Biblioteca, doce lar

Bernardo Camara

  • Os sinos das igrejas badalam: são nove horas da manhã. Pontualmente, José Tarcísio de Abreu adentra o paraíso carregando caderno, lápis e borracha. “Aqui é o céu para mim”, afirma o empresário de carreira e pesquisador por opção ao tomar seu assento no salão de leitura da Biblioteca Nacional. Com 72 anos nas costas e “52 de BN”, seus dias na instituição nada têm a ver com passatempo. “Minhas horas mais importantes eu passo na biblioteca. Isso aqui é melhor que minha casa”.

    De quinta a sábado, quando troca sua empresa pelos livros, José garante que é o primeiro a pegar o crachá e passar pelas roletas. Às vezes ele leva pequenos quitutes para as moças da recepção, um agrado pela simpatia e pela precisão no horário. “As meninas são pontuais. Nove horas em ponto estão abrindo”, diz, satisfeito.

    Apesar dos horários rígidos – ele chega às 9h e parte às 19h, religiosamente –, a pesquisa a que se dedica não tem hora para acabar. Nas últimas cinco décadas, folheou obras filosóficas com o mesmo afinco com que mergulhou no campo da linguística, seus temas prediletos. “Dá para escrever uns cinco livros com tudo o que já pesquisei”, contabiliza. “Mas faço isso por prazer mesmo”.

    Ele não é o único. O jornalista Jorge César Pereira Nunes, de 65 anos, começou a frequentar a biblioteca na década de 1980 com objetivos bem definidos: faria um levantamento sobre a primeira corrida de automóveis no estado do Rio, que aconteceu em São Gonçalo, seu município, no início do século XX. De lá para cá, ele se aposentou, mas não deixou o trabalho de lado. Tomou gosto pela pesquisa, e há quatro anos não passa um dia sem rodar os corredores da BN.

    "Aqui é meu ponto de fuga. Quando não posso vir, me faz falta, pois me sinto muito bem nesse lugar”, comenta durante uma pausa na pesquisa sobre a cidade natal. Os funcionários, já acostumados com a assiduidade de Jorge, mexem com ele quando resolve “faltar” ao trabalho. “Eles perguntam do meu ponto”, diverte-se.

    Sem prazos ou chefes para direcionar seu estudo, o jornalista pretende estendê-lo até que a morte os separe. “O plano de trabalho é meu, ninguém se mete. Estou por conta disso enquanto estiver vivo. E espero não morrer tão cedo”. Como fruto do empenho, ele já publicou um livro sobre os prefeitos de São Gonçalo, e todo o material colhido é doado para um grupo de pesquisa da Uerj. 

    A bibliotecária Sheila da Silva, que trabalha no atendimento do setor de Periódicos, sabe de cor os nomes dos pesquisadores. E diz não ter qualquer trabalho com os que já são “de casa”. Salvo alguns casos de apego: “Tem uns que sempre escolhem as mesmas máquinas [de microfilme]. E se alguém pega a máquina ‘deles’, ficam emburrados”, entrega. Mas nada que o tempo não cure. No dia seguinte, já estão de volta selando as pazes. “Tem certos pesquisadores que até avisam quando não vêm, senão ficamos preocupados, achando que aconteceu alguma coisa”.

    Do outro lado da linha, parentes e amigos de leitores assíduos também se preocupam com o fato de eles ficarem enfurnados na biblioteca. “Os amigos acham que eu estou meio maluco”, confessa Jorge. Nem por isso eles arredam pé. “Meu filho às vezes pergunta: ‘Pai, por que você não sai para viajar um pouco?’ E eu digo para ele: ‘Vou viajar é para a Biblioteca Nacional’”, conta José Tarcísio.