O Brasil já foi o país do football, onde scratches formados por players ou sportsmen iam em busca do goal, e referees apitavam as fouls nos matches. O encontro com esse passado do esporte importado que se nacionalizou está nas Súmulas de Football (1906-1918) doadas recentemente à Biblioteca Nacional pela família de Marcos Carneiro de Mendonça (1894-1988) – o primeiro goleiro, ou goal-keeper, da seleção brasileira – e guardadas na Divisão de Manuscritos.
O esporte bretão chegou ao Brasil em 1895 por iniciativa de Charles Miller, brasileiro de família abastada que, após um período estudando na Europa, trouxe na bagagem as regras oficiais do esporte, e a bola. O período que abrange as 87 súmulas corresponde ao da popularização do futebol, com o surgimento de muitos times e campeonatos, em um processo que culminaria com a profissionalização do esporte em 1933. No final da década de 1910, quando o Brasil ganhou seu primeiro título sul-americano, o futebol já era assunto em todas as esquinas, a ponto de o dia da final contra o Uruguai ter sido decretado como feriado carioca.
Não se sabe a autoria das Súmulas, se elas tiveram algum caráter oficial ou se foram pacientemente copiadas de alguma outra fonte, mas surpreende o cuidado com que foram guardadas. Não há timbre ou assinatura, o tamanho da folha se mantém e a caligrafia tem poucas mudanças. O período vai dos primeiros contatos de Marcos de Mendonça com o futebol, aos 10 anos de idade, até o auge de sua carreira. Marcos estreou aos 15 anos no Haddock Lobo e logo foi recrutado pelo América Football Club, com o qual alcançou um título pela primeira vez em 1913, em vitória imortalizada no hino do clube, nos versos de Lamartine Babo: “Campeões de 13, 16 e 22...”. Em seguida, foi para o Fluminense, onde conquistou o tricampeonato carioca em 1917, 1918 e 1919. Com a seleção brasileira, ganhou o campeonato sul-americano de 1919 ao lado do craque Arthur Friedenreich.
Todas as súmulas contêm um cabeçalho indicando o local do jogo, data, equipes e resultado. Em seguida, duas colunas listam os jogadores de cada time. Em casos de scratches, ou seleções, muitas vezes há a sigla do time de origem do jogador escrita na vertical, em letras menores. Um “x” indica o organizador do time, que exercia, naquela partida, a função de técnico ou capitão. Embaixo do cabeçalho, o nome do referee, ou árbitro, função muitas vezes desempenhada pelo técnico de uma das equipes. No verso, o time que teve a saída de bola, o horário de início do jogo e, em ordem, os gols marcados e seus autores. Ao pé da página, a descrição dos uniformes.
Na maioria das súmulas constam observações sobre como foi o match: número de torcedores, substituições por lesão, condições meteorológicas, menções a presenças ilustres e também comentários sobre o desempenho dos players (penalties defendidos, a autoria de “violentíssimos shoots”) e da arbitragem (acusada algumas vezes de parcialidade), além da reação da torcida. A súmula do jogo entre o scratch brasileiro e o argentino, em julho de 1908, conta que “os half-backs do Scratch foram carregados em triunfo pelos players platinos”.
O primeiro registro é de 1906, quando o South African Team enfrentou um scratch paulista que contou com a participação do próprio Charles Miller. Os paulistas perdem de goleada para a equipe sul-africana na frente do presidente da República Rodrigues Alves: 6 a 0. É possível acompanhar a excursão realizada em 1910 pelo inglês Corinthians Football Club, que fez uma campanha arrasadora no Rio e em São Paulo e inspirou um grupo de operários a fundar no Brasil um time com o mesmo nome. Marcos de Mendonça aparece pela primeira vez nas súmulas em 1912, em um jogo entre brasileiros e argentinos. Brasileiros perdem de 4 a 0, não sem protesto: “o referee marcou dois goals conquistados fora das regras – offside”. Seria o próprio goleiro falando em sua defesa? Em julho de 1914, a súmula do primeiro jogo oficial da Seleção Brasileira: vitória de 2 a 0 contra o Exeter City.
Ninguém poderia imaginar, àquela altura, onde chegaria o futebol brasileiro.
Bola que rola
Lia Jordão