Bocas afiadas e enfeitadas

Andersen Liryo

  • Na escavação da primeira Catedral da Sé do Brasil, fundada em Salvador em 1552 e demolida em 1933, foram achados alguns crânios com os dentes da frente mutilados entre os restos de esqueletos que se encontravam no adro da igreja. Os chamados dentes de piranha eram os mais notados, mas não os únicos. Também havia dentes quebrados com a forma da letra V invertida e outros com quebras dos contornos quadrangulares.

    Para alguém ser enterrado no interior das igrejas, era preciso pagar pela cova, restando o adro, o lado de fora, para os que não tinham dinheiro. Ali poderiam ser sepultados até por caridade. Era o caso, principalmente, dos escravos, o que leva a crer que eram deles os tais crânios. Sabendo-se que a população de Salvador foi e ainda é majoritariamente negra e mestiça, que os índios representavam parcela ínfima dos soteropolitanos e que esses crânios datam do período entre os séculos XVIII e XIX, quando foi maior o volume do tráfico negreiro, as chances de os dentes serem mesmo de negros africanos aumentam ainda mais. A própria variedade de formatos das mutilações aponta para uma origem africana dos esqueletos, pois entre os índios brasileiros só foram encontradas mutilações do tipo dente de piranha, em forma de pontas afiadas.

    “Este máo e estupido costume foi transmittido ao Brazil, de envolta com tantissimos outros de igual demérito, pelos escravos africanos”, escreveu Ladislau Netto (1838-1894), diretor do Museu Nacional, sobre o corte artificial dos dentes observado entre sertanejos, em artigo publicado em 1882.

    As más qualidades apontadas por Netto nos costumes dos escravos africanos refletiam, na verdade, a visão de uma sociedade ainda escravista. O diretor estava certo ao dizer que a prática de se modificar intencionalmente a forma dos dentes tinha surgido no Brasil com a chegada dos escravos africanos. Nos jornais do período escravista, durante o século XIX, eram comuns anúncios sobre escravos fujões nos quais, além das características físicas e habilidades profissionais, eram descritos sinais característicos que facilitassem ainda mais a identificação, como cicatrizes, marcas de nação e referências a dentes limados ou cortados.

    Não é possível dizer exatamente quando foram trazidos os primeiros escravos africanos com os dentes mutilados. Mas é bem provável que já na primeira metade do século XVI, antes mesmo do estabelecimento do tráfico negreiro, tenham chegado os primeiros indivíduos com essa característica.

    A mutilação intencional dos dentes foi encontrada em diferentes partes do mundo desde a pré-história. Na África, esse costume persiste ainda hoje em alguns países, como na Etiópia, e foi observado em diversos povos espalhados por praticamente todo o continente, inclusive nas regiões dos principais portos onde os traficantes buscavam escravos para o Brasil, particularmente na Costa da Mina e na região Congo-angolana.

    Na América pré-colombiana, a mutilação dos dentes esteve presente de Norte a Sul, principalmente entre povos da América Central e da região dos Andes, os que melhor desenvolveram a técnica em todo o mundo. Mesmo com a tecnologia de hoje, impressionam os resultados das mutilações nos índios americanos. A grande exceção é o Brasil, onde até hoje não há evidências, nem mesmo arqueológicas, da prática de mutilação dentária entre nossos índios. Nos relatos de cronistas, missionários ou viajantes não existe referência a índios com dentes mutilados. Somente após o descobrimento e o contato, direto ou indireto, com negros africanos é que algumas tribos passaram a mutilar os dentes, como os teneteharas, ticunas, makuxis, galibis, karipunas, pauaxianas, jauaris e kaigangs.

    No caso da África, além das evidências arqueológicas, há relatos como o do frei João dos Santos, missionário em Moçambique nos anos de 1596 e 1597. No livro Etiópia Oriental, conta a prática de mutilar os dentes entre povos locais. Os incisivos – os dentes da frente, que ficam junto aos lábios, facilmente vistos em simples sorriso – são os mais mutilados, principalmente os de cima. Os dentes posteriores, os que se encontram no fundo da boca, encostados às bochechas, raramente são mutilados.

    É senso comum dizer que povos que mutilam dentes o fazem por uma questão estética. Mesmo que aos nossos olhos a imagem de um indivíduo com os dentes apontados como agulhas seja pouco atraente, é provável que para seu próprio povo seja algo admirável. O próprio fato de os dentes da frente serem os mais mutilados sustenta a interpretação, já que eles queriam exibir os dentes cortados. Por isso alguns trabalhos antigos mencionam bocas “decoradas” ou “enfeitadas”, e chamam a mutilação dentária intencional de “decoração dentária”.

    Mas os motivos para a mutilação vão muito além do senso estético, como ritos de passagem (casamento, vida adulta), distinção social (chefes, curandeiros, guerreiros) e até para proteger os dentes das cáries. E esses motivos são próprios de cada povo, não sendo possível aplicar um para todos. Mesmo quando as mutilações dentárias são muito semelhantes na forma, não têm necessariamente a mesma motivação. Nem mesmo no caso de transmissão da prática de mutilação no Brasil, as populações que a assimilaram dos africanos incorporaram sempre as mesmas motivações. Entre os índios teneteharas, por exemplo, o costume de mutilar os dentes foi adotado como uma forma de adorno, mas também para facilitar a limpeza dos dentes.

    Mesmo no caso dos povos que dão aos seus dentes a forma dos dentes de animais (piranhas, crocodilos ou jaguares), há outras razões além das estéticas. Um guerreiro que tenha seus dentes apontados quer parecer mais valente ao seu oponente e garantir sucesso nos confrontos, como faziam os calabares do antigo Reino do Benin. No caso de um povo que cultue um animal com dentes apontados, como o povo fang de Camarões, que idolatra o crocodilo, os indivíduos podem apontar seus dentes para que se pareçam com os do animal cultuado e assim se diferenciar de outros povos, mostrando a todos a que povo eles pertencem. Há outras formas de mutilação, como a extração completa da coroa dentária dos dois dentes centrais superiores ou a quebra dos ângulos centrais desses mesmos dentes para fazer uma pequena abertura em forma de V invertido.

    É curioso notar que os índios brasileiros foram exceção quanto à variedade de tipos, pois copiaram dos escravos africanos o costume de se mutilar, mas somente a forma de dentes de piranha. Não há até hoje referência a outras formas de mutilação dentária entre nossos indígenas. Os próprios escravos brasileiros, descendentes dos africanos, não continuaram com esta prática. Alguns acreditam que a interrupção tenha sido causada por pressão dos senhores de escravos. Eles queriam evitar o afastamento ou a diminuição temporária da capacidade de trabalho dos seus cativos, porque, após a mutilação, eram necessários alguns cuidados especiais, principalmente com a alimentação, pois os dentes ficavam sensíveis. Mas outras tantas práticas e costumes dos escravos, que foram proibidos e perseguidos no Brasil colonial, não desapareceram, por maior que fosse o esforço dos senhores para eliminá-los. Foi o caso, por exemplo, dos cultos religiosos nos terreiros e da capoeira.

    Mesmo sabendo que até hoje não existe prova de que os índios brasileiros, ao contrário dos de todo o resto da América, tenham praticado a mutilação dentária antes do contato com escravos africanos, não se pode descartar a possibilidade de que escavações arqueológicas venham a revelar o contrário no futuro.

    Andersen Liryo é professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor do artigo “Modificações dentárias na primeira catedral do Brasil, Salvador/Bahia” (Coimbra, 2001/2002).


    Saiba Mais - Bibliografia

    LIMA, P. E. “Deformações Tegumentares e Mutilação Dentária entre os Índios Tenetehára”. In: Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Universidade do Brasil, 1954.
    LIRYO, Andersen; CARVALHO, Diana Maul de; SOUZA, Sheila Mendonça de. “Saúde Dentária dos Escravos de Salvador”. In: Dilene Raimundo do Nascimento; Diana Maul de Carvalho (orgs.). Uma História Brasileira das Doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004, v.1.