Filho de ex-guerrilheiros chilenos, Vladimir Safatle é um dos filósofos brasileiros que mais se dedicam a pensar a esquerda no Brasil e no mundo. E não tem gostado do que vê. Professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde passou boa parte de sua vida estudantil, ele já lecionou como convidado em diversas instituições europeias e na África do Sul. Esta conversa com a Revista de História se deu em Londres, onde esteve para dar uma palestra no Birkbeck Institute. Para Safatle, as pautas da esquerda tornaram-se tímidas, enquanto a extrema-direita avança. “O espectro das alternativas políticas se limitou de uma maneira tão brutal que, hoje, insistir em uma pauta social-democrata é quase uma revolução”.
Revista de História da Biblioteca Nacional – Que análises podemos fazer das últimas eleições presidenciais?
Vladimir Safatle - Eu já imaginava a tendência política do Brasil de ir para os extremos. Esse acirramento que observamos é a realização de um processo de esgotamento do centro como o grande espaço da organização do jogo político. O extremo à direita é hoje mais organizado porque tem seus atores e suas pautas mais claramente identificados. Então é possível que eles ganhem autonomia em relação ao PSDB e ao PT, enquanto o campo mais à esquerda ainda é muito fragmentado e precisa de uma capacidade de auto-organização bem maior do que a que demonstrou até hoje. Outro ponto é que essa eleição mostrou o esgotamento do lulismo como projeto político-econômico para o país. O lulismo conseguiu ter bons resultados até o final do mandato do Lula. Já o governo Dilma funcionava como uma espécie de Leonid Brezhnev do lulismo: precisava estabilizar aquilo que tinha sido conquistado. Mas foi um governo muito inábil, especialmente do ponto de vista da criatividade política. Não conseguiu alimentar a sociedade com nenhuma pauta renovadora.
RH - A democracia brasileira está amadurecendo?
VS - A democracia brasileira nunca amadureceu. Ao contrário, ela tende a repetir seus próprios erros. Você não pode falar sobre amadurecimento em uma democracia que é paga por um grupo de empreiteiras, que são as grandes financiadoras de campanhas. Éum tipo de política com nível de participação popular extremamente limitado, reduzindo-se à constituição de coeficientes eleitorais em época de eleição.
RH - O que significaram as manifestações de 2013?
VS - A política brasileira voltou ao seu lugar natural, que é a rua. Esses últimos 20 anos haviam sido um hiato na história do país. E a população voltou às ruas de maneira brutal, com todos os seus atores no mesmo espaço. Uma das tendências era a de que as manifestações se dividissem, e foi o que aconteceu. Existe uma divisão ideológica no país e estamos vivendo algo muito particular, que é a radicalização política sem autores partidários à altura do processo.
RH - Como reage ao discurso de que somos um povo manso, que faz concessões em nome da paz?
VS - Esse discurso não faz o menor sentido. A história brasileira é extremamente violenta. Pense no tenentismo, na Coluna Prestes, nas manifestações populares entre 1945 e 1964, na luta contra a ditadura… não há nada de consensual. O Brasil é um país onde não há sequer uma narrativa unificada a respeito do que foi o regime militar. Há pessoas que acham que punir torturador é inaceitável, pois alegam que houve excesso de ambos os lados. Em um país como este, falar na existência de uma identidade coletiva é um estelionato. As reconciliações no Brasil não são produzidas, são impostas.
RH - No segundo mandato, acredita que Dilma Rousseff conseguirá construir uma base de apoio no Congresso para executar as reformas políticas?
VS - Não há nenhuma possibilidade de ela conseguir fazer isso. Se não conseguiu em quatro anos, com um Congresso que era pró-governo… Um dos maiores equívocos do lulismo foi imaginar que governar é conquistar a governabilidade dentro do padrão de funcionamento do poder tal como ele existe hoje. Esse padrão foi montado para que nenhuma reforma seja feita. Estamos falando de um país onde não é possível a um partido ter sequer a maioria simples no Congresso.
RH - O que significa ser “de esquerda” e “de direita” hoje?
VS - A esquerda defende dois princípios fundamentais: o igualitarismo radical e o fortalecimento da soberania popular como verdadeiro poder instituinte, ou seja, hoje, uma perspectiva de esquerda vai ser necessariamente anti-institucional. Estamos em um processo de reconstrução radical da esquerda no mundo inteiro, e isso vale para o Brasil, que teve a experiência de um partido que veio da esquerda e vai ficar no poder por 16 anos. Isso é relevante, ensina muita coisa, inclusive o que não pode ser feito. Já a direita se fortaleceu nos últimos anos com aquilo que sabe fazer melhor: usar o medo como discurso político. As manifestações populares no Brasil com slogans anticomunistas, por exemplo, são um delírio coletivo inacreditável. É um tipo de inanidade política que a direita consegue mobilizar. E se temos uma situação mundial de crise econômica e incapacidade dos governos de encontrar uma solução, isso vai para a conta da direita, que insiste em um tipo de política liberal completamente suicida.
RH - Mas a extrema-direita europeia parece não querer abrir mão do estado de bem-estar social, uma conduta historicamente alinhada à esquerda. Não soa irônico?
VS - É totalmente coerente. A extrema-direita europeia é popular, sabe quais são as questões, mas dá as piores respostas. Existe hoje uma insegurança econômica e qual é a resposta da direita? Caça aos imigrantes, na tentativa de se achar um bode expiatório, em vez de se criar um sistema de solidariedade social com todos os que trabalham e contribuem, independentemente de onde vieram. As sociedades europeias podem absorver isso. Elas precisam dos imigrantes.
RH - Seria um populismo de direita?
VS - Bem, se você entender populismo como [Ernesto] Laclau entende, você vai ver que toda verdadeira política é populista. Em toda política existe um sentimento anti-institucional, porque a população percebe que o jogo institucional limita e que a plasticidade é própria da democracia. Veja a França: quantas vezes a Constituição francesa foi modificada nos últimos 50 anos? Não existe essa história de que democracia exige instituições fortes. Democracia exige um poder soberano participativo. O que a extrema-direita faz é compreender o que é política. Isso os outros setores não conseguem mais.
RH - A esquerda tenta explicar a ascensão da extrema-direita na Europa sob o viés econômico, mas alguns dos países que sofreram os impactos da crise, como Espanha e Portugal, não veem esse setor crescer tanto.
VS - Esta é uma boa questão. Espanha e Portugal têm uma experiência histórica singular em relação a outros países europeus, por conta das longas ditaduras. A ditadura de Franco terminou em 1976 e a de Salazar, em 1974. São recentes. A maneira com que esses países lidaram com tal legado fez com que a extrema-direita acertasse contas com uma certa memória social, o que bloqueia muito a capacidade de construção de alternativas nesse campo.
RH - E nos Estados Unidos, o que representa o crescimento do Tea Party?
VS - É um caso complicado porque se trata de uma plutocracia. Movimentos como o Tea Party conseguem crescer porque são orgânicos, aparecem a partir de uma mobilização cidadã. A desgraça é que só a direita seja capaz de fazer isso. Não há mais espaço institucional para que sujeitos à esquerda possam entrar no jogo político. Mesmo o partido democrata está completamente à direita. Uma pauta rooseveltiana hoje, com intervenção estatal contra a desigualdade, taxação de grandes fortunas, imposto progressivo – medidas que foram adotadas diante da crise de 1929 – seria impensável. Seria considerada uma pauta comunista.
RH - Essas medidas também são propostas pelo economista francês Thomas Piketty, e ele está longe de ser comunista.
VS - O espectro das alternativas políticas se limitou de uma maneira tão brutal que, hoje, insistir em uma pauta social-democrata é quase uma revolução. Não se fala mais em estatização dos meios de produção. Falar em imposto de renda de até 75% já provoca uma situação proto-revolucionária. Comecei a perceber isso quando fui ao Egito após a Primavera Árabe e perguntei a Ahmed Maher, líder do Movimento Seis de Abril, o que eles queriam. Ele descreveu um conjunto de pautas não muito diferente daquele que foi implementado na Europa nos anos 1950. Achei engraçado: um dos movimentos mais decisivos na constituição de novos sujeitos políticos nos últimos anos tem uma pauta aparentemente reformista, ou seja, nós vivemos um momento político no qual a distinção entre revolução e reforma não faz mais sentido.
RH - No Brasil há espaço político paraa extrema-direita se organizar?
VS - Nada impede, pois temos todos os atores: a ala conservadora da Igreja Católica, os evangélicos, o agronegócio, a parcela proto-fascista da classe média com seus formadores de opinião. Se houver alguém capaz de pegar todos esses grupos e organizá-los em uma constelação, já haverá um partido com pelo menos 10% dos votos, o que é suficiente para a imposição de uma pauta.
RH - O marxismo ainda é capaz de responder às demandas sociais, econômicas e políticas que surgiram a partir de 1968?
VS - O marxismo é uma corrente importante para a constituição do pensamento crítico contemporâneo, mas não diria que precisamos retomá-lo. Eu mesmo não me considero um marxista ao pé da letra, mas um hegeliano de esquerda. Há uma série de lutas sociais que se deram à margem do marxismo no campo da esquerda e isso deve ser absorvido. Do ponto de vista filosófico, nunca partilhei o estranhamento marxista em relação ao pensamento francês contemporâneo – de Deleuze e Derrida, por exemplo. Há uma reconstrução da experiência de pensamento esquerdista que deve ser feita de maneira generosa.
RH - Quais são suas críticas às políticas multiculturalistas?
VS - Eu admito que, em um dado momento, essas políticas tiveram sua importância. Mas as políticas de diferença, no fundo, eram políticas de afirmação identitária, e eunão acho que a identidade seja um conceito político importante. Entendo que a política de construção de identidades tenha uma função estratégica para grupos vulneráveis. Constitui-se uma identidade provisória para que a violência contra eles seja visível e combatida. Mastransformar isso no horizonte final do processo de reconhecimento social é equivocado. A tarefa fundamental da política daqui para frente é a de ser uma política da “des-identidade”.
RH - Por isso afirma que a esquerda precisa ser “indiferente em relação às diferenças”?
VS - Acho que isso foi mal compreendido [quando lançou o livro A esquerda que não teme dizer seu nome, em 2012]. Talvez eu tenha explicado mal. Isso se realizaria através de um processo de desinstitucionalização.Podemos pensar na criação de uma zona de indiferença. O Estado seria indiferente ao modo como você vai constituir seu modelo de união, seus hábitos religiosos… e essa indiferença se transforma em uma indiferença social. Isso não significa que você não poderá ter seus hábitos; eles só não serão politizados. Para mim, uma sociedade democrática é uma sociedade axiologicamente neutra em relação às formas possíveis de vida. Existe a ideia de que a tolerância é um valor político central. Isso é um absurdo liberal, pois tolerância significa “eu preferiria que você desaparecesse, mas temos que dar um jeito de vivermos juntos”. Para que haja diversidade nas sociedades, elas devem ser sociedades da indiferença, ou seja, “há um ponto onde eu e você não conseguimos mais nos diferenciar”.
RH - No estágio político em que estamos, a indiferença não causaria mais opressão a esses grupos vulneráveis?
VS - Esta é uma boa questão. Uma das maneiras equivocadas de se compreender a política é dizer que “ainda é muito cedo”. O partido socialista francês, por exemplo, ganhou a eleição de 1981 e, na época, havia uma proposta de dar voto aos imigrantes. Mas alegaram que era cedo. O que aconteceu? Estamos em 2015 e ninguém mais fala sobre ela. O que quero dizer é que a ideia nunca tem um tempo que lhe é próprio; ela se produz a partir da inadequação do tempo. Nunca acreditei que devêssemos esperar. Ao contrário, devemos insistir para que o tempo bloqueado do presente se transforme em algo tão insuportável que ele nos obrigue a partir para outra situação.
RH - O que esses grupos vulneráveis devem então fazer para conquistar o reconhecimento?
VS - Eu posso entender que eles utilizem ações afirmativas estrategicamente. Mas se reduzir a isso, imaginando que sua identidade será estaticamente constituída e defendida, acho equivocado. Trata-se de mostrar para os setores que lutam hoje por causas específicas que há questões que estão além desses interesses. Quando uma pessoa homossexual luta por um casamento igualitário, ela não está se constituindo um sujeito dotado de interesse particular, mas sim um sujeito que é capaz de encarnar uma demanda universalmente válida, inclusive para grupos contra os quais se luta. Nesse processo, não se lutou para uma afirmação meramente identitária, mas pela constituição de um campo universal que poderia ser apreendido por todo e qualquer sujeito. Por isso digo que sou um hegeliano de esquerda: a função do Estado deve ser a de colocar a sociedade em movimento. Se limitamos o sujeito a ser um índio, um quilombola, um professor, matamos aquilo que ele tem de mais fundamental, que é sua capacidade de não se conformar com uma posição. A ideia de identidade, apesar de culturalmente necessária, politicamente é miserável.
RH - Como lidar com o fato de que o universalismo já causou infortúnio a tantos grupos, como no processo de colonização?
VS - Eu entendo essa colocação, mas trata-se aqui de uma perspectiva universal que vai tentar compreender a existência de elementos de desconforto e de mal-estar em todas as figuras identitárias. Isso faz com que sejamos capazes de compreender a situação do outro, do radicalmente outro, de maneira diferente. Há várias situações em que o discurso universalista não se limita a uma astúcia ocidental para que se imponham formas de vida a outros grupos. Muitas vezes esses outros grupos são capazes de criticar as sociedades ocidentais coloniais exatamente por perceberem a natureza universal de certos processos. Foi o caso dos haitianos cantando a Marselhesa quando as tropas de Napoleão retornaram ao país para tentar reimplementar a escravidão. Os franceses perceberam que estavam lutando contra seus próprios ideais.
RH - Sonhar com o universalismo não seria então sonhar com o fim da política?
VS - Não, pelo contrário. Nesses momentos de embate é que a política acontece. Todos nós lutamos por liberdade, mas dentro de um conjunto definido de valores. Há maneiras de se construírem relações diferentes das que construímos. O [Eduardo] Viveiros de Castro, por exemplo, foi tentar entender como funciona a perspectiva indígena. Pierre Castres foi atrás dos índios brasileiros para pensar uma sociedade sem chefe. Isso é jogar no campo da universalidade. Eu posso dizer: “essas sociedades têm potencialidades que são nossas também, que nunca exploramos”. Saber utilizar o circuito universal em todas as suas mãos é uma astúcia política fundamental.
Avanço do retrocesso
Mariana Campos