Toca o telefone. A 20 metros do chão, Júlio Maya atende: “Deixa eu descer do andaime que falo com você”. O restaurador e artista plástico estava a poucos centímetros do forro que cobre a Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Domingos Gusmão, no Centro Histórico de Salvador. A pintura é atribuída a José Joaquim da Rocha (1737-1807), e Maya coordena a equipe responsável pela reparação da igreja, construída em 1731 e primeiro monumento baiano restaurado com investimentos do PAC Cidades Históricas, via Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
As obras começaram em julho passado e estava prevista para as pinturas apenas uma limpeza do verniz. Quando a equipe analisou de perto o forro, veio o susto: “De baixo, víamos quadratura e perspectiva [típicas do período do artista], mas de cima, me deparei com uma aberração e pensei ‘Se isso é dele, era um péssimo pintor’. As linhas eram mal feitas, o forro era sem vida. A paleta de cores não era dele”, lembra o coordenador.Durante o processo de limpeza com água e acetona, camadas de tinta foram desaparecendo com o mínimo de esforço, indicando que essa superfície era posterior ao século XVIII. Eram repinturas por cima do original. Aos poucos, a verdadeira obra de Joaquim da Rocha foi surgindo e, com ela, outro marco histórico: traços de ouro. “Aí liguei para Mônica Farias, sabendo que ela era pesquisadora dos forros de quadratura [pintura de ornatos de arquitetura]”, conta Júlio Maya.Mas por que pintar por cima? É a própria Mônica Farias, mestre em Artes Visuais e especialista na obra de Joaquim da Rocha, da Universidade Federal da Bahia, quem explica: “No forro da igreja foi usada madeira verde (não amadurecida), que secou e encolheu com o tempo, deixando falhas de cerca de um centímetro entre as tábuas. Detectamos que, já no século XIX, houve o preenchimento desses espaços com filetes de madeira. Foi necessário recompor a pintura, mas o artista não podia usar tintas da época, a diferença seria nítida, mesmo vista do chão. Por isso o teto foi todo repintado. E essa foi certamente a primeira intervenção”.
Aparentemente, três artistas trabalharam por cima da pintura de Joaquim da Rocha, provavelmente para encobrir manchas de infiltração e reavivar a igreja. Mas “não sabiam como restaurar, aí pintaram com tinta chapada, por cima. Foi questão de socorro: ‘Está escorrido ali, tem que ficar mais bonito!’. Se fosse para melhorar, colocariam o anjo de outro jeito, por exemplo”, explica Júlio Maya. Sua equipe decidiu, então, remover as repinturas.A partir de dezembro, com a reinauguração da igreja, características típicas do barroco brasileiro poderão ser plenamente contempladas mais uma vez.
Barroco sob camadas
Angélica Fontella