Beatas do além

Edianne dos Santos Nobre

  • Milhares de romeiros são atraídos a Juazeiro do Norte, no sul do Ceará, durante todo o ano para obter curas físicas e espirituais. Todos eles são motivados pelo chamado “milagre da beata”, uma história que aconteceu no dia 6 de março de 1889, primeira sexta-feira da Quaresma, na Igreja de Nossa Senhora das Dores, no povoado de Juazeiro. Após uma exaustiva noite de orações e penitências oferecidas ao Santíssimo Sacramento, o padre Cícero Romão Batista (1844-1934) decidiu encerrar a vigília ministrando a comunhão da Sagrada Eucaristia às pessoas que estavam com ele. A beata Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo, ao receber o corpo de Cristo, viveu o milagre: a hóstia se transformou em sangue na sua boca.

    O fenômeno do sangramento ocorreu em quase todas as comunhões da beata a partir daquele momento, e pelo menos até o fim de 1891. Um grande fluxo de peregrinos passou a visitar o povoado de Juazeiro a partir de meados de 1889, quando as notícias sobre o fenômeno se espalharam pelas regiões vizinhas. Vinham romeiros de várias partes do Nordeste, mas principalmente de Alagoas, Pernambuco e Rio Grande do Norte. O jornal A Verdade, que circulava na capital, Fortaleza, noticiou em 18 de maio de 1891 que, nas celebrações da Semana Santa daquele ano, Juazeiro recebeu mais de 25 mil pessoas, um claro contraste com a população fixa da cidade, que não ultrapassava duas mil pessoas. Esses eventos chamaram a atenção da Diocese do Ceará, dirigida pelo bispo D. Joaquim José Vieira (1836-1917). O eclesiástico abriu um processo episcopal e enviou ao vilarejo uma comissão formada pelos padres Clicério da Costa (1839-1916) e Francisco Ferreira Antero (1855-1929). No documento, há relatos da própria Maria de Araújo sobre o caso. Segundo ela, durante o milagre, foi tomada por uma “veemente dor, unida ao mesmo tempo a uma grande consolação da alma”. A partir daquele momento, ela acreditou ser a esposa fiel de Jesus, com a missão de “converter os pecadores, santificar as almas e liberar as almas do purgatório”. O processo também menciona a quantidade de sangue do episódio: “tanto que, além do que ela sorveu, parte caiu na toalha e parte caiu mesmo no chão”.

    Assim que chegaram à região, em setembro de 1891, os padres constataram que Juazeiro havia produzido mais milagres. Maria e oito beatas da região teriam experimentado outros supostos fenômenos milagrosos. Os relatos extraordinários de viagens espirituais, visões de santos e revelações proféticas dessas mulheres foram esquecidos pela “história oficial”, mas contribuíram para a construção da mística da cidade do sertão como um lugar sagrado, uma Nova Jerusalém.
    A Igreja de Nossa Senhora das Dores transformara-se em palco de constantes manifestações do maravilhoso e lugar de adoração do Sangue Precioso de Cristo, que jorrava, inclusive, dos crucifixos. A jovem Maria de Araújo dizia ter visto diversas vezes coros de anjos, precedidos de Jesus e Maria entrando na Igreja do Juazeiro com tochas acesas e entoando cânticos. Em seus depoimentos à comissão, outras beatas forneceram imagens sagradas anunciadas durante os transes místicos.

    O ponto de partida dessas visões era, em geral, o derramamento de sangue. A beata Maria das Dores do Coração de Jesus (1876-?), que tinha apenas 15 anos quando o inquérito foi instaurado, afirmou que certa vez “viu âmbula cheia de sangue a transbordar e derramar-se por todo o altar, aparecendo então Nosso Senhor todo ensanguentado”. Em julho de 1890, Jahel Cabral (1860-?) orava na capela do Juazeiro e também assistiu ao “mundo a sofrer uma grande tempestade”, com “pássaros de todas as qualidades e de todas as cores bebendo sangue contido em uma grande caixa”. As aves, segundo ela, representavam almas que beberiam a salvação no sangue de Nosso Senhor derramado naquele lugar.  

    Para as beatas, o fenômeno fazia de Juazeiro um espaço de natureza sagrada, um “outro céu”. E o próprio Jesus Cristo escolhera o lugar para sua segunda visita mística ao mundo. A beata Jahel chegou a profetizar, a partir dos primeiros milagres das hóstias consagradas, que a Capela do Santíssimo Sacramento da Igreja do Juazeiro “seria como uma piscina, onde muitos se lavariam assim na alma, como no corpo”. Em outros depoimentos, o próprio Deus aparecia na “figura de um homem, ajoelhado diante da caixa de vidro” onde estava depositado o pano que fora usado para enxugar a hóstia ensanguentada e os estigmas de Maria de Araújo. Essas narrativas só confirmavam a ideia de que a cidade do sertão cearense era essencialmente um local de salvação, onde se repetia, por meio da experiência dessas beatas, a Paixão de Cristo.

    Os relatos de viagens ao além – transitando por céu, purgatório e inferno – também eram motivos recorrentes na experiência sagrada vivida pelas mulheres. Maria de Araújo afirmou cair comumente em êxtases, “ficando a derramar copioso sangue logo depois de sua prostração na terra”. O padre Quintino Rodrigues (1863-1929) disse ter acompanhado esses momentos em que a jovem “libertava dali algumas almas com participação de suas penas; cumprindo notar-se que nessas ocasiões (...) derramava de seu corpo bastante sangue”. Mais uma vez, o transbordamento do líquido vital, claramente associado ao culto eucarístico, ilustrava o processo de purgação sofrido pelas almas através do corpo da beata.

    Até mesmo os padres da comissão de investigação atestaram a inexistência de qualquer embuste nos fenômenos sobrenaturais ali manifestados. Para surpresa da diocese cearense, eles concluíram que as beatas eram “almas levadas à vida unitiva”, significando assim que as beatas levavam uma vida de piedade exemplar e poderiam ser verdadeiros instrumentos divinos, capazes, portanto, de manifestar os fenômenos extraordinários que afirmavam experimentar, incapazes de cometer atos de má-fé. D. Joaquim prontamente recusou esse veredicto, afirmando que aquelas mulheres haviam armado truques tão perfeitos que acabaram ludibriando os religiosos.

    Em abril de 1892, uma nova comissão, liderada pelo padre Antônio Alexandrino de Alencar (1843-1903), encarregou-se da investigação sobre os milagres de Juazeiro. Pressionado por um grupo de sacerdotes, jornalistas e pessoas influentes da região que acreditavam na divindade dos fenômenos, o bispo do Ceará resolveu, em 1893, delegar à Santa Sé a palavra final sobre os eventos ocorridos no sertão do estado.

    No ano seguinte, a alta cúpula da Igreja Católica considerou os fenômenos “vãos e supersticiosos”. Condenou as beatas à reclusão, proibiu as peregrinações e ainda ordenou que todos os escritos sobre aqueles acontecimentos fossem queimados, restando apenas uma cópia do processo , que está sob posse da Cúria Diocesana do Crato, as cartas do padre Cícero e do padre Alexandrino. Tudo isso não impediu que o lugar, batizado com o sangue de Cristo, continuasse a atrair mais e mais fiéis, e chegasse aos dias atuais como um dos grandes centros de romaria do Brasil.

    Edianne Nobre é autora de “Sangue e pecado na terra santa: as beatas do Cariry sob uma perspectiva de gênero (1880-1895)”. In. MARQUES, Roberto (org.). Os limites do gênero: estudos transdisciplinares. (Ceres Editora/Nere, 2006).

    Saiba Mais - Bibliografia

    FORTI, Maria do Carmo Pagan. Maria do Juazeiro: A Beata do Milagre. São Paulo: Annablume, 1999.
    RAMOS, Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: territórios do sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: PUC-SP, 2000.
    SARRIÓN, Adelina. Beatas y endemoniadas: mujeres heterodoxas ante la Inquisición siglos XVI a XIX. Alianza Editorial: Madrid, 2003.  
     
    Saiba mais - Filme

    “Milagre em Juazeiro”, de Wolney Oliveira (Juazeiro, 1999).