É certo que a capa de um livro é a marca de um produto que quer atrair o leitor, sugerindo-lhe significados do que traz dentro. Uma capa que redesenhasse a bandeira nacional, substituindo o lema positivista “Ordem e Progresso” por “Pau-Brasil”, facilmente levaria mesmo um desavisado leitor a associá-lo a nacionalismo. Da mesma forma, a quantidade de bandeiras do Brasil espalhadas por nossas cidades, durante uma Copa do Mundo de futebol, indica o orgulho nacional, que, supostamente, “liga todos na mesma emoção”. A associação seria mais certeira se esse leitor a relacionasse ao contexto histórico dos anos 1920, em que se traçava o projeto modernista empenhado na construção de uma consciência do país, num processo de conhecimento da realidade brasileira. Os modernistas queriam mesmo “descobrir o Brasil”. Tornam-se intérpretes do país, com seus quadros, relatos de viagens, música, poemas e livros. Livros como o que teve a capa descrita no exemplo. Ele de fato existiu.
Publicado em março de 1925, em Paris, Pau-Brasil tem a assinatura de Oswald de Andrade (1890-1954), o modernista de São Paulo, que pouco antes, em 1922, junto a outros escritores e artistas, fez a Semana de Arte Moderna, buscando atualizar a arte brasileira com o que de mais atual se fazia na Europa. O pau-brasil, nosso primeiro produto de exportação, é tomado como símbolo dessa arte nova que conjuga o moderno, que vinha de fora, com a realidade brasileira. Ser moderno, aqui, era também ser nacional. Mas em nova escala.
A denominação “Pau-Brasil” designa duas realizações assinadas por Oswald de Andrade: o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, editado no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 18 de março de 1924, e o citado livro de poesias Pau-Brasil, impresso em Au Sans Pareil, Paris, um ano depois, que punha em prática o programa modernista que o Manifesto requeria. Como registra Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil (1928), no prefácio do livro, Oswald de Andrade, em Paris, na Plâce de Clichy, umbigo do mundo, descobre, deslumbrado, a sua própria terra. Com a volta a São Paulo, confirma-se a revelação surpreendente de que o Brasil existia! Ambos – Manifesto e livro de poesia – assentam-se sobre o nacionalismo crítico, relacionado com aquela nova “descoberta” do Brasil, empreendida pelo programa modernista a partir de 1922, mesmo ano em que se comemorava o centenário da Independência do Brasil e se fundava o Partido Comunista Brasileiro, a que Oswald se filiará em 1931.
-
À maneira de outros manifestos que inauguraram movimentos políticos, culturais e artísticos, a partir do século XIX, mas que proliferaram no início do século XX com as vanguardas, o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, em seu radicalismo, buscou combater pela raiz a literatura e a arte que então se faziam no Brasil. Com suas palavras de ordem, em frases curtas e incisivas, alia o primitivismo e as vanguardas européias (futurismo, cubismo expressionismo, surrealismo), para traduzir a ruptura com as convenções do passado. Ao mesmo tempo, retoma um traço da tradição cultural brasileira, não contemplado por essas convenções, isto é, o primitivismo, que para nós era um fato e não mero exotismo, e possibilitava uma lógica diferente, em oposição ao pensar cultivado e domesticado da cultura oficial dominante. De um lado, valoriza os estados brutos da alma coletiva, os sentimentos mais espontâneos, enquanto fatos culturais, e, de outro lado, as inovações formais fornecidas pelas vanguardas européias, permitindo a implantação de uma linguagem simplificada e depurada da retórica balofa recorrente na literatura e na eloqüência brasileiras. Propõe, afinal, uma nova escala para a percepção condicionada pelos meios técnicos da sociedade industrial para ensinar a “ver com olhos livres”. Para “acertar o relógio império da literatura nacional”.
O “Manifesto” acaba sendo um programa de reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira, conforme destaca o crítico paraense Benedito Nunes. Advogando a invenção e a surpresa, a nova proposta decompõe, através da ironia e da paródia, o arcabouço intelectual conservador de nossa sociedade. E propõe a conciliação entre a “floresta e a escola”, entre natureza e novo espaço urbano, entre cultura nativa e cultura intelectual renovada, num composto que confirmaria a nossa miscigenação étnica. Retoma, assim, a mestiçagem, ou o hibridismo, que caracteriza a cultura brasileira, portanto não “pura”, para fazer emergir a originalidade nativa, para fazer dela o ingrediente de uma arte nacional exportável, como fora o pau-brasil.
Estruturado em aforismos, trabalhando com oposições e contrastes, misturando imagens e conceitos, o “Manifesto” rompe com o discurso lógico e mescla, em estilo telegráfico, o tom de defesa radical de seus princípios, as alusões e o caráter doutrinário. As idéias novas que propõe são, assim, ditas numa linguagem também nova, sintetizada no aforismo: “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”. Todos os termos aqui valorizados procuram impor a marca do “novo”, eleito como uma força fundamental e decisiva da arte moderna, aquela que se quer atualizada com o presente estreitamente ligado com o futuro. O “novo”, o que a tradição não incorporara, nem inventara, é traço moderno por excelência, ligado à “mudança”, com que, assimilada ao progresso, a modernidade se identifica.
-
O programa do “Manifesto” será posto em prática no livro Pau-Brasil, que o resume no poema“Falação”, estrategicamente estampado logo após a abertura do livro com o poema “escapulário”, paródia da oração do pai-nosso: “No Pão de Açúcar/ De Cada Dia/ Dai-nos Senhor/ A Poesia/ De Cada Dia”. O pão torna-se a poesia, ração diária necessária à vida e, como indica o título do poema retirado do vocabulário religioso, é protetor de todo o livro.
Adotando como procedimentos da linguagem a apropriação de textos alheios, a paródia, as técnicas de montagem, que vêm do cinema (cortes, closes, flashes) e das artes plásticas – que se abrem para a fragmentação e a visualidade –, Pau-Brasil relata uma viagem de descoberta do país, desde a dedicatória “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”, mas datada de 1925. Logo, é uma outra descoberta, diferente da que realizaram os portugueses. A homenagem ao poeta suíço-francês que, em 1924, acompanhou a caravana modernista em viagem a Minas Gerais, para “descobrir” o barroco colonial, desaparece na edição das Poesias reunidas O. de Andrade, de 1945. Conserva-se, porém, o restante da frase, agora funcionando como fio que costura a possível narrativa do livro, que, organizado em séries de poemas, constrói em tom ao mesmo tempo sério e cômico uma história do Brasil.
Essa história abre, na primeira edição, com um desenho da pintora Tarsila do Amaral, que era casada com Oswald. A ilustração, como os outros desenhos do livro, é propositalmente ingênua, sugerindo em traços infantis a chegada dos portugueses ao novo mundo. A história, enquanto viagem, começa com a paródia da carta de Pero Vaz de Caminha e termina com o “canto de regresso à pátria”, fechando o périplo da viagem.
-
O livro começa, assim, pela história do Brasil, seção que parodia cronistas coloniais e relatos de viagem, que descrevem a terra descoberta. Retoma aí, para ironizar, o tópico do Brasil como o paraíso terrestre, presente desde a carta de Caminha e marca de ufanismo de uma feição do nacionalismo brasileiro. Seguem-se os “Poemas da colonização”, que introduzem o negro, a miscigenação e o patriarcalismo, e a série “São Martinho”, que reapresenta o passado do mundo rural, da aristocracia fazendeira, visto pelo prisma da modernidade, na tentativa de recuperar as raízes primitivas da sociedade e da cultura brasileiras e sua adequação ao presente. O país civilizado à européia, o universo cosmopolita e a metrópole são tematizados na série de “RP1”, a que se segue “Carnaval”, que celebra no Rio de Janeiro “o acontecimento religioso da raça”. “Secretário dos Amantes” apresenta anotações sintéticas do amante em viagem, pondo em xeque o sentimentalismo romântico, pela apropriação da linguagem “clicherizada” dos manuais de modelos de cartas. “Postes da Light” tematiza os flashes do cotidiano urbano, atualizando a linguagem dos tempos modernos condicionadas pelas tecnologias da sociedade industrial. “Roteiro das Minas” reúne os poemas motivados pela viagem da caravana modernista a Minas Gerais, em 1924, para descobrir o passado colonial representado pelo barroco, até aquele momento abandonado e não incorporado à tradição artística brasileira: os vanguardistas vão buscar essa tradição esquecida, mas vista, por isso mesmo, como manifestação do novo. O livro encerra-se com a série “Lóide Brasileiro”, não à toa o nome de uma conhecida companhia de navegação, e tematiza a viagem de regresso ao Brasil, partindo de Lisboa.
Imitando assim as viagens dos navegantes portugueses, profere, então, seu “canto de regresso à pátria”, poema que parodia a famosa “Canção do exílio”, do romântico Gonçalves Dias (certamente o poema mais parodiado da literatura brasileira). Ambos têm como elemento comum o nacionalismo. O romântico exalta ufanisticamente o Brasil como paraíso, em que “nossos bosques têm mais vidas” e “nossa vida mais amores” (imagens repetidas, não à toa, no nosso Hino Nacional). O modernista vê a pátria como lugar do progresso, da exploração das riquezas minerais, da indústria moderna simbolizada por São Paulo, mas também um lugar de rebelião. O primeiro verso: “Minha terra tem palmares” refere-se tanto ao famoso quilombo de Zumbi quanto ao coletivo de palmeiras, remetendo, para modificar, ao primeiro verso da “Canção do exílio”: “Minha terra tem palmeiras”.
-
No périplo da viagem pela história do Brasil que o livro Pau-Brasil constrói, Oswald de Andrade, transformado no eu poético que fala, aporta e redescobre a terra. Mas não deixa de trazer escondida “uma saudade feliz/ de Paris”. A conexão com a Europa tinha mudado, para nossos modernistas, de Portugal para a França, de onde ele traz uma espécie de “contrabando” (título do poema final). Procura indicar que a descoberta da identidade da pátria não mais é exteriorização de uma essência que nos constituiria, enquanto marca identitária pura, mas interiorização do exterior, isto é, incorporação de traços da cultura estrangeira, necessários à atualização tecnológica, cultural e artística. Por esse processo, tais traços se incorporam à nossa identidade – híbrida –, como já anunciava o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, que será retomado, em 1928, pelo “Manifesto antropófago”, aquele cujo lema é “Tupy or not tupy, that is the question”, e, mais tarde, em fins dos anos 40, pelas teses sobre as utopias e a filosofia messiânica, a que Oswald de Andrade se dedicou no final da vida. Sempre buscando ver o Brasil com olhos livres.
Renato Cordeiro Gomes é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutor em letras, autor de Todas as cidades, a cidade (Rocco, 1994) e organizador de João do Rio, para a Coleção Nossos Clássicos (Agir, 2005) e, com Izabel Margato, de O papel do intelectual hoje (UFMG, 2004). Também colaborou no volume Oswald de Andrade: Obra incompleta, coordenado por Jorge Schwartz para a Coleção Archivos da Unesco (no prelo).
Brasil à vista!
Renato Cordeiro Gomes