Batalha musical

Vinicius de Carvalho

  • Fui no Itororó
    Beber água não achei
    Achei bela morena
    Que no Itororó deixei


    Não há criança no Brasil que não conheça esses versos. Talvez a consciência histórico-geográfica de onde fica o Itororó tenha se perdido, mas esta cantiga folclórica lembra o riacho que dá nome a uma das mais sangrentas batalhas da Guerra do Paraguai (1864-1870). Esta lembrança musical do maior conflito militar em que o Brasil já esteve envolvido, também conhecido como Guerra da Tríplice Aliança, não é a única. Os músicos militares estiveram presentes e tiveram importante papel durante todo o conflito.

    Clarinetas, trombones e flautas juntaram-se a canhões e baionetas e compuseram uma verdadeira trilha sonora do campo de batalha. As bandas de música eram parte integrante dos Batalhões de Fuzileiros e dos Batalhões de Caçadores do Exército Permanente, ou seja, do Exército profissional. Também os Batalhões de Voluntários da Pátria tinham bandas em seus quadros. Diferentemente do Exército de Linha, que tinha músicos com formação militar prévia, os dos Batalhões de Voluntários da Pátria vinham das camadas populares, muitos deles sem uma formação militar inicial, e que aprenderam a tocar em bandas civis ou mesmo em igrejas. Esse fato fez com que o repertório popular estivesse muito presente na campanha militar, já que era isso que estes instrumentistas estavam habituados a tocar.

    A Guerra do Paraguai modifica, assim, as bandas brasileiras. Os civis levavam a composição popular para o campo de batalha e, ao retornarem da guerra, voltavam militarizados. Quase todas as bandas civis passaram a usar uniformes que lembravam os dos soldados e a marchar em forma, como uma tropa. O repertório popular passou a ser também usual entre as bandas militares.

    As polícias militares de cada estado do Brasil que mandaram tropas para a Guerra do Paraguai também levaram seus músicos, já que muitas dispunham de bandas organizadas antes mesmo do início do conflito.

    Um bom exemplo é o caso da Banda da Polícia Militar da Bahia, que em 1865 parte com o 10º Corpo de Voluntários para a guerra. Segundo algumas crônicas, os componentes da banda atuavam como padioleiros e tocavam nos intervalos das lutas para alegrar os soldados.

    Mas os músicos tinham também funções militares. As bandas tocavam em formaturas das tropas e mesmo em marchas. Na Guerra do Paraguai, tocavam durante os combates, ainda que isso pareça absurdo. É o que relata Paulo de Queiroz Duarte, autor de obra fundamental para os estudos sobre a Guerra do Paraguai, quando fala da tática de formação de quadrados empregada pela infantaria no combate. Após a os soldados entrarem em formação, os corneteiros e tambores ocupavam o centro do quadrado e a banda tocava enquanto durasse o fogo. Os corneteiros e tambores repassavam todas as ordens de combate.

    Duarte não diz o que tocavam, mas pode-se imaginar que não seriam canções populares. Muito provavelmente, alguma marcha de caráter bastante militar, ou mesmo algum hino patriótico.

    Um exemplo do que poderia ser essa música encontramos em uma pequena coleção depositada na Biblioteca Nacional sob o título Peças para banda pelo mestre da musica do 7 Bam. 11 de Voluntarios da Pátria. Seu autor, Filippe Neri de Barcellos, escreveu uma coleção variada de peças a serem executadas pela banda de seu batalhão e as dedica a D. Pedro II. Da coleção constam: “O Rompante do Lopes”, dobrado; “O Attaque do Riachoelo”, dobrado; “O Explendido triumpho de Uruguayanna”; “O Hymno de gloria” e “A Patiada aos paraguays”, polka.

    As pinturas do argentino Cándido López são outra grande fonte de informações sobre as bandas de música. Na tela que retrata o desembarque do Exército argentino em Curuzu, em 12 de setembro de 1866, pode-se ver a banda de música posicionada em formação. Os tambores estão antes da banda, que parece estar tocando. Todos os músicos aparecem com seus instrumentos em posição de execução, e o mestre, também tocando, está voltado para a banda.

    Nos intervalos das lutas, as bandas tocavam para alegrar os soldados, e nessas horas era a música popular que se fazia ouvir. Muitas obras foram escritas por compositores anônimos, como a “Havaneira”, “polka, tocada pela banda de musica do Batalhao Voluntarios Porto alegrenses nas noites de 25 e 26 de abril 1870”, cuja partitura também está depositada na Biblioteca Nacional.

    Mas, sem dúvida, a canção mais conhecida e referência primeira de música na Guerra do Paraguai é a “Vivandeira”, nome originado na designação das mulheres que acompanhavam a tropa em campanha e que marcaram a história desse conflito. Sobre a origem da canção, há muita controvérsia. A fonte documental mais exata é o Cancioneiro de musicas populares: collecção recolhida e escrupulosamente trasladada para canto e piano por Cesar A. das Neves, publicada em Portugal no fim do século XIX e que atribui a autoria a Luiz Augusto Palmerim. Outras fontes atribuem a canção a António Luiz Miro ou ainda ao brasileiro Januário da Silva Arvelhos. Independentemente da precisão desta origem, o que importa é a identificação do soldado brasileiro com esta canção, uma valsa dolente, nada marcial, afeita ao violão, instrumento que era parte integrante da vida do soldado.

    A fé era também uma das armas do soldado brasileiro durante a guerra. Sua devoção era expressa do mesmo modo em música, com o “Terço da Imaculada Conceição dos Militares”, de autoria desconhecida. Dionísio Cerqueira (1847-1910), ministro do governo de Prudente de Morais que foi soldado nessa guerra, em suas Reminiscências da Guerra do Paraguai, relata a vigília do dia 24 de maio, em Tuiuti, depois do toque de recolher: “os melhores cantores entoaram com voz vibrante, sonora e cheia de sentimento, a velha oração do soldado brasileiro: Oh! Virgem da Conceição... aquela grande prece ao luar, rezada tão longe dos lares queridos”.

    Já nos acostumamos hoje a assistir a uma banda militar tocando uma valsa ou um tema de filme. Também não é estranho ver uma banda civil marchando ao som de um vibrante dobrado militar. Talvez não saibamos que muito desta familiaridade entre os dois grupos surgiu de um acontecimento histórico tão impactante como foi a Guerra do Paraguai.
        
    VINICIUS MARIANO DE CARVALHO É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE AARHUS, DINAMARCA, E PESQUISADOR DE HISTÓRIA DA MÚSICA MILITAR BRASILEIRA.

    Saiba Mais - Bibliografia

    BINDER, Fernando Pereira. “Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889”. Dissertação de mestrado, Unesp. São Paulo: 2006. Inédito.
    CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, s.d.
    DUARTE, Paulo de Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. O Imperador, os Chefes Militares, a Mobilização e o Quadro Militar da Época. Vol.I. Rio de Janeiro: BibliEx. 1981.
    SALES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias & Imagens. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. 2003