Azulejos-piloto

Elisa de Souza Martínez

  • Deixe o carro na garagem. Para conhecer a obra azulejar de Athos Bulcão (1918-2008), é preciso andar a pé pelas calçadas de Brasília.

    Carioca, Bulcão colaborou na construção da nova capital desde o seu início, marcando presença em incontáveis prédios públicos e particulares, em desenhos, gravuras, muros, divisórias e, principalmente, em painéis de azulejos como os da Igreja Nossa Senhora de Fátima. Como poucos artistas, concedeu a seus operários poder de decisão sobre a montagem de alguns de seus painéis. Como muitos, hoje tem seu patrimônio ameaçado.

    “Igrejinha” é como os brasilienses se referem, afetuosamente, à Igreja Nossa Senhora de Fátima, localizada na Entrequadra Sul 307/308. De longe, o que se vê é um edifício de formas simples e dinâmicas, cobertura e colunas brancas, ampla entrada e uma parede externa contínua que o envolve de azul. Apenas quando nos aproximamos é possível enxergar os detalhes, percebendo que na verdade a parede é um painel. Na composição, são alternados dois azulejos de formas diferentes, em cor branca ou preta, sobre fundo azul. Longe de funcionar como mera ornamentação, os desenhos são símbolos essenciais para marcar a função do edifício como local de cerimônias religiosas: a pomba do Espírito Santo e a estrela da Natividade. Sem deslumbramento com o luxo ou a ostentação, esse painel, como toda a obra de Bulcão, prima pela economia de formas, característica que tornou a arquitetura moderna brasileira internacionalmente reconhecida.

    A inauguração da Igrejinha, em 1958, antecedeu em dois anos a da capital. Ela foi erguida no ponto de convergência de quatro superquadras para ser uma “igreja de bairro”, como previu Lucio Costa (1902-1998), o criador de Brasília. Primeira igreja de alvenaria do Plano Piloto, projetada por Oscar Niemeyer, não possui a forma tradicionalmente atribuída às construções religiosas, cabendo aos azulejos de Bulcão caracterizar o modo simples e silencioso da comunhão com o sagrado.

    O edifício é visualmente leve. À distância, parece um véu branco apoiado em três colunas, elevado o suficiente para que possamos identificar o manto azulado que envolve o espaço onde se realizam as cerimônias e celebrações. De perto, pode-se apreciar a colocação pré-definida das peças, fruto do ritual de trabalho dos azulejadores. Está no exterior – disponível, sem cerimônia. A harmonia cromática predominante, bem como o ritmo regular e austero da composição, marca esse primeiro painel de azulejos executados pelo artista na nova capital.

    Athos Bulcão, carioca que abandonou o curso de Medicina em 1939, nutriu-se do convívio com Carlos Scliar, Burle Marx, Di Cavalcanti, Vieira da Silva e outros artistas engajados no amplo movimento de modernização estética. Assim adquiriu uma formação plural. Teve também a oportunidade de passar um período na França, entre 1948 e 1950, entrando em contato com os maiores museus da época. Seu interesse pelas artes incluiu o cinema, a literatura, a música e as artes gráficas.

    Seu primeiro aprendizado na utilização da arte na arquitetura deu-se ao lado de Cândido Portinari (1903-1962), de quem foi assistente na execução do painel de azulejos da Igreja de São Francisco de Assis, pertencente ao conjunto arquitetônico projetado por Niemeyer às margens da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Após a conclusão da obra, em 1945, permaneceu alguns meses como estagiário do mestre, no ateliê do Rio de Janeiro.

    O azulejo havia sido introduzido na arquitetura moderna brasileira com a construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro (atual Palácio Gustavo Capanema), entre 1937 e 1945. Atendendo a um convite de Lucio Costa, responsável pela equipe de arquitetos que concebeu o edifício, o arquiteto e urbanista franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) esteve no Brasil para apresentar sugestões ao projeto, e recomendou o aproveitamento de um material local – o azulejo – para proteger as paredes da umidade tropical e dar uma aparência leve à construção. A partir de então, artistas como Burle Marx, Djanira, Poty, Caribé, Udo Knof e Alfredo Volpi passaram a incorporar painéis à arquitetura de edifícios públicos e privados. E Athos Bulcão levaria os azulejos para a ainda utópica nova capital.

    Funcionário do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura desde 1952, ele se transferiu para Brasília em 1958 para trabalhar na recém-criada Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). Em 1963, a convite de Darcy Ribeiro, integrou a equipe de fundadores do Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília (UnB), mas foi demitido por motivos políticos em 1965. Seria reintegrado à UnB apenas em 1988, retomando a atividade de professor, educando jovens artistas para a exploração consciente do uso da cor. Em 1990, recebeu a aposentadoria compulsória.

    A vasta obra de Bulcão para os espaços públicos de Brasília está distribuída em residências, monumentos, hospitais e outras construções de grande porte pelas quais o artista se tornou mais conhecido. Também realizou pinturas, desenhos, gravuras, ilustrações e fotomontagens em pequeno formato, além de figurinos e objetos cenográficos para teatro. E atuou no âmbito da arquitetura de interiores, criando portas, divisórias, muros, painéis pivotantes (que giram em torno de um ponto fixo) e biombos.

    Descobrir a extensão de sua produção serve de recompensa para quem se dedica a procurar obras de arte a céu aberto. As composições dinâmicas contribuem para o prolongamento do olhar no espaço, favorecido por um caminhar livre. É o que experimenta quem observa a Igrejinha. A repetição dos azulejos e seu desenho emoldurado pelas bordas retas de cada unidade contrastam com as amplas curvas da cobertura e das colunas que a apóiam. O resultado é envolvente: não há um único ponto fixo a partir do qual se tenha uma visão total do painel. É preciso contorná-lo, caminhando.

    A multiplicidade de sua produção é resultado de parcerias com vários arquitetos. Ao lado de Oscar Niemeyer realizou grande parte de sua obra pública. Trabalhos com João Filgueiras Lima, o Lelé, também foram marcantes. Especialmente os projetos para a Rede Sarah Kubitscheck de Hospitais do Aparelho Locomotor. Em um dos hospitais dessa rede em Brasília, Bulcão desenhou dois módulos diferentes, para dois painéis em versões de pares de cor: amarelo/alaranjado e azul/verde. Nos painéis, os desenhos poderiam ter sido unidos para que, de quatro em quatro, compusessem formas circulares fechadas. Mas isto teria gerado um efeito estático. O artista evitou o óbvio: o resultado é um desenho de linhas onduladas e alegres que parecem não ter fim.

    Não havia para ele uma fórmula única. Enquanto no painel do Hospital Sarah Kubitscheck utilizou-se de dois azulejos e múltiplas possibilidades combinatórias, na Parada de serviços do Parque da Cidade criou variações de posição de um único azulejo, intercalado por algumas peças de cor branca.

    Suas peças também contrariam a lógica do ornamento fabricado em escala industrial. Os azulejos são concebidos como elementos de painéis únicos. Os que recobrem a parede externa da Igrejinha, por exemplo, foram desenhados especialmente para ela. Fiel ao princípio moderno de criação, o desenho nega a imitação da natureza e a ilustração de temas. As formas de cores puras são inventadas.

    Em vez de usar a mão-de-obra operária como simples ferramenta de um sistema mecânico e tirânico, Bulcão oferecia ao azulejador a possibilidade de tomar decisões. Em alguns painéis, a escolha da posição dos azulejos foi dos próprios operários, que assim compartilhavam do resultado final. Essa estratégia revela características importantes do trabalho do artista. Deixa claro que a multiplicação não implica, necessariamente, padronização. Coerente com os princípios da arte contemporânea, a obra se conclui através da percepção do indivíduo. E incorpora o acaso como gesto criativo. No painel, que não é assinado, a autoria do artista é tão anônima quanto a co-autoria de um número indeterminado de operários.

    Athos Bulcão realiza uma pintura arquitetônica definida por Fernand Léger (1881-1955) como um tipo de arte coletiva. Seus painéis dão ensejo a um ambiente e – por que não? – a um certo modo de viver, despojado e despretensioso.

    Infelizmente, muitos moradores da Brasília atual, descontentes com a simplicidade da arquitetura moderna e já sem compromisso com a implantação de uma nova cidade, substituem o azulejo original e nobre por materiais e ornamentos que ostentam poder econômico – e falta de originalidade.

    O tempo de Bulcão era outro. Foi um artista que acompanhou, desde o início, a construção de uma utopia chamada Brasília. Por isso, seu desenho é ao mesmo tempo imponente e discreto. Muitos passam por ele sem reconhecê-lo. Sua obra, simples e silenciosa, nos coloca um desafio: é possível encontrar, no espaço da vida cotidiana, um momento de deslumbramento com a arte? Ainda haverá surpresas no prédio por onde transitamos todos os dias? Uma parede, uma divisória, um traço no chão em que pisamos? Olhe bem. Athos Bulcão pode estar ali.

    Elisa de Souza Martínez é professora da Universidade de Brasília e autora do projeto De olho na história – Educação e patrimônio artístico em Brasília (SEC/DF-DEPHA, 1992).

    Saiba mais - Bibliografia:


    FARIAS, Agnaldo. Construtor de espaços. Athos Bulcão. Brasília: Fundação Athos Bulcão, 2002.

    FREITAS, Grace de. Brasília e o projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

    LÉGER, Fernand. Funções da pintura. São Paulo: Nobel, 1989.

    Saiba Mais - Site:


    Fundação Athos Bulcão: www.fundathos.org.br