente” no ferimento. Os veteranos acreditavam que esse “remédio” ajudava na formação do calo que tornaria o trabalho suportável. Às vezes, era necessário segurar o jovem remeiro pelos pés e pelas mãos, pois a terapia – uma forma de cauterização – era muito dolorosa. Acreditava-se que o toucinho quente “matava aquelas carnes”, conforme contava o ex-remeiro Benvindo Francisco de Souza. Se o ferimento fosse por ter trabalhado a bombordo – o lado esquerdo para quem, dentro da embarcação, olha para a sua proa –, no dia seguinte o remeiro trabalharia do outro lado, pois “o remédio para dor de vara era vara mesmo” conforme a visão dos veteranos. Uma vez formado o calo, o trabalhador passava a ser reconhecido como “remeiro de calo no peito”, ou seja, um marinheiro experiente para a faina das barcas. Já nas viagens rio abaixo, eles usavam remos que, por serem pesados demais, obrigavam os remeiros a se sentarem aos pares, frente a frente: enquanto um empurrava, o outro puxava o remo, imprimindo maior força. Nas grandes barcas, eram quatro trabalhadores, pois os remos eram ainda maiores.
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Os relatos de viajantes e cronistas indicam a predominância de negros e mestiços nas tripulações e destacam sua constituição física. Richard Burton, por exemplo, refere-se aos “escuros” remeiros. James Wells ressaltou sua “esplêndida constituição física” e os “músculos poderosos nos braços e no peito”.
O piloto da barca, mais conhecido como “mestre”, além de manejar o leme, era responsável pela administração do pessoal a bordo. Os mestres eram admirados por seu conhecimento do rio: mestre Ciríaco conhecia “cada pedra do rio” e era famoso entre os remeiros. Outro mestre foi o “cuidadoso e destro” Jacinto José de Sousa, que trabalhava “sem fazer barulho” conforme Burton − ao contrário da maioria dos remeiros, que apreciava uma boa cantoria.
A tripulação era contratada por “viagem redonda”, ou seja, ida ao porto de destino e volta ao porto de origem. O contrato de trabalho só expirava com o retorno da embarcação ao porto de origem. Para identificar os percursos, os remeiros criavam expressões como “carreira grande”, que designava a viagem de Juazeiro (BA) a Januária (MG); “meia carreira”, de Juazeiro a Santa Maria da Vitória (BA), no Rio Corrente; “carreira inteira”, de Juazeiro a Pirapora (MG). A viagem a Barreiras, no Rio Grande, também era considerada “meia carreira”.
Alguns barqueiros – os proprietários das barcas ou seus encarregados – viajavam fazendo o comércio: compra, venda e troca com comerciantes estabelecidos na ribeira, aos quais era usual a concessão de crédito. Havia também a venda direta ao consumidor. Em Jacaré – atual Itacarambi, MG –, Wells observa: “uma barca de comerciante estava na praia lamacenta, cercada por numerosas mulheres morenas e negras que pechinchavam com o mascate por um vestido de algodão, agulhas, fitas, xales vermelho-flamejantes ou azuis”. Havia os que se especializavam em tecidos; outros mantinham um comércio mais variado, como “um bazar”: vendiam novelos, carretéis, produtos alimentícios e até medicamentos de uso popular. Outros operavam apenas com o transporte a frete – era comum cargas de cachaça ou rapadura serem despachadas de um porto a outro.
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Os remeiros assumiam também um papel social relevante como difusores da cultura da região: notícias, casos, mitos e lendas, anedotas, relatos de milagres do Bom Jesus da Lapa, sextilhas e quadrinhas, toadas e cocos circulavam nas barcas, aportando nos núcleos urbanos. Alguns tripulantes eram hábeis repentistas e muitos apreciavam as cantigas do trabalho. Havia também aqueles que tocavam viola, violão e instrumentos de percussão, e faziam o acompanhamento das cantorias nos portos.
Richard Burton cita um repentista de renome com quem viajou no Rio São Francisco: Manuel Felipe Barbosa, o Manuel das Moças ou Barba de Veneno, que “improvisava versos metrificados” e cuja sátira se caracterizava pela “fluência e virulência”. Ele também fala de outro remeiro, José Alves Mariano, que “tinha um gênio abominavelmente bom”, cantava bem e “como repentista, adquirira fama local”. Mariano adotara o nome poético de Manjericão.
Uma sextilha dos remeiros, preservada na memória e ainda cantada pelos remanescentes nos anos 1980, satiriza um coronel e chefe político de Santa Maria Vitória na primeira metade do século XX:
Quem se for para o Corrente / que passar no Quebra-Botão / cinco léguas de água dura /
Lavandeira e Domingão / dê lembrança ao Quelemente / que é o homem do dedão. -
O Corrente é um rio afluente do São Francisco, à margem esquerda, no estado da Bahia. Quebra-Botão, Lavandeira e Domingão são topônimos que indicavam trechos de forte correnteza, ou seja, de “água dura”, conforme a terminologia de navegação criada pelos remeiros.
Havia também as “puias”, carregadas de jocosidade, que os remeiros dirigiam aos ribeirinhos quando as barcas transitavam nas proximidades do barranco. Quase sempre a resposta vinha acompanhada de apostos e epítetos do tipo “porco d’água”, “piau”, “pé pubo” e nomes ofensivos à progenitora do remeiro trocista. Os gracejos dos tripulantes das barcas podiam ser em forma de canções ou de poesia improvisada.
Os moradores da região ainda têm na memória algumas das canções dos remeiros, geralmente cantadas “no tom da voga” – isto é, das remadas. E mesmo as que foram esquecidas deixaram a lembrança de momentos prazerosos em meio a uma atividade de tantos sacrifícios.
Ainda hoje, alguns remeiros, já idosos, permanecem na região dando o testemunho de seu trabalho, tão relevante para os ribeirinhos. Sobrevivem com eles traços da cultura que eles difundiram ao longo do rio: a poesia e as cantigas, assim como os mitos do Caboclo d’Água, da Mãe d’Água e do Cavalo d’Água, do Minhocão, a lenda da Cobra de Asas presa na gruta sagrada e os milagres do Bom Jesus.
Zanoni Neves é mestre em Antropologia Social pela Unicamp e autor dos livros Navegantes da integração: os remeiros do rio São Francisco (Editora da UFMG, 1998) e Os remeiros do rio São Francisco (Editora Saraiva, 2004).
As vidas do Velho Chico
Zanoni Neves