Balcão de negócios

Maria Luiza Ferreira de Oliveira

  •  A urbanização repentina das últimas décadas do século XIX e o enorme crescimento da população da cidade de São Paulo fizeram com que pequenos estabelecimentos comerciais se transformassem em importantes pontos de referência no cotidiano da sociedade. Lojas e armazéns passaram a ser importantes centros de sociabilidade para uma massa formada por pequenos comerciantes, artesãos, funcionários públicos, carroceiros, farmacêuticos e donas-de-casa – a população urbana de média e baixa renda.

    Entre 1872 e 1900, o número de habitantes da capital paulista aumentou de 31 mil para 239 mil habitantes. O maior crescimento ocorreu entre 1890 e 1900: de 64.934 habitantes para 239 mil. Algumas informações sobre muitas pessoas comuns, cujas vidas não estão escritas nos livros de História, podem ser encontradas nos inventários post mortem da época.

    Consultando os documentos que cobrem os períodos de 1875 a 1880 e de 1895 a 1900, podemos entender uma época de transição entre a cidade antiga, de feições coloniais, e a nova, republicana, com o centro reurbanizado, suas largas avenidas e o Teatro Municipal. É possível perceber também a decadência das formas tradicionais de convívio, de habitação, de trabalho, de lidar com as finanças, e o início de novas convenções e costumes ajustados aos novos tempos. Desta forma, a análise do período nos permite observar os aspectos que se modificaram e os que se mantiveram na organização da vida e na inserção urbana de uma geração para a outra.

    Os inventários carregam histórias construídas em dois tempos: o do morto e o dos herdeiros. Muitos dos que morreram já idosos em 1880 viveram a maturidade nas décadas de 1840 e 1850. Portanto, somente no final de suas vidas conviveram com uma cidade de 30 mil habitantes, e só por oito anos com as ruas iluminadas e com o bonde. Presenciaram o início do que seria a grande expansão da cidade, mal chegando a conhecer, por exemplo, as mansões do moderno e sofisticado bairro dos Campos Elíseos, loteado entre 1879 e 1881, com sua influência francesa até no nome. Para esta geração, a experiência urbana foi um cotidiano de intimidade com o universo rural. Passear pela ponte do Carmo e pelas chácaras do Brás, passarinhar vadiamente pelo campo, nadar nos rios ainda limpos da cidade, criar galinhas no quintal, ver e ouvir os carros de boi passando pelas ruas do centro eram hábitos típicos dos paulistanos.

  • Já os falecidos em 1900 conviveram com uma cidade que passara de 44 mil habitantes – população de 1886 – para mais de 200 mil; viveram doze anos sem escravidão e desfrutaram a iluminação noturna por vinte e oito anos. A experiência urbana dessas pessoas foi muito mais intensa do que a da geração anterior: vivenciaram o crescimento da malha urbana, viram o surgimento de inúmeros bairros e edifícios novos, andaram por uma cidade em obras tomada por trabalhadores e presenciaram o nascimento da confusão do trânsito.

    Na cidade de São Paulo da década de 1870, na loja de fazendas do Juca Mamede – uma casa térrea de esquina, entre as ruas da Imperatriz (hoje XV de Novembro) e das Casinhas – quase todos os dias, no fim da tarde, havia um ajuntamento de cavalheiros. Na mesma Rua das Casinhas, nos baixos do sobrado número 13, localizava-se a famosa quitandeira Nhá Maria Café, muito lembrada por suas empadas de farinha de milho com piquira ou de lambari e pelo cuscuz de bagre e camarão. Os amigos costumavam se encontrar ali para descer a Rua Municipal até a ponte do Mercado e passear pela ponte sobre o Rio Tamanduateí. Na volta, ficavam jogando conversa fora nas lojas até as nove da noite, hora em que dobrava o sino da Igreja do Colégio – a senha para se recolherem a suas casas.


    Com as portas abertas para a rua, os comerciantes mantinham estreito relacionamento com o movimentado cotidiano da cidade. O comércio funcionava até tarde da noite e representava um importante ponto de encontro para a população. Os armazéns, ou casas de secos e molhados, eram, sem dúvida, espaços com diversas funções sociais. Mais do que simples locais de venda, eram também pontos de encontro de diferentes classes sociais, tanto “aristocratas” como homens simples. Além disso, no armazém a população podia obter empréstimos para pagar a escola dos filhos, o enterro dos cônjuges, comprar remédios etc. Na cidade que crescia rapidamente, estabelecer um bom relacionamento com o dono do armazém era uma estratégia de sobrevivência fundamental. Diante da inconstância do ainda pequeno mercado de trabalho, esta relação podia até mesmo garantir a alimentação da família nos períodos de desemprego ou de atraso de salários.

    Nos armazéns do século XIX, as esferas do público e do privado se misturavam. Além de serem locais de trabalho e de residência das famílias, eram usados de diferentes maneiras pela população. Ali as pessoas se encontravam, paravam para conversar, buscavam empréstimos, se inteiravam de histórias. O comerciante estava sempre presente. Às nove horas, quando as lojas fechavam, muitos deixavam uma porta aberta noite adentro. Diante das reclamações sobre atendimento ao público em horas impróprias, os sagazes negociantes alegavam que as portas em questão davam acesso às suas residências. A própria feição das lojas se parecia com uma residência, sem grandes diferenças externas.

  • A maioria dos comerciantes não tinha muitas posses. Muitos negócios ficavam na sala da frente, e mal se podia diferenciar os bens da casa dos da loja. Em um dos inventários, os avaliadores anotaram, lado a lado, a posse de um lote de chapéus de palha e uma marquesa de casado com dois colchões, confundindo o que pertencia à casa com o que pertencia ao estabelecimento comercial.

    As redes de apoio construídas em torno do pequeno comércio estavam longe de enriquecer os donos de armazéns. A maioria vivia de modo simples. Quando faleciam, quase sempre seus negócios eram encerrados. Enquanto os herdeiros dos donos de armazéns ficavam, em média, com 50,5% do patrimônio, entregando o resto para pagamento das dívidas, os outros negociantes mantinham 66,5%.

    A fragilidade econômica dos lojistas, sobretudo dos pequenos, foi uma realidade comum a diversos contextos do século XIX, sobretudo na segunda metade. Em São Paulo não foi diferente. A dificuldade de acesso ao dinheiro e a necessidade de estender o crédito ao cliente representavam importantes desafios para os pequenos comerciantes, criando equações difíceis de solucionar.

    As lógicas que regiam a dinâmica do crédito, o empréstimo de dinheiro, não são lineares nem fáceis de rastrear. Ao mesmo tempo em que não se pagava ao fornecedor, emprestava-se dinheiro para um conhecido e em seguida recorria-se a um banco para ter novamente dinheiro, e novas redes inusitadas se formavam. Confiança, proximidade e amizade eram fatores estratégicos para o funcionamento do comércio na cidade de São Paulo.

  • O casal de italianos Julio e Lydia Guzzi, donos de uma padaria na Rua do Comércio, tinha uma dívida com o fornecedor de carne que ultrapassava os dois contos de réis, e nem por isso deixaram de continuar recebendo produtos de seu credor. Deviam também a fornecedores de farinha e de banha quantias igualmente altas, mas mantinham sua padaria aberta – o pão e os biscoitos sendo feitos todos os dias – graças ao crédito. Por outro lado, eles retribuíam no balcão o crédito por longo tempo, como mostra o inventário do capitão José Izidoro Pereira, dono de um colégio na Ladeira do Porto Geral. O capitão devia para os Guzzi, em 1874, a elevada quantia de 785$492 por dívida antiga.

    Os relacionamentos dentro da cidade não obedeciam a códigos rígidos, ligados à profissão ou a um padrão hierárquico, mas a contextos locais, individuais, que cada grupo de moradores, com suas relações próprias, construía. Francisco Antonio de Oliveira, ou Chiquito ferrador, morreu em 1879, deixando mulher e filhos. Tinha duas casinhas, um terreno e o “restante de uma tenda de ferrar, que se acha tudo estragado, que foi declarada sem valor”. Mas devia para três comerciantes por mantimentos e para o engenheiro José Porfírio de Lima, que pagara “despesas de sua casa e tratamento em todo o tempo de sua enfermidade”. O engenheiro da província, apesar de não ter nenhum parentesco com Chiquito ferrador, forneceu a ele um crédito sem perspectiva de retorno, a não ser no momento do inventário do devedor.

    A rede de crédito funcionava baseada em relações pessoais. No caso da urbanização de São Paulo, o crédito que ia além da sobrevivência cotidiana, além dos mantimentos e médicos, era um instrumento fundamental na busca da estabilização e do enraizamento econômico. Era o crédito para comprar estoque e montar um negócio, para comprar uma casa que posteriormente poderia ser hipotecada, para construir outra e obter renda, ou fazer um negócio, ou ainda para obter os serviços de médicos, marceneiros, advogados, para se vestir e até morar.

    Uma vasta parcela das camadas médias da população dependia do crédito para sobreviver. Só assim, contando com esses expedientes econômicos, apoiando-se nessas práticas, muitas famílias conseguiram construir sua vida na cidade.

  • Cerca de 80% dos inventários tinham dívidas, sendo a maioria delas de baixo valor, o que nos dá uma dimensão da forte presença de uma “cultura” de crédito no contexto social da cidade de São Paulo. Todos os grupos de riqueza estavam envolvidos, em maior ou menor grau, nas práticas de emprestar e pedir emprestado, inclusive os mais pobres. Entretanto, nos inventários, era mais comum a presença de credores do que de devedores.

    A limitada quantidade de dinheiro em circulação na época explica, em parte, o extenso uso do crédito. A queixa por falta de dinheiro em espécie era constante nos jornais da época, e foi um dos problemas com os quais os ministros da Fazenda do fim do Império e do início da República tiveram que lidar. Ao mesmo tempo, nesse período, o largo crescimento da economia estimulava a realização de novos negócios. O endividamento não refletia apenas uma crise, mas também um rápido aquecimento da economia. Muitos investimentos novos eram feitos, mas a disponibilidade de dinheiro continuava pequena.

    Quem tinha condições de fornecer dinheiro? Os dados mostram uma dispersão do crédito em mãos de funcionários públicos, padres, negociantes, advogados, médicos e artesãos, entre outros. Um austríaco de nome Gasperi, que teve seu inventário aberto em 1897, deixou sete dívidas, cada uma com um credor diferente, várias contraídas na mesma época. Gasperi não usou os serviços de qualquer agiota profissional. Os empréstimos foram obtidos com pessoas com quem mantinha relações no âmbito pessoal. 

    As elites mais abastadas da cidade – com seus barões e viscondes – quase não aparecem nos inventários no papel de credores. Embora os historiadores costumem afirmar que as camadas médias dependiam da “aristocracia” dominante, não foi a ela que as famílias com menos recursos recorreram em busca de apoio financeiro.

  • O crédito era praticado de várias formas: podia-se obter dinheiro hipotecando um bem e também por meio de um vale, uma letra, um título ou uma simples obrigação assinada. Empréstimos também eram feitos sem qualquer garantia contratual documentada, baseados apenas na palavra e na confiança.


    Havia uma grande convivência de práticas informais e formais. Ao lado de um empréstimo hipotecário, outro era feito apenas com base na confiança entre as partes, um terceiro com um vale, e assim por diante. Não se tratava de um mercado regulado por leis; a prática não estava afinada com o mundo abstrato e regular das normas, mas sim com diversos arranjos feitos de acordo com as necessidades de cada situação. Havia, sobretudo, um predomínio das relações pessoais: daí o surgimento de soluções variadas para as dificuldades financeiras.

    Observando os inventários dos dois períodos, ficou clara uma redução das operações de crédito ao longo dos 25 anos. Caíram as dívidas ativas e passivas. O crédito em 1875-80 era mais acessível do que vinte anos mais tarde. Emprestar fazia parte de um comportamento coletivo ligado ao modo de vida da cidade. Durante esse período, pediu-se mais, ao mesmo tempo em que se emprestou mais. A população de São Paulo cresceu velozmente nesses anos, o que parece ter contribuído naquele momento, contraditoriamente, para uma queda nas relações de crédito.

    Talvez porque o crescimento populacional tenha sido muito abrupto, armou-se um quadro complexo: com mais pessoas chegando, era maior a necessidade de crédito. A confiabilidade era elemento central para o funcionamento das redes de crédito. Quando a insolvência começava a ficar muito grande, as redes eram afetadas e os códigos não eram mais os mesmos. A expansão do mercado era contrária às relações de confiabilidade, e a queda da confiança acabou levando a uma maior presença da lei e a uma formalização das relações sociais.

    Talvez seja a hora de observarmos os laços de solidariedade que uniam aqueles que faziam parte das camadas médias da sociedade, que não dependiam senão de si próprios e da ajuda dos que viviam em condições semelhantes. Perseguindo a sua história e as suas lutas, poderemos ouvir suas próprias vozes, e não apenas os ecos das elites, supostamente beneméritas e protetoras. 

     Maria Luiza Ferreira de Oliveira é pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e autora do livro Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização, São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.