Quando chega o fim do ano, calendários de todos os tipos invadem o comércio. Mas não é de hoje que isto acontece. As chamadas folhinhas existem desde a Antiguidade, uma expressão da necessidade do homem de ordenar o tempo. No Brasil, elas datam do início do século XIX. Um exemplo curioso dessa época é a Folhinha de Variedades para o Anno Bissexto de 1856, publicada no Rio de Janeiro pela Tipografia de Paula Brito (1809-1861). Inaugurada em 1831, com o tempo ela passou a ser o local de reunião de vários intelectuais, como Machado de Assis (1839-1908).
Guardado no acervo de Obras Raras da Biblioteca Nacional, o documento traz muito mais do que a organização dos dias e meses, oferecendo informações como a rotina do imperador e até dicas amorosas.
Encadernado em formato de bolso, com uma luxuosa capa de veludo e detalhes em dourado, a Folhinha de Variedades tinha na primeira parte a indicação dos feriados e dos dias de santos. Lado a lado com os católicos homenageados ficavam dados de astronomia, como o início e o fim do ciclo dos signos do zodíaco, as fases da Lua, o horário do nascer e do pôr do sol e a tábua das marés.
Graças à Folhinha, o leitor também era informado sobre as datas em que não se trabalhava nas repartições públicas, as festas nacionais, audiência nos tribunais e até sobre a agenda de D. Pedro II. Assim, os súditos ficavam “por dentro” das manifestações cívicas e podiam acompanhar a rotina do imperador, que dava “audiências na Quinta da Boa Vista às terças e sábados às 17h”. Os dias de Grande Gala, por exemplo, eram três: 25 de março, data em que foi jurada a Constituição do Império do Brasil; 7 de setembro, comemoração da Independência; e 2 de dezembro, aniversário de D. Pedro II.
Todo o serviço oferecido pelo calendário – que trazia ainda os horários de partida dos correios para diversas regiões do Brasil, bem como os reajustes das taxas dos selos – certamente era de grande valia. Mas nem todos os dados eram aplicáveis na vida prática. A folhinha incluía uma extensa relação dos nomes de imperadores e reis dos principais reinos e impérios, e dos soberanos pontífices – qual poderia ser a utilidade, para o homem comum, de saber quais eram os reis da dinastia carolíngia ou do Império Turco Otomano? Outros calendários da época traziam informações similares, como os nomes dos presidentes das províncias.
Para combater os momentos de tédio, o calendário de 1856 também cumpria o papel de passatempo, trazendo anexos divertidos. O primeiro deles continha piadas, contos, histórias curiosas e poemas. Um deles, intitulado “Os três mmm que eu amo, e os três que eu odeio”, diz:
“Três cousas amo no mundo
Que por MMM tem começo
Que por MMM tem princípio
Também três eu aborreço
São as três cousas que eu amo
E que até choro por ellas
Mesa, Música e Mulheres!
Oh, que três cousas tão bellas.
As outras três, que aborreço
São fataes impertinências
Eil-as pois, eu as odeio:
Morte, Mosca e... Reticências”.
Uma curta mensagem no calendário mostra que, para a sua publicação, era necessária a autorização da Cúria: “Approvamos o presente Kalendario, que nos pareceo exacto, e approximado do Directorium, para uso desta Diocese. Palácio da Conceição, 19 de Maio de 1854. Manoel, Bispo Capelão Mor, Conde de Irajá”.
O segundo anexo, destinado aos apaixonados, é um método para descobrir a qualidade do amor dedicado a uma pessoa por meio das flores. A amada que recebesse cravos, por exemplo, poderia ficar tranquila com o “amor fiel” do seu amante. Já o girassol significava um “amor indeciso” e a rosa encarnada, “amor fogoso”.
Para acalmar os corações ansiosos das leitoras, elas ganhavam um guia para descobrir a profissão de seus futuros maridos tirando a sorte entre uma gama de flores e ervas. Se tirassem a flor-de-lis, se casariam com um músico; o jasmim, com um desembargador, entre outras opções.
A publicação segue ainda com um ensaio apaixonado intitulado “O empregado público”, de autor não identificado, que surpreende o leitor pela atualidade. O texto defende a nobreza das funções públicas e denuncia a penúria financeira em que vive grande parte do funcionalismo. Na conclusão, lança a palavra de ordem: “Uni-vos, pois, empregados públicos!”
Por fim, a folhinha traz “Cautelas com o Cholera Morbus” – que se alastrou pelo Rio de Janeiro entre 1855 e 1856 –, consideradas pelos editores e pela Junta de Higiene da Corte muito úteis em tempos de epidemia. Entre os remédios recomendados pelo Dr. João Florindo Ribeiro de Bulhões para combater a doença estão: “Extrato de ópio; Cognac ou Genebra de Hollanda; Colheradas de Vinho de Madeira”. Que, se não curassem, davam um bom pileque. (Christianne Theodoro de Jesus/Fundação Biblioteca Nacional)
Bem mais que o tempo
Christianne Theodoro de Jesus