Balas agridoces

Ana Flavia Cernic Ramos

  • “Há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro”. Foi com esta frase que Lélio, pseudônimo de Machado de Assis (1839-1908) na série “Balas de estalo”, começou sua crônica do dia 26 de janeiro de 1885. Acusado por um amigo de rir de tudo, ele se defendia dizendo que, assim como o “barbeiro da comédia”, personagem da peça “O barbeiro de Sevilha” (1773), preferia rir por temer ser obrigado a chorar. Entretanto, como já alertava o divertido narrador, as balas de estalo, aparentemente doces, depois de desembrulhadas podiam guardar outras surpresas.

    As “Balas de estalo” foram publicadas entre 1883 e 1886 num dos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, a Gazeta de Notícias. Foi uma das séries mais duradouras de Machado de Assis, formando um conjunto de 125 crônicas que misturavam humor e crítica social em uma linguagem leve e acessível aos muitos leitores da Gazeta. Receita de sucesso, os textos de nomes como Lulu Sênior, Zig-Zag, Décio, Publicola, José do Egito e Mercutio eram muito queridos pelos leitores do jornal.  Além de Machado, célebres intelectuais estavam por trás desses pseudônimos, como Capistrano de Abreu (1853-1907), Ferreira de Araújo (1846-1900), dono do jornal, e Valentim Magalhães (1859-1903). Somados todos os colaboradores, a série teve 940 crônicas no total.

    Curtos e engraçados, como flashes, os textos surgiam a partir de comentários rápidos sobre acontecimentos do cotidiano, fatos inusitados que eram transformados em crítica às tradicionais práticas políticas do Império. Essas crônicas representavam angústias e incertezas de um momento histórico repleto de ambiguidades ideológicas, quando a sociedade escravocrata convivia com instituições liberais. Discussões parlamentares, reuniões abolicionistas e revoltas urbanas fizeram dos anos 1880 um período de grande agitação social. A escravidão e o sistema monárquico eram questionados e ameaçados, e a Lei dos Sexagenários – promulgada em setembro de 1885 e que libertava os escravos com mais de 60 anos – acirrava o debate acerca da “questão servil” e assustava os proprietários. Os republicanos avançavam cada vez mais, assim como as discussões sobre o poder pessoal do imperador se intensificavam nos jornais. Os narradores da série tentavam dar sentido a todas essas mudanças. “Anteontem, no Senado, trocaram-se algumas palavras, incidentemente, sobre qual das formas de governo é mais barata ou mais cara, se a monarquia, se a república. (...) Considero-me obrigado a vir dizer perante o meu país e o meu século que a mais barata de todas as formas de governo seria a que Proudhon preconizava, a saber, a anarquia. Pode-se gastar mais ou menos com o galo ou o peru que está no quintal, não se gasta nada com o cisne, que se não possui”, refletia Lélio.

    A marca registrada das balas era justamente a ambivalência de sentidos em cada texto. José do Egito, pseudônimo de Valentim Magalhães, afirmou que a série unia “a força e a graça, a artilharia e os confeiteiros” para descobrir um “projétil” que participasse “do amargo da guerra e da guerra aos amargos”. Era preciso criticar, interferir nos acontecimentos, mas também manter a leveza, o humor, a brevidade, o tom acessível. Essas eram características não só da Gazeta, que se dizia um jornal moderno, barato e popular, mas do próprio gênero cronístico.

    Ao ler as “Balas de estalo”, nota-se que muitas vezes os cronistas ofereciam “pólvora” disfarçada de “açúcar”, ou seja, embora cobertas de humor e ironia, as crônicas estavam sempre recheadas de críticas contundentes à monarquia, à Igreja católica e à escravidão. Lulu Sênior atacava, por exemplo, a lei que obrigava o sepultamento em cemitérios católicos: “Que fique essa para os católicos, e os que não são possam ser enterrados ou cremados em qualquer parte, sem licença de uma autoridade com a qual eles nunca tiveram nem quiseram ter relações. (...) O que reclamamos é justamente o direito, que até aqui é privilégio dos católicos, de morrer como vivemos”.

    Numa referência também aos estalinhos de meninos – bombinhas utilizadas em festas populares, que batiam no chão, faziam barulho, mas não machucavam –, a série foi bem mais que uma brincadeira jocosa. A própria opção de Machado de Assis pelo pseudônimo Lélio incorporava esse sentido. Ao entrar para o grupo, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) estava diante de um projeto já estruturado: seis narradores, unidos pelo humor e pelo tema da política. Após anos sem participar de um projeto coletivo, Machado de Assis teve que inventar um narrador que se adequasse à coluna. Assim como Pantaleão, Colombina e Arlequim, Lélio – que inspirou o escritor – era originalmente um dos personagens fixos da Commedia dell’Arte, gênero teatral que surgiu no século XVI na Itália. Espetáculos populares com cantos, danças e acrobacias, a Commedia dell’Arte fez grande sucesso na Europa. Com histórias repletas de bufonarias, intrigas amorosas e sátiras sociais, trupes de dez ou 12 artistas mascarados faziam apresentações nas ruas e nos teatros das cidades, criando histórias que convertiam situações dramáticas em conteúdo humorístico. Críticas sociais viravam piadas e irônicas brincadeiras.

    Dentre todos os personagens, Lélio era o único que não usava máscara. O ator que o representava deveria ser jovem e elegante, atributos que lhe davam destaque no espetáculo. A introdução do elemento “real” em meio às máscaras teve grande repercussão, garantindo o sucesso imediato desses personagens junto ao público. Esse sucesso foi ressuscitado posteriormente por autores como Marivaux (França, 1688-1763) e Carlo Goldoni (Itália, 1707-1793), que fizeram de Lélio o personagem principal de várias de suas peças. Mas foi com o francês Molière (1622-1673) que a Commedia dell’Arte foi consagrada. Considerado o mestre da sátira, suas obras passaram a criticar profundamente os costumes da época com peças que resgatavam antigos personagens e modelos da comédia italiana. Em 1660, como um tributo ao gênero, ele estreou a peça “Sganarelle ou O corno imaginário”, que tinha Lélio como um de seus personagens centrais.

    Molière já era parceiro antigo de Machado de Assis. Nas crônicas publicadas no Diário do Rio de Janeiro, na década de 1860, encontramos o dramaturgo auxiliando o escritor em muitas de suas ironias em relação aos políticos. Para o caso de “Balas de estalo”, a citação parecia ainda mais apropriada, já que resgatar Molière e a Commedia dell’Arte sintetizava, entre outras coisas, o papel de contundente crítico social. Tal como nos espetáculos de bufonaria no século XVI, ou como as mordazes peças teatrais de Molière, a série “Balas de estalo” fazia muito mais que humor e graça.

    Durante todo o tempo em que colaborou na série, Machado participou intensamente dos debates criados pelo grupo de escritores. Seu narrador não poupou comentários ácidos a respeito da retórica vazia dos parlamentares, do aspecto de farsa da política imperial e da ineficiência do modelo eleitoral do país.  Foram muitos os temas que passaram pelas suas crônicas, todas escritas com a “pena da galhofa”, mas sempre com o alvo muito bem delimitado.  

    Ana Flavia Cernic Ramos é autora da tese “As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas ‘Balas de Estalo’ de Machado de Assis” (Unicamp, 2010).



    Saiba Mais - Bibliografia


    CANDIDO, Antonio (org.). A crônica: o gênero, sua fixação, e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

    CHALHOUB, S; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, L. A. de M. (orgs.). Histórias em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

    DE LUCA, Heloisa H. P. (org.). ‘Balas de estalo’ de Machado de Assis. Crônicas Brasileiras I. São Paulo : Annablume, 1998.