- Dia desses, estava pensando em como fui levado a trabalhar com biografias. Minha lembrança me remeteu ao ano de 1995, quando lia Chatô, o rei do Brasil, livro de Fernando Morais sobre a vida de Assis Chateaubriand. Fiquei deliciado com as histórias contadas naquelas páginas, das relações de Chatô com Vargas e de como, descaradamente, o dono dos Diários Associados interferia nos destinos do país, quase sempre para conseguir alguma vantagem para suas empresas.Pouco menos de uma década se passou e um tema insistia em retornar ao meu horizonte de pesquisa: o personagem, o indivíduo Getúlio Vargas. Cheguei, não sem antes me perder diversas vezes pelo caminho, ao ponto que me levou a desenvolver a tese intitulada Getúlio Vargas biografado (UFMG, 2008), na qual analisei diversas biografias sobre ele, pensando que nelas fosse encontrar mais elementos para compreendê-lo como indivíduo e político.Nesta empreitada, algumas surpresas me aguardavam. Primeiro, a quantidade de biografias existentes sobre o ex-presidente: mais de duas dezenas, sendo a primeira do ano de 1939. Mas talvez o mais surpreendente para um neófito tenha sido o conteúdo encontrado naqueles trabalhos. Das oito biografias que analisei, uma em especial me chamou a atenção: Mito e realidade de Vargas, escrita em 1955 pelo psicanalista Cláudio de Araújo Lima. Longe de qualquer preocupação com o verossímil, como eu esperava, o livro tinha outros objetivos. O autor tentava exorcizar o país daquela experiência, para ele trágica, dos anos de governo Vargas. Com métodos pouco ortodoxos, “analisou” o personagem, chegando ao seguinte diagnóstico: Vargas era um frustrado, especialmente por sua inferioridade física. A frieza do político não era fruto de um comportamento maquiavélico, mas sim de um caráter “esquizotímico”, de uma possível esquizofrenia, com delírios persecutórios e mania de perseguição.Nem sua vida sexual foi deixada de lado. De acordo com o biógrafo, do ponto de vista erótico, Vargas era a negação do brasileiro típico, pois de supostos casos extraconjugais não existiam relatos dignos de crédito, provavelmente criados pelo “orgulho nacional” da “hipervirilidade”. A tese seria contrariada em 1995, com a publicação, em dois volumes, do “Diário” do ex-presidente.O que mais me chamou a atenção foi a explicação do autor para a popularidade do personagem. Em sua visão, isso era resultado da manipulação das massas miseráveis e incultas. Puro preconceito de uma certa elite intelectual que deslegitimava as opções populares e que volta e meia retorna nas análises da história política nacional.Apesar de as biografias conterem uma aura de verdade, a obra Mito e realidade de Vargas falou muito mais sobre os projetos e os posicionamentos políticos do autor e de seu grupo do que, como se esperaria, da vida do protagonista. Reconhecer este tipo de uso das biografias, ao invés de desvalorizá-las, torna-as ainda mais instigantes para os historiadores.Marcelo Hornos Steffens é professor da Universidade Federal de Alfenas e organizador de Palavra de trabalhador (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre/Gráfica e editora V&C Ltda, 1998).
Baseado em fatos reais
Marcelo Hornos Steffens