Batinas incendiárias

André Figueiredo Rodrigues

  • Rua dos Latoeiros – atual Gonçalves Dias, Centro do Rio de Janeiro –, 10 de maio de 1789. Em um quarto de sótão, escondido atrás da cama, com um bacamarte carregado de chumbo e com a espoleta pronta para o disparo, é preso o alferes Joaquim José da Silva Xavier, apelidado Tiradentes. Assim chegava ao fim o sonho de alguns moradores das Minas Gerais de se rebelarem contra a autoridade da Coroa portuguesa.

    Tiradentes fora denunciado como membro de uma conspiração planejada pela oligarquia local e norteada pelos interesses de militares, homens de negócio, fazendeiros, mineradores e intelectuais ilustrados, que buscavam reconquistar a prosperidade econômica diminuída pelos altos impostos cobrados pela Coroa portuguesa na região. E dos 23 inconfidentes que acabaram condenados, cinco eram homens de fé. Os clérigos processados e julgados como participantes dessa conjuração foram José da Silva e Oliveira Rolim, Carlos Correia de Toledo e Melo, José Lopes de Oliveira, Manuel Rodrigues da Costa e Luís Vieira da Silva – este, o único que exercia exclusivamente o sacerdócio. A vida religiosa nas Minas Gerais tinha a particularidade de permitir que os padres trabalhassem em atividades não relacionadas à Igreja. Assim, o clero inconfidente contava com garimpeiros, fazendeiros, contrabandistas, administradores de créditos e cobradores de dízimos. Todos membros das famílias mais importantes da capitania e parecendo ter tido cultura e poder político consideráveis.

    Mas a participação de membros do clero na conjuração não corresponde à imagem de padres conspiradores reunidos clandestinamente na calada da noite. Na verdade, eles nunca estiveram todos juntos em uma mesma reunião. Encontravam-se separadamente com os nomes mais expressivos do movimento, e em grupos reduzidos. Entre 15 e 26 de dezembro de 1788, ocorreu uma série de reuniões em Vila Rica, mas, nenhuma delas teve a totalidade dos conjurados presentes.  As informações de um grupo eram transmitidas a outro, em intercâmbio constante.

  • Os motivos da adesão e os níveis de participação dos religiosos no movimento, eram diferenciados, tanto que na documentação não se encontram referências a um clero inconfidente, e sim a personagens eclesiásticos envolvidos separadamente em um movimento sedicioso que se pretendia deflagrar nas Minas Gerais no ano seguinte.

    Referência obrigatória para a reconstrução dos acontecimentos daqueles dias, o processo-crime denominado Autos de Devassa é a versão oficial instaurada para apurar a premeditada sedição mineira. Nas inquirições prestadas à devassa, muitos inconfidentes afirmaram a grande erudição de personagens como Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa (poetas com formação em Direito) e, significativamente, a dos réus eclesiásticos – todos apontados como “líderes” intelectuais do movimento. São esses personagens que confirmam a influência do Iluminismo nas Minas Gerais. No caso do cônego Luís Vieira da Silva, sua faceta de homem de vasta cultura fica evidenciada por sua rica e especializada biblioteca. De boa diversificação temática, cobria dos assuntos religiosos aos políticos, além de apresentar uma excelente seleção de autores e marcante atualidade. Contava com aproximadamente 276 títulos em 563 volumes, incluindo Voltaire, Rousseau, Mably, e Montesquieu, entre outros filósofos. Havia também algumas obras literárias e um Elementos de arte militar. Era a maior biblioteca, em número e qualidade, a ser confiscada aos inconfidentes.

    Na transcrição dos bens apreendidos pela devassa constam centenas de livros. O padre Toledo possuía 58 obras em 105 volumes e o vigário Manuel Rodrigues da Costa, 73 livros em 212 tomos. Não existem referências a livros do padre Rolim, assim como não há aos de José Lopes de Oliveira. Entre os demais sediciosos, Cláudio Manuel da Costa possuía 388 volumes impressos e dois manuscritos; Tomás Antônio Gonzaga, 83 e José de Resende Costa, 62, enquanto a Alvarenga Peixoto foram seqüestrados apenas 18 obras.

  • Os livros eram uma prova da divulgação de textos iluministas franceses que incendiavam o ambiente intelectual das Minas – do qual faziam parte, inevitavelmente, vários religiosos. Afinal, na colônia, o acesso à educação era um luxo para poucos.

    O cônego e professor de Filosofia do Seminário de Mariana, Luís Vieira da Silva, estava em dia com a filosofia política e com as idéias que surgiram da produção intelectual européia no século XVIII. A bem-sucedida independência dos Estados Unidos, em 1776, era “sua paixão dominante”, sobre a qual falava sem prudência. Lia tudo o que se relacionava com a história da América Inglesa, da qual gostava de declarar-se grande “sabedor e conhecedor”. No segundo depoimento que prestou à devassa, no dia 11 de julho de 1789, o cônego Vieira reconheceu que conhecia as leis dos norte-americanos, pois fora indicado, ao lado de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, a elaborar as leis e os planos militares da República que se pretendia criar.

    Já o padre José da Silva e Oliveira Rolim era filho do sargento-mor que foi o primeiro administrador do Real Contrato dos Diamantes no distrito do Tijuco – uma das regiões mais lucrativas para a Coroa portuguesa. Pela tradição dos negócios herdada do pai e dedicação às atividades de contrabando e empreendimentos creditícios, era o mais rico dos conjurados, com negócios não apenas em Minas Gerais, mas também no Rio de Janeiro e Bahia. Era o único dos conjurados que não apresentava dívidas à Real Fazenda. Envolveu-se na Conjuração por questões pessoais: a extinção dos contratos individuais para a extração de ouro e de diamantes na região do Tijuco prejudicou diretamente a família Rolim que, com isso, deixou de ver com bons olhos a administração portuguesa na capitania. Rolim apoiava a instauração de uma república em Minas Gerais. Defendia o livre comércio de ouro e diamantes na região e, com a vitória do movimento sedicioso, pretendia revogar a legislação que regia a exploração de diamantes na região.

  • Rolim realizou seus estudos em Pompeu e no Seminário de Mariana, em Minas Gerais. Em 1778 foi enviado ao Seminário Maior de São Paulo, onde se envolveu em tantas e tamanhas farras com mulheres paulistanas, que o governador Martim Lopes Lobo de Saldanha determinou sua expulsão da capitania. Mesmo com tantos estudos, sua fama de incapaz para a leitura e a escrita, levantou a suspeita de que sua ordenação ocorreu à custa de ouro e pedras preciosas. Em seu depoimento à devassa, essa suspeita acabou confirmada, com o próprio Rolim afirmando que, na maioria das vezes, era seu escravo Alexandre quem escrevia suas cartas.

    Tamanhas deficiências não impediram Rolim de destacar-se no movimento por seu empenho e disposição de luta. Participou ativamente de todas as reuniões decisivas e comprometeu-se a arregimentar e armar 200 cavaleiros e a pagar parte da pólvora. Após meses de fuga, foi preso em outubro de 1789. Submetido a 15 interrogatórios e numerosas acareações, foi considerado pela devassa o mais importante dos conjurados, por tratar-se de pessoa de marcante influência no Tijuco.

    Quando o movimento foi abortado, os membros do clero envolvidos não conseguiram fazer valer seu direito a julgamento especial, sob alçada do juízo eclesiástico, pois eram culpados de crime de lesa-majestade – isto é, alta traição e infidelidade ao governo real. Desta forma, foram submetidos ao tribunal nomeado pela Coroa. Os réus eclesiásticos foram julgados com os demais, mas por decisão da Carta Régia de 17 de julho de 1790, deveriam ser enviados para Lisboa, onde receberiam a sentença. Até 20 de abril de 1792, guardou-se o segredo de outra carta régia (de 15 de outubro de 1790), que determinava que os condenados fossem agraciados com a clemência real – indulto das penas em degredo –, excluindo-se os clérigos e Tiradentes. Nessa atitude, percebe-se a influência do ministro e secretário da rainha Maria I, Martinho de Melo e Castro, também do clero, que procurou proteger a Igreja do vexame de um processo contra agitadores entre seus membros. Pela sentença de 18 de abril de 1792 seriam condenados à morte na forca, como chefes da Conjuração, os padres Toledo e Rolim, e, como sabedor e consentidor do movimento, o padre José Lopes de Oliveira. Entretanto, a rainha enlouquecera e o regente, dom João VI, determinou que se fizesse silêncio perpétuo sobre os condenados, deixados esquecidos nos conventos lisboetas.

  • O destino dos sacerdotes foi mais duro que o dos demais – com exceção de Tiradentes, enforcado em 21 de abril de 1792. Em conseqüência de não serem condenados nem libertados sofreram a pior sorte em relação aos degredados: quatro anos de prisão na fortaleza de São Julião da Barra, na foz do Tejo, e mais cinco ou seis anos de reclusão em outros mosteiros, continuando neles até 1804, quando se lhes permitiu voltar ao Brasil.

    Dos cinco religiosos processados, três foram condenados à morte (Toledo, Rolim e José Lopes) e os demais a degredo perpétuo (Vieira e Manuel Rodrigues). Foram impostas aos quatro primeiros uma pena complementar: o confisco total de seus bens, e, ao último, o confisco da metade. Se a carta de clemência fosse aplicada aos eclesiásticos, os três primeiros sofreriam degredo perpétuo e os dois últimos, talvez, dez anos. O único beneficiado seria o padre Rolim que, ao invés de degredo perpétuo, cumpriu quatro anos de prisão comum e cinco de reclusão em mosteiro. A falta de sentença contra eles originou à esdrúxula situação de não se converter o seqüestro (mera medida acauteladora) em confisco (pena de perdimento dos bens em favor da Coroa). Como não houve a excomunhão desses sacerdotes, os bens eclesiásticos ficaram intocados e puderam ser reavidos, parcialmente, pelos clérigos.

    Se, por um lado, o clero estava preso às determinações próprias de sua condição – orar, celebrar missas, confessar fiéis, etc. –, por outro, acabava deixando-se influenciar pelo mundo laico. Estavam sempre em contato com tropeiros, comerciantes e intelectuais ilustrados, muitos dos quais eram reprodutores das idéias francesas e norte-americanas. Mas o fato é que o envolvimento de homens da fé na conjuração foi o estopim de um processo que desencadeou mudanças por conta da tomada de consciência de sua condição de colonos. Pelo menos para os mais exaltados espiritualmente, como Tiradentes. Para esses, o levante era uma tentativa de reorganizar as relações entre a oligarquia local e a política colonial portuguesa na região. Nessa perspectiva, o clero – parte direta da relação entre esses dois pólos – não poderia deixar de participar.
     
    André Figueiredo Rodrigues é mestre e doutorando em História pela Universidade de São Paulo e autor do livro “O clero e a Conjuração Mineira” (Humanitas FFLCH/USP, 2002).