Assassinos oficiais

Maria Regina Santos de Souza

  • Nada de quartéis. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), foi das cadeias que saiu boa parte dos homens que lutaram “pela nação”.

    Em meados do século XIX, Brasil e Paraguai disputavam o domínio sobre o Rio da Prata, área estratégica de comércio e navegação. Com o pretexto de defender os interesses de brasileiros no Uruguai, o Império invadiu parte daquele país em 1864, notadamente com a intenção de conquistar a hegemonia geopolítica platina.  A notícia dessa invasão chegou a Assunção, capital paraguaia, na forma de rumor. Indignado, o presidente paraguaio Solano López (1827-1870) aprisionou, em novembro de 1864, a embarcação brasileira Marquês de Olinda. Em seguida, invadiu com sucesso a província de Mato Grosso. A Guerra do Paraguai havia começado.

    Entre as hostilidades de ambos os lados, o ditador Solano López foi mais imprudente. Em abril de 1865, tropas paraguaias também invadiram a cidade de Corrientes, na Argentina, o que levou os argentinos a se aliarem aos brasileiros e aos colorados uruguaios, formando assim a TrípliceAliançacontra o Paraguai. Logo depois, a província do Rio Grande do Sul foi atacada pelo exército lopista. Apesar disso, a matemática de “três contra um” dava confiança aos aliados; o conflito parecia fácil e breve. Mas houve grande resistência por parte de López, à qual se somou o despreparo das tropas brasileiras e a morosidade dos comandos em chefe.

    Economicamente, quanto mais duravam os confrontos, mais aumentavam as dívidas externas, e os cofres públicos tiveram grandes despesas, como os gastos com transporte de soldados e o pagamento de soldos adiantados aos voluntários da pátria. Em termos sociais, o prolongamento causou muitos transtornos às autoridades, que enfrentaram multidões revoltadas contra esses alistamentos forçados nas províncias. De todos os recantos do Brasil há notícias de que bando armados dificultavam o recrutamento para a guerra, e a imprensa nacional descrevia “cenasdesangue”.   

    As populações pobres foram as que mais sofreram com os recrutamentos para o conflito, já que eram obrigadas a pagar esse “tributo de sangue”, expressão utilizada na época para designar o modo violento dos alistamentos.      

    A guerra contra o Paraguai foi muito peculiar, uma vez que o Império nunca havia travado um conflito tão duradouro com uma nação estrangeira. Neste sentido, foi necessária uma quantidade de forças humanas jamais vista. Exigência bastante complicada para uma nação que não tinha um exército organizado nem numeroso. Diante disso, o governo imperial teve que criar estratégias que suprissem a falta de contingente.  

    A primeira foi baixar o Decreto dos Voluntários da Pátria, em 7 de janeiro de 1865, como estímulo ao serviço das armas. Esse aparato legal oferecia terra, dinheiro, pensão nos casos de morte ou invalidez por ferimentos em combate, e ainda trazia prestígio social a todos os brasileiros que quisessem lutar na guerra contra o Paraguai; afinal, era preciso mudar a imagem de violência vinculada à lida militar e aos soldados. A rigor, ninguém queria servir no exército como soldado por vários motivos: os soldos eram ínfimos e incertos, havia muita violência e humilhação dentro das casernas e os recrutas geralmente serviam em localidades distantes de suas famílias. Além disso, a violência usada pelas tropas portuguesas contra a população brasileira nos tempos coloniais comprometeu a imagem dos fardados. No Império, dizia-se que a profissão de soldado era exercida por homens pobres e violentos. Durante a campanha do Paraguai, houve uma breve mudança: ele passou a ser soldado-cidadão. Uma cruzada cívica sacudiu o Brasil a partir do decreto e, por um momento, a guerra se tornou um tipo de “religiãonacional”. Até o início de 1868, o Ceará já havia mandado 5.047 soldados para a guerra, dos quais 1.037 eram voluntários.

    No entanto, entre 1867 e 1868, o alistamento de voluntários nas províncias brasileiras rareava, e o recrutamento não estava preenchendo os vazios nas tropas.            Diante dessas dificuldades, o Império adotou medidas emergenciais. Uma delas foi o perdão dado aos criminosos comuns, como homicidas, caso eles se oferecessem para os campos de batalha.

    Arma utilizada pelo Exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai. O conflito durou mais do que o esperado, e as forças iniciais não foram suficientes para garantir a vitória dos aliados do Império.

    Em meados de 1867, uma circular enviada pelo Ministério da Justiça chegou à presidência do Ceará e de outras províncias, como Piauí e Minas Gerais, determinando que os condenados por crimes de homicídio ou tentativa de homicídio que provassem o cumprimento de mais de dois terços da pena e bom comportamento receberiam indulto a fim de irem para a guerra do Paraguai. A ida só seria “vetada se o crime tivesse sido cometido contra pessoa da própria família”. Além disso, o condenado precisava que alguma autoridade civil ou militar intercedesse a seu favor.

    Alguns meses depois, um grupo de presos da cidade cearense de Sobral aceitou a proposta, e cinco homicidas que cumpriam pena na cadeia de Fortaleza tiveram suas sentenças revogadas, pois estavam dentro do perfil exigido pelo Ministério da Justiça. A medida teve tanta aceitação entre os assassinos cearenses que até mesmo aqueles que não estavam dentro dos “padrões” exigidos pelas autoridades tentaram se alistar.

    Em 1868, o assassino Antônio Gaspar da Graça estava cumprindo pena na cadeia de Fortaleza e pediu para falar com o delegado. O assunto? Ele dizia estar “disposto a ir ao quartel de primeira linha, de onde pretendia partir para combater no Paraguai”. A solicitação foi negada porque, de acordo com aquela autoridade policial,  “os presos só poderiam sair da prisão nos casos prescritos na lei”. Como esse condenadonão sabia dizer com clareza o tempo de sua condenação e nem tinha a seu favor um requerimento que comprovasse sua aptidão, foi preterido.

    Naquele mesmo ano, os presidiários Joaquim José de Medeiros e Manoel Costa Cavalcante se ofereceram para o serviço da guerra, mas ambos cumpriam pena por crime contra pessoa da família. Contudo, Manoel teve a oportunidade de explicar sua situação ao chefe de polícia da província, que mandou uma petição para o presidente cearense. Informava: “o crime de morte praticado por Manoel da Costa Cavalcante não foi praticado em pessoa de sua família, e menos ainda em alguém que ele devesse respeito, pelo contrário, o morto era seu encarniçado inimigo”. O preso, então, foi aceito.

    Ir para a guerra representava uma opção para os indivíduos considerados nocivos à ordem pública, a exemplo dos assassinos. Mas o Estado imperial não usou esse artifício para fazer uma espécie de “limpeza social”. Na verdade, muitos presos estavam dispostos a recuperar a liberdade, e o alistamento voluntário poderia ser a solução.

    A ideia de uma redenção na Guerra do Paraguai tomou grandes proporções, a ponto de, na província cearense, não faltarem condenados “desejosos de combater”. No início de 1868, o delegado de polícia de Fortaleza explicava ao presidente do Ceará a boa vontade do “transgressor Felipe de Araújo Frasão, que já havia cumprido metade de sua pena, de participar da guerra como voluntário”.

    Todas essas evidências apontavam para um jogo no qual cada um tirava suas vantagens. De um lado, homens em busca da liberdade do corpo e do estigma social encontrariam solução no alistamento concedido para a guerra; de outro, a falta de soldados nas fileiras seria resolvido, ainda que temporariamente, nesses recrutamentos.                          

    O motivo de tanto sacrifício, principalmente por parte dos homicidas cearenses, também pode ter explicação nos benefícios sociofinanceiros prometidos pelo Decreto dos Voluntários da Pátria. Aliás, essas vantagens eram conhecidas de todos: além de estarem na primeira página dos principais jornais da província, como O Cearense, eram anunciadas em praças públicas, por autoridades e intelectuais, para os habitantes das principais cidades do Ceará.

    A presença espontânea dos transgressores nas juntas de alistamento e nas fileiras do Exército demonstra como a guerra, com todos os equívocos de um conflito, passou a representar a possibilidade de transformar criminosos em homens com algum respeito e defensores da pátria.

     

    Maria Regina Santos de Souza é autora da dissertação “Impactos da Guerra do Paraguai na Província do Ceará -1865-1870” (Universidade Federal do Ceará, 2007).

     

    SAIBA MAIS - Bibliografia

    COSTA, Wilma Perez. A Espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Hucitec/ Unicamp, 1996.

    CUNHA, Marco Antônio. A Chama da Nacionalidade: ecos da Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

    DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002.  

    IZECKSOHN, Vitor. O Cerne da Discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997.

    SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania no Exército brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1990.