Vinte anos se passaram entre o dia em que a crítica cultural Beatriz Sarlo se formou em Literatura na Universidade de Buenos Aires e o momento em que entrou em uma sala de aula como professora titular no fim dos anos 1980.
Ao lançar um olhar sobre sua trajetória acadêmica, Beatriz enfatiza os três Bs de sua vida: o francês Roland Barthes, o alemão Walter Benjamin e, é claro, o argentino Jorge Luis Borges, talvez o escritor para quem ela mais teve que se preparar para aceitar e compreender.
Golpe de Estado, sólida formação marxista – “ausente em grande parte da intelectualidade latino-americana” – e a vivência do populismo argentino não foram suficientes para enquadrá-la na típica esfera militante que marcou as décadas de 1960 e 1970.
Aos 71 anos, considera o populismo como o grande e inevitável enigma da política latino-americana, corrige teóricos como Fernando Henrique Cardoso e Vilfredo Pareto, e lança o desafio da construção de uma história de caráter público, em comunicação com as escolas e os livros didáticos. Histórias em que o rigor epistemológico possa se alimentar da “cultura da memória” e da subjetividade em nome de melhores caminhos de formação da consciência histórica nacional. Otimista em relação ao repúdio social às ditaduras que assolaram o continente, Beatriz aponta a mídia como importante instrumento de sensibilização nacional em relação aos crimes cometidos pelo Estado, e não apenas em tempos de exceção que, espera-se, não retornem sob novas formas, mas sobretudo a partir da contínua reflexão sobre o tempo presente. Para tanto, a memória das tragédias do passado pode ser o ponto de partida, nunca um fim em si mesmo.
Revista de História: O fato de ter estudado em um colégio inglês influenciou sua trajetória acadêmica?
Beatriz Sarlo:É difícil dizer, mas, sem dúvida, aprender uma língua aos 6 anos é diferente de ter contato com ela aos 15 ou 20 anos. Naquela época, nos anos de 1950, a disciplina dos colégios ingleses era muito rígida e isso constituía certo tipo de personalidade. É provável que, apesar de todos os avatares de minha vida muito desordenada e atravessada tanto pela política quanto por um tipo de militância, haja uma personalidade que tenda à ordem e à disciplina. Os colégios ingleses eram colégios minoritários, que não representavam nem a classe social à qual eu pertencia, nem os setores sociais com os quais iria me relacionar. Aos 16 anos, quando terminei o colégio, tive que mudar minha forma de pronunciar o castelhano. Dei-me conta de que teria que me transformar em alguém que não denunciasse o pertencimento a uma classe social. E acabei adotando uma pronúncia muito vulgar, de classe baixa, para dissimular os anos anteriores.
RH:Qual a relação entre sua formação e o posterior apego crítico a Jorge Luis Borges?
BS:Nunca tive uma familiaridade de estilo com Borges, nunca o conheci, nem quis conhecê-lo. Os estudantes de esquerda ou peronistas, no começo dos anos de 1960, não simpatizavam com ele, nem ele simpatizava com esse corte “esquerdista hippie”. As estudantes de filosofia que seguiam Borges eram como outro setor social para nós. Éramos como dois grupos separados política, ideológica e socialmente. Era complicado, pois resistíamos a ter uma relação com o maior escritor argentino. Mas Borges não se intimidava com isso, e à maneira vanguardista dava declarações de filiação ao partido conservador, o que provocava um impacto, desestabilizava o tabuleiro político, essa intervenção vanguardista. Mas eu não percebia isso nesse momento.
RH:Como chegou, então, à crítica literária?
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BS:Entrei na universidade aos 17 anos, não poderia encontrar qualquer razão para isso, não sabia o que era crítica literária ou história literária. Mas em 1965 ou 66 Roland Barthes foi traduzido por uma pequena editora de Buenos Aires. Não sei o que pude entender desse livro, mas algo ali me capturou por razões que hoje eu não poderia explicitar. Eu não tinha nenhum instrumento para entender com quem ele estava debatendo, mas houve um encanto pela linguagem e não por seu caráter teórico ou literário. Comprei todos os seus livros traduzidos imediatamente. Esse Barthes era mais fácil, o Barthes da análise da imagem e da comunicação, Barthes sensível. Esse Barthes não voltará mais, e nós, barthesianos, também não. Digamos que foi por nesse momento que me dei conta de que por aí passaria o meu destino, nos anos 70, e não nos 60, quando havia muita política, muitos militantes, e eu não sabia se era marxista ou barthesiana. Os dois não podiam frequentar os mesmos lugares e, naquele momento, eu não poderia ser as duas coisas. Foram quase 15 anos de uma boa formação marxista gramsciana, e Barthes me acompanhou.
RH: E Walter Benjamin? Como você se aproximou dele?
BS:Eu fiz três ensaios sobre Barthes, três ensaios sobre Borges e três ensaios sobre Benjamin: os três Bs fundamentais em minha vida. Com Benjamin, eu começo nos anos 70, mas para ele eu já estava mais bem preparada. Já havia passado por Barthes e tinha boa formação marxista, o que falta aos pensadores latino-americanos. Eu sou uma pessoa tardia porque me dediquei à política durante parte importante de minha vida e, comparada com qualquer intelectual brasileiro, minhas etapas são muito tardias. Hoje, no Brasil ou na Argentina, as histórias de vida são mais normais; uma pessoa aos 30 anos já está encaminhada.
RH: Talvez porque usemos menos de nosso tempo para nos dedicarmos à política, e porque os golpes de Estado são menos frequentes...
BS: De certa maneira a universidade brasileira persistiu durante o golpe de Estado [1964], porque Campinas foi fundada no tempo dos militares. Antonio Candido estava lá, e formou uma geração de orientandos, doutorandos. Foram poucos os intelectuais que tiveram que sair, como Roberto Schwarz. No ano em que recebi meu diploma, nunca mais voltei à universidade, nunca mais, era o golpe de 1966 [na Argentina], de Juan Carlos Onganía. Então, hoje, quando entro numa universidade, agradeço à democracia. Nunca tive nenhum cargo antes de ser professora titular.
RH:Entrando numa parte mais específica, lembramos que um dos conceitos que a senhora utiliza é o de “modernidade periférica”. Como ele ajuda a pensar a América Latina?
BS:Este é um conceito anterior ao de globalização. São culturas diferentes, só que colocadas na periferia. E dizer que são colocadas na periferia significa dizer que possuem uma série de tensões, conflitos inevitáveis. Esta é uma ideia que depende de onde você fala, e o que você fala muda de acordo com o lugar. Um texto de Roberto [Schwarz] foi muito importante para a elaboração do conceito de modernidade periférica, assim como as leituras de Antonio Candido que também fiz nos anos 80. Nesse período houve uma reunião em Campinas que foi fundamental para a literatura latino-americana e portuguesa, em castelhano, que resultou na publicação da [revista] Punto de Vista. Percebo que estávamos pensando nisso, em corrigir a ideia de cultura pelo viés da dependência. [Fernando Henrique] Cardoso disse que não dizia isso, mas não queríamos competir com Cardoso, queríamos corrigir não somente ele e [Vilfredo] Pareto, mas outros que também circulavam pela América Latina e pensavam a cultura a partir da teoria da dependência. A ideia de periferia ou de “ideias fora do lugar”, como usa Roberto, corrige porque não faz uso da hierarquia da qual dependem os temas culturais. Mas há, sim, um funcionamento distinto do grande tema cultural, que na América foi a questão escravocrata, tal como estuda Roberto em Machado de Assis.
RH: E esta ideia ainda se aplica atualmente?
BS: A ideia de modernidade periférica passa de maneira muito forte pela construção social dos temas culturais. A globalização desterritorializa e é mais “internética” do que geográfica. As relações se passam num território que não existe – e não existe no sentido de que “olhamos” apenas de passagem para a realidade local. Isto acontece muito com a música popular. Há 20 anos, quando entrei numa danceteria, havia música brasileira, um pouco de tango, músicas cubanas. E, de repente, essas músicas se fundiram de tal forma – o tango, o tropicalismo – que tudo está mesclado em produtos comerciais.
RH:Como analisa, hoje, o crescimento de governos com apelo popular na América Latina?
BS:O populismo é o grande enigma da política latino-americana a partir dos anos 1940 e costuma aparecer como uma veia política inevitável em muitos países. Mas essa veia pode se combinar com outras coisas e dependerá desses elementos de combinação para a forma que tomará o governo. Eu sinto bastante admiração por Lula que, sem dúvida, tem uma forte veia carismático-populista, mas isto está combinado com uma administração do Estado e com uma política exterior de grande personalidade, portanto, não produz os mesmos resultados de outras figuras. No caso argentino, o populismo se instaura como um corpo e com um nome, o peronismo, que sobrevive e se fortalece ainda hoje. No Brasil, o populismo surge em diversos momentos, com diferentes líderes, diferentes nomes e formas de fazer política. Sobretudo nos anos 50, houve na Argentina a restrição, o esvaziamento, o cerceamento no sentido de uma única possibilidade de fazer política de esquerda, totalmente distante das relações com os setores populares. Mas nos anos 60, a pergunta sobre bonapartismo ou populismo era uma pergunta inevitável para todos. Naquele momento, para muitos, que não éramos peronistas, Gramsci foi muito importante, e também a cultura italiana e meridional, seus intelectuais, que converteram o partido comunista em um partido verdadeiramente mesclado pela realidade popular.
RH:Quais são as faces desse populismo na Argentina?
BS:Eu citaria ao menos três: a revolução do Estado Social nos anos 1940 – que aparece na Argentina na forma do peronismo e há seguramente paralelos com o Brasil. A segunda onda peronista tem como símbolo o consenso de Washington, com o presidente Carlos Menem; é a segunda grande revolução conservadora colaboracionista. A terceira eu vejo como uma recuperação de elementos populistas plebiscitários que se relacionam de forma mais direta com o povo, fortemente autoritária e com fortíssima antipatia pela imprensa, o que é histórico no peronismo, com os Kirchner. Nas três vezes em que o peronismo ocupa o poder por período prolongado realiza modificações.
RH:A senhora enxerga uma relação entre a escrita literária e a escrita da história?
BS:Esse casamento terminou com Michelet, com os historiadores artistas, cuja escrita da história tinha a ver com uma dimensão subjetiva e em primeira pessoa. Houve uma mudança no mito da história, ele é ressignificado, principalmente pelos historiadores alemães, e Nietzsche é uma referência para eles. Muda-se o mito da história, muda-se a escrita da história. Mas há outros momentos de ressignificação. Isso não acontece de um dia para o outro, mas a escrita da história passa a ter um rito histórico, e temas de uma nova história econômica, por exemplo, necessitam de uma linguagem um tanto mais específica. É inevitável, e aconteceu também com a crítica literária, que teve o seu momento de transformação, sobretudo influenciado por grandes críticos alemães. Outro momento de ressignificação é o dos testemunhos, não só no Brasil, mas com uma reescrita pública da história, e isso é muito importante. A questão fundamental é saber que esses historiadores possuem um caráter público, que passa pelas escolas, que passa pela sociedade de maneira geral. Lidamos com certo tipo de discurso muito complexo. O mais importante não é cumprir uma função, e sim como se pode transmitir a história para as escolas. No caso argentino, minha preocupação é como – não os estudantes – os professores de história dos colégios podem ler e aprender o discurso histórico. Isto me preocupa muito mais que o livro acadêmico, porque ele não vai ser distribuído em nível nacional, muito pelo contrário, quiçá será reconhecido como uma tese. O problema é como se transmite uma história nacional.
RH:Qual o papel dos meios de comunicação de massa na criação do que a senhora chama de “cultura da memória”?
BS:Posso falar do caso da Argentina. Nos últimos dez anos tenho percebido um florescimento da cultura da memória. Nos meios de comunicação, um ato inaugural aconteceu em 1986, quando ocorreram os três primeiros julgamentos militares. Na televisão, eram mostrados nove homens parados, com seus uniformes degradados, sendo julgados por um tribunal civil integrado por gente muito jovem. É o tribunal civil que lê a sentença de condenação. Isto abre a possibilidade da memória. Depois ocorreriam muitos avatares, esse era um governo bastante carente de apoios políticos, e se pensou que uma vinculação maior com os movimentos de direitos humanos poderia fornecer apoio não só politico, mas ético também. O passo seguinte foi a recuperação da Esma [Escola Superior de Mecânica da Armada], que era um local de tortura, e a organização de direitos humanos entra nesse prédio onde agora funcionam trabalhos de memória. A partir daí há um caminho de memória e publicidade de relatos que penetram bastante na sociedade argentina, em princípio porque penetraram nas escolas, e isto é importantíssimo. Surgem as sequelas da ditatura, da tortura, as efemérides, e se cria um acordo de que nunca mais isso aconteceria, e que não se deveria mais pronunciar que a vida era melhor no tempo dos militares. Isto faz com que a ditadura deixe de ser uma possibilidade política e cultural.
RH:Como escrever uma história dos anos 1960 e 1970 a partir da memória?
BS:Há evidentemente uma dimensão ideológica fundamental que deve ser igualmente estudada, bastante presente nos textos clássicos e que envolve o impasse reforma ou revolução. E isto não aparece nos textos de memória, que são mais nostálgicos. Há implicações ideológicas, políticas e sociais envolvidas e, para isso, há muito poucos elementos de memória. Eles estão presentes nos textos de história que contemplam a crítica de fontes e documentos, congressos etc. Mas eu sou otimista em relação à construção de uma história mais influenciada pela subjetividade e pela memória nesse período de 84 até agora. E eu sou otimista em poucas coisas.
RH:Onde entraria a Comissão da Verdade no Brasil nesse processo?
BS:É muito difícil julgar processos de outro país. Mas por aqui não ocorrerão julgamentos, porque eles não aconteceram na primeira oportunidade que a sociedade teve para que isso fosse feito. No Chile era impensável, porque Pinochet continuava senador vitalício e chefe das Forças Armadas. Na Argentina houve julgamento porque a questão das Malvinas foi decisiva, as vítimas das Malvinas pagaram com seu sangue pela democracia. Depois de um tempo não é possível simplesmente retroceder, não é possível, os crimes se julgam no momento em que há a derrota, como com os nazistas. No Uruguai houve um plebiscito e a população não quis fazer a comissão, foi uma decisão popular. Cada país tem sua dinâmica própria, com seus “estilos” e símbolos nacionais. Na Argentina o estilo nacional é o de ruptura.
RH:Muita memória e pouca reflexão sobre o tempo é uma marca da contemporaneidade?
BS:Há uma tendência à museificação junto ao testemunho, ao mesmo tempo em que há poucos debates fortes sobre hipóteses, porque para isso deve haver a ideia de que esses homens e essas mulheres foram assassinados e perseguidos. Isto exige um distanciamento, não para justificar o assassinato pelas circunstâncias, mas para saber quem eram essas pessoas que foram assassinadas e perseguidas. Eu fui perseguida e não era revolucionária, talvez insurrecionista, e essa máquina ideológica não era menos esquemática. O partido marxista tinha um elemento religioso, assim como o populismo tem um elemento carismático.
RH:A senhora voltou há três anos a escrever críticas para um jornal. Como está sendo essa experiência?
BS:São notas largas sobre gente muito, muito jovem, com um ou dois livros publicados. Escrevendo essas notas pensei que era isso o que eu queria fazer, o que não acontece sempre. Se sou feliz fazendo isso, por que não o faço sempre?Há muitas respostas para esta pergunta. Primeiro, é muito difícil na Argentina que um diário publique uma página de crítica literária como crítica literária; por razões muito diferentes, entre as quais a não muito boa recepção do leitor. São razões que não cabem em uma teoria, são batalhas. De todo modo, não importa a forma que adquire essa crítica literária, mas que seja uma atividade de pesquisa forte, como tentei fazer em meu livro sobre Borges, Modernidade periférica. São livros de larga ou curta duração, mas que não foram pensados para a curta duração. A crítica literária deve ter um sentido público. Tenho a impressão de que não vou ver a volta do crítico literário, não que isso não vá acontecer, mas eu não vou ver a sua volta. A universidade da democracia, para a qual tenho contribuído, tem formado bons técnicos, bons pesquisadores, mas o seu problema é a questão do discurso público. Eles, talvez, não estejam produzindo nesse sentido, porque talvez não haja um público interessado em seu discurso.
RH:Houve uma queda de leitores e não de escritores?
BS:Quem lê as revistas sobre cinema, ou sobre música, sem ser a Rolling Stone? O público é muito reduzido, chega no máximo aos próprios amigos do músico, por exemplo. E quando pensamos em discurso público, não pensamos em um discurso para os nossos iguais, mas para os diferentes. O que acontece hoje é que os pesquisadores escrevem para os seus iguais, não estão interessados na leitura que é feita pelos outros. Acho, sim, que houve um crescimento do ensaio de cunho literário, ensaio político feito por alguém de sensibilidade literária, ou ensaio da vida cotidiana feito por alguém de sensibilidade literária. Há a volta da crônica, por exemplo, no Brasil, no México. As pessoas leem infinitamente mais as crônicas do que os livros. Essa escala fica clara com a televisão, um pouco menos com a imprensa, e muitíssimo menor é a leitura dos livros, enquanto a leitura da crítica dos livros sequer existe.
Beatriz Sarlo
Alice Melo e Ronaldo Pelli