São Paulo, sábado à noite. Quem caminha pela rua Augusta, mais especificamente pela região chamada pela mídia de “Baixo Augusta”, entre o centro da cidade e a avenida Paulista, passa por cenários variados: bares, boates, lojas, restaurantes, cinemas, teatros, casas de prostituição e tapumes que escondem casarões recém-derrubados, que logo se transformarão em elegantes prédios residenciais.
O local é festejado como a “rua da diversidade”: grupos de meninas com franja, óculos de aros grossos, shorts jeans, camiseta; garotos com braços fortes e barriga tanquinho com decotes gola V; adolescentes com cabelos estilizados à laNeymar; meninos com boné, tatuagens e skate; moças “bombadas”, de cabelo comprido, vestidos justíssimos e curtíssimos, entre outros gostos, estilos e classes. Uma adolescente pula dentro de um latão de lixo e berra: “Eu tô na rua Augusta! Posso fazer o que quiser”.
A associação da Augusta com liberdade, pertencimento, irreverência e provocação, características tão típicas da juventude, tem história. A partir de meados dos 1950 começaram a chegar ao país as primeiras influências de um fenômeno que já vinha acontecendo principalmente nos Estados Unidos e em parte da Europa: o desenvolvimento de uma cultura juvenil. Também aqui os jovens romperiam as normas vigentes de uma sociedade patriarcal e moralista e transbordariam do espaço do lar para a “invasão” das ruas.
A síntese desse fenômeno cultural, responsável por alavancar aquela nascente onda do estilo de vida jovem e fazê-la reconhecida como fenômeno social, foi o programa de televisão Jovem Guarda, que estreou na TV Record em 1965 e durou até 1968. Gravado em São Paulo e exibido aos domingos para grande parte do território nacional, o show com números musicais era apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. A Jovem Guarda foi uma conexão entre a indústria fonográfica e a indústria da moda, que pretendia criar ídolos pop com inspiração no modelo britânico do grupo The Beatles, difundido internacionalmente. Seguindo a convergência internacional, com a passagem da alta-costura para o prêt-à-porter (sistema de roupas prontas para o consumo), empresários do ramo de confecção lançaram no mercado brasileiro roupas e acessórios da marca “Jovem Guarda”, compatíveis com as últimas tendências da moda, como saias, calças, coletes, cintos, chapéus e, inclusive, brinquedos. Não por acaso, o rock brasileiro da época ficou conhecido como “iê-iê-iê”, versão nacional do “yeah yeah yeah” presente em sucessos do quarteto de Liverpool. No visual e no estilo, os componentes da Jovem Guarda representavam o ideal do jovem urbano, moderno, sempre a par da última novidade. Lazer e consumo: carros, velocidade, liberdade, moda, minissaias e calças compridas para meninas; cabelo comprido e roupas coloridas para meninos; e a música do momento: o pop-rock eletrificado das guitarras.
Se a Jovem Guarda difundia um ideal de juventude urbana e de visual modernizado, a rua Augusta seria o campo perfeito para aquele crescente mercado. Dois anos antes da estreia do programa de TV, uma canção já antecipava o novo papel da via paulistana. “Entrei na rua Augusta a 120 por hora/ Botei a turma toda do passeio pra fora/ Fiz curva em duas rodas sem usar a buzina/ Parei a quatro dedos da vitrina”. Composta por Hervé Cordovil para seu filho Ronnie Cord interpretar, a música “Rua Augusta” colaborou para dar projeção nacional ao local-símbolo do comportamento juvenil. Ali era possível ser livre e transgredir normas e regras sociais.
Instalada no meio do bairro Jardins, a rua comercial – considerada um dos pontos mais elegantes da cidade – funcionava como vitrine, um lugar de convivência que propiciava reconhecimento social e ajudava a consolidar identidades públicas. No espaço a céu aberto os jovens podiam passear, olhar as butiques, namorar, dançar, praticar o footing (uma caminhadapara espairecer, sem compromisso). Enfim, era um local para se “ver e ser visto”.
Em ocasiões especiais, de preferência aos sábados, a Augusta era fechada, transformando-se em um boulevardcom mais de 3 mil metros de extensão e 18 travessas, cortada por uma das avenidas mais importantes da cidade, a Paulista. No entorno, os jovens frequentavam cinemas como o Paulistano, o Majestic, o Picolino e o Astor, confeitarias como a Metro e a Yara, bares como o Escócia e o Chez Moi, lanchonetes como o Frevo e o Frevinho, o Lancaster e o Hot Dog, boates como a Bilboquet, e butiques como Pharafernália, Pandemonium, Kleptomania e Ao Dromedário. Havia ainda a loja de discos Hi-Fi, onde era possível escutar música em cabines individuais, a Livraria Cultura e o espaço cultural Casa de Goethe.
A rua não demorou a chegar às telas de cinema pelas mãos do ator e diretor Amácio Mazzaropi. No filme O Puritano da Rua Augusta (1965), Mazzaropi aborda um conflito de geração e de valores: ele interpreta um pai de família conservador que vive a criticar seus filhos jovens por achar que eles não vivem de acordo com a “moral e os bons costumes”. Após sofrer um ataque cardíaco, o personagem muda seu comportamento, passando a agir como um típico jovem da época: adota cabelo comprido com franja, veste roupas modernas, ouve, canta e dança rock n’roll. E, claro, começa a frequentar a rua que era o reduto da juventude. Em 1968 foi a vez de Carlos Reichenbach retratar o local no curta-metragem Essa rua tão Augusta, em que é possível perceber o cotidiano social ligado ao consumo, apresentado de maneira irônica. No longa Beto Rockfeller, de Olivier Perroy (1970) – inspirado na novela de mesmo nome exibida pela TV Tupi – o ator Luiz Gustavo interpreta o personagem principal, um malandro que, por meio de pequenos golpes, tenta conviver com as classes de maior poder aquisitivo. Beto Rockfeller adota a rua Augusta como cenário para suas aventuras. Na literatura, Rua Augusta virou romance em 1962: a autora, Maria de Lourdes Teixeira, ambienta a trama entre as décadas de 1950 e 1960, numa interpretação da juventude inspirada nos beatniks, jovens ligados ao jazz que pretendiam fazer crítica social por meio do pensamento literário.
Existem poucos dados oficiais sobre a origem do nome da rua. É provável que não seja uma homenagem a uma pessoa, mas apenas um adjetivo. As primeiras referências datam de 1875, quando era uma trilha de terra batida que começava na entrada da Chácara do Capão (altura da rua D. Antonia de Queiroz) e seguia até o topo do Morro do Caaguaçu, local onde hoje se encontra a avenida Paulista. Embora alguns pesquisadores afirmem que antes ela se chamava “Maria Augusta”, o site Dicionário de Ruas considera que o português Mariano Antonio Vieira, responsável pela abertura da rua, “não quis homenagear uma pessoa, e sim aplicar algo como um título de nobreza (ou adjetivo) ao chamá-la de ‘Rua Augusta’”. A versão do site, desenvolvido pelo Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, é reforçada pela informação de que o mesmo Mariano, ao abrir uma “picada” no alto do morro do Caaguaçu, chamou esse logradouro de “Rua da Real Grandeza” – hoje avenida Paulista.
Sobre a Augusta dos anos 1960 muita gente tem uma história para contar. É comum que senhores e senhoras que viveram esse período como adolescentes vasculhem sua memória relembrando que frequentaram a rua para passear, paquerar, visitar as butiques, ver os carrões ou admirar as meninas de minissaia. Era ali que os jovens experimentavam a sensação do ambiente urbano e “autêntico” das ruas; era ali que começavam a conviver como grupo, ocupando a rua aparentemente sem intenção de ir a algum lugar ou fazer alguma coisa.
Hoje a rua Augusta ainda funciona como espaço de lazer e sociabilidade para os jovens, mas não apenas aquele trecho “chique” dos Jardins. Caminhando pela rua, pode-se concluir que há diversas “Augustas”. A do comércio popular perto da Paulista, ao lado dos Jardins. A do comércio de luxo que migrou para a Oscar Freire. A das atrações culturais, denominada pela imprensa de Baixo Augusta, com suas lojas “descoladas”, bares e casas de prostituição. A fama da rua em muito se relaciona com este trecho, vinculado à cena underground. Por ali ainda pode ecoar o refrão do antigo sucesso de Ronnie Cord: “Quem é da nossa gangue não tem medo”.
Maíra Zimmermann de Andrade é professora da Fundação Armando Álvares Penteado e autora de Jovem Guarda: moda, música e juventude(Estação das Letras e Cores/ Fapesp, 2013).Saiba mais - Bibliografia
RAGAZZO, Cleber. Rua Augusta: 1950/60/70. São Paulo: Digerati Books, 2005.TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Rua Augusta. São Paulo: Martins, 1968.
Filmes
O puritano da Rua Augusta, de Amácio Mazzaropi (1968)
Essa rua tão Augusta, de Carlos Reichenbach (1965)
Internet
Programa Caminhos da Reportagem, TV Brasil, 2013. Augusta: a ladeira da rebeldia. http://tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem/episodio/augusta-a-ladeira-da-rebeldia
Arquivo Público de São Paulo
História das ruas de São Paulo
www.dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.brPISSARDO, Felipe Melo. “A Rua apropriada: um estudo sore as transformações e usos urbanos da Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012)”. Dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP, 2013). www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16136/tde-12082013-101209/pt-br.php
Augusta e transgressora
Maíra Zimmermann