No dia 11 de dezembro de 2011, milhões de pessoas foram às urnas no Pará. Mas não era dia de eleição: era de plebiscito. Após meses de discussões inflamadas sobre a proposta de dividir o Pará em três diferentes estados, o Congresso Nacional passou para as mãos da população a decisão do destino do território. A maioria votou contra a fragmentação.
Nem sempre foi assim. Em outros tempos, a decisão sobre divisão de estados no Brasil ficava a cargo de juristas, que montavam seus argumentos a favor e contra. Foi o que ocorreu no início da República, com o conflito territorial entre o Rio Grande do Norte e o Ceará. A disputa de uma importante região salineira entre os dois estados foi parar na mesa do Supremo Tribunal Federal.Antes mesmo da Proclamação da República (1889), começaram as primeiras faíscas dessa briga. Ainda em meados do século XVIII, as autoridades da Vila do Aracati, hoje um município cearense, solicitaram à Coroa portuguesa o aumento de seu território. A intenção era ficar com parte das salinas do rio Mossoró. O Aracati, como um grande produtor de carne salgada, precisava dessas salinas.O lucro das oficinas de charqueados estava ameaçado pelo estanco do sal, monopólio da comercialização concedido pela Coroa a particulares. Apenas as capitanias de São Tomé, Rio Grande e Pernambuco eram produtoras. Elas podiam consumir o sal extraído em seus terrenos, mas não comercializar o produto com as capitanias vizinhas. Isto fazia com que o Ceará consumisse o sal português com seus altos impostos. A única maneira de diminuir o prejuízo era aumentar o seu território até as salinas.Em 1793, a rainha D. Maria I garantiu essa expansão com uma Carta Régia. Por meio do documento, as autoridades cearenses delimitaram seu novo território em 1801. Como a Carta não indicava a altura do rio que serviria de fronteira, foi necessária nova demarcação uma década depois. Nessa segunda oportunidade, o governo usou como ponto de referência um marco plantado à margem esquerda do rio Mossoró, chamado Pau Infincado. Os potiguares contestaram, mas a Coroa não se posicionou.A vida seguiu em frente: por mais de oitenta anos o terreno foi explorado pelas duas capitanias sob relativa paz. Mas em 1891, quando a primeira Constituição republicana foi aprovada, o conflito veio à tona. Fortemente inspirada na Constituição dos Estados Unidos (1787), a nova Carta brasileira deu autonomia aos estados para criarem e gerirem seus impostos por meio do federalismo. Baseado no documento de 1793 e interessado em administrar as riquezas do sal, o Ceará passou a denunciar a invasão norte-rio-grandense.O estado resolveu, então, dar entrada em um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) em 1894. A Justiça levou quatro anos para se posicionar, quando afirmou não se tratar de um conflito de jurisdição, mas de território. Disse ainda que, devido a essa mudança, o caso não seria da competência do Poder Judiciário, mas do Legislativo.Diante da resposta do STF, o governo do Ceará recorreu não ao Congresso Nacional, mas à sua Assembleia Estadual. Nela, um projeto de lei foi apresentado e aprovado no prazo recorde de sete dias. A lei estadual nº 639, de 19 de julho de 1901, elevava a localidade de Grossos a Vila. Por este motivo, o conflito ficou conhecido como “Caso Grossos” ou “Questão de Grossos”. Era justamente nesse local que ficavam duas escolas cujas despesas eram pagas pelo Rio Grande do Norte. Com essa carta na manga, o governo potiguar contestou a atitude do estado vizinho.O impasse estava formado. Mas como não havia lei específica para tratar dos conflitos territoriais no Brasil, os dois estados tentaram chegar a uma resolução por meio do direito internacional. Em março de 1902, acordaram que o caso seria resolvido por um Tribunal Arbitral, geralmente usado quando dois países litigantes davam o poder de julgar a um terceiro. Como se tratava de dois estados da federação, o conflito seria resolvido por dois árbitros. O tribunal foi formado por Antônio Coelho Rodrigues (1846-1912) e o engenheiro Matheus Nogueira Brandão, paulista. Por não chegarem a um acordo, foi nomeado um desempatador, chamado Lafayetty Rodrigues (1834-1917). A decisão final foi favorável ao Ceará. Mas o governo do Rio Grande do Norte bateu o pé: alegou vários erros no laudo e anunciou que não cumpriria o acordo.As autoridades cearenses não fizeram por menos. Resolveram levar o conflito à Câmara Federal, onde apresentaram o projeto de lei que a Assembleia Legislativa do estado havia aprovado em 1901. O texto, porém, trazia algumas mudanças, e a principal delas foi a de que o território contestado deixava de ser apenas da barra do rio Mossoró ao Pau Infincado. Agora, a reivindicação era por praticamente toda a região de limites entre os dois estados.Pelos trâmites oficiais, o projeto deveria passar pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça antes de ser votado. Mas o Ceará não queria esperar. Para garantir o território, o governador Pedro Borges (1851-1922) resolveu tomar posse de Grossos: enviou cerca de 40 praças (policiais) ao local, que expulsaram os coletores de impostos potiguares.Uma enxurrada de críticas ao governo cearense tomou os jornais do Rio Grande do Norte com artigos, charges e reportagens censurando a atitude do estado vizinho. Não demorou para que as forças militares também fossem acionadas por ali. Para tentar barrar a posse cearense, o governador potiguar enviou a Grossos 150 praças em 31 de janeiro de 1903. Faltou pouco para que explodisse um conflito armado entre os dois comandos. Foi quando o presidente Rodrigues Alves (1848-1919) interveio, pedindo aos governadores que esperassem o parecer da Comissão de Constituição, Legislação e Justiça.A decisão veio na sequência: o Congresso Nacional posicionou-se desfavorável ao projeto de lei cearense, alegando que aquele não era um conflito de território, mas de jurisdição, o que devolveria a responsabilidade da questão ao STF, que já havia argumentado exatamente o contrário do Legislativo.O advogado cearense Frederico Borges (1853-1921) – irmão do governador cearense Pedro Borges – retomou o processo no mesmo ano. O Rio Grande do Norte escolheu como advogado o jurista Rui Barbosa (1849-1923), que deu entrada com a defesa, chamada de Razões Finais. Nela, ele tenta justificar que o estado potiguar teria tido a posse do território durante todo o processo de formação das duas capitanias.O mais interessante na análise de Rui Barbosa é a maneira com que argumenta e a prova principal que sustenta para vencer. Ele usa um documento oferecido pelo próprio advogado cearense, que acusava o Rio Grande do Norte de ser invasor há tanto tempo que nem tinha como precisar. Para Rui, essa informação era a prova de que os potiguares já possuíam aquele território. A justificativa era baseada em um princípio jurídico chamado de uti possidetis, segundo o qual a posse de um território é de quem de fato o ocupa. E foi a partir dele que o Judiciário posicionou-se contrário ao Ceará.No entanto, o parecer não veio de uma hora para outra. Foram necessários três julgamentos e muitos anos para que a decisão se concretizasse nos chamados acórdãos, em 1908, 1915 e 1920 – este último resolvido com a pressão exercida pelo então presidente Epitácio Pessoa (1865-1942).À época, aquela disputa territorial tornou-se apenas mais uma dentre tantos outros conflitos que estavam surgindo entre os estados brasileiros. Por conta disso, em julho de 1920, foi organizada uma Conferência de Limites Interestaduais. Reunidos no Rio de Janeiro por duas semanas, políticos e juristas debateram as possibilidades de acordo entre os conflitantes. O encontro era uma tentativa de encorajar os estados a resolverem suas questões de limites até a data da comemoração do Centenário da Independência. Na data, deveria ser mostrado um país unido, não em pedaços. Deveria se mostrar o seu todo, não sua fragmentação.O processo final envolvendo cearenses e potiguares chegou ao inimaginável e impressionante número de 7 mil páginas. Ao Rio Grande do Norte só coube buscar a demarcação, agora a seu favor. Seu mapa atual corresponde exatamente ao que era pretendido na época.Já o Ceará não se deu por vencido. No mesmo ano da decisão, resolveu jogar seus tentáculos para outros lados, e começou a disputar uma faixa de terra com o Piauí. O conflito já se arrasta há décadas, e até hoje os estados não chegaram a um acordo. Enquanto isso, alguns moradores locais levam a vida sem estar muito certos se são cearenses ou piauienses. Na dúvida, todo mundo é brasileiro.Saul Estevam Fernandes é autor da dissertação “O inimaginável elefante mal-ajambrado: a Questão de Grossos e o rearranjo espacial norte-rio-grandense (1894-1920)”, (UFRN, 2012).Saiba MaisBARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXI, Tomos IV e V. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1954.MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal: EDUFRN, 2007.RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal: defesa do Federalismo (1899-1910). Vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.STUDART, Barão. Geografia do Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010.
Brasil em pedaços
Saul Estevam Fernandes