Caçadora de órfãos

Igor Mello

  • Um menino brinca na rua de terra batida na frente de casa quando começa um tiroteio. Apavorado, corre para dentro, mas não encontra o pai nem a mãe. Depara-se com uma amiga da família caída com o irmão mais novo no colo. Os dois parecem estar mortos. Ele volta para a rua e é atingido por três tiros. Mais um trágico caso atual de violência urbana? Poderia ser, mas este aconteceu no arraial de Canudos, no fim do século XIX.

    José Cavalcante sobreviveu aos tiros e se tornou um dos “canudinhos”, como foram chamados os órfãos da guerra criados por famílias “civilizadas”.  Mais de um século depois, sua existência acaba de ser descoberta pela historiadora Vanessa Sattamini, da PUC-Rio. “Uma senhora chamada Núbia me procurou em agosto dizendo ser filha de um órfão da guerra, depois de ler meu artigo na Revista de História da Biblioteca Nacional”, explica, referindo-se ao artigo de capa da edição nº 26 (novembro de 2007), no qual ela revelou o rastro de Ludgero Prestes – outro órfão de Canudos, levado para o Sudeste por Euclides da Cunha e criado por um professor paulista.

    Agora Vanessa se dedica a desvendar o passado de José Cavalcante. Ele teria sido acolhido pela família de Zinho de Araújo Góis, em Salvador, e vivido com ela até os 13 anos, quando ingressou nos Correios. Fez carreira na empresa e se aposentou como diretor. “A filha diz que ele só contou a história de sua infância depois que ela já era adulta. Não se lembrava de quase nada, como o nome dos pais, mas tinha na mente a viagem que fez até o arraial e a lembrança de uma figura que, pela sua descrição, poderia ser Antônio Conselheiro”, conta a pesquisadora, preocupada em tentar comprovar a identidade do personagem. “Eu adotei duas linhas de investigação: o cartório onde ele se casou e os registros dos Correios”.

    Embora ainda faltem documentos para embasar o achado, ela acredita que são grandes as chances de José ser de fato um sobrevivente da guerra. “Núbia diz que o pai tinha marcas de dois tiros no braço e outra na barriga”, conta. José faleceu em 1972, com cerca de 80 anos. Se por um lado isso dificulta a busca por membros da família que o acolheu, por outro estimula Vanessa a fazer as contas: “Ele deve ter nascido por volta de 1890. Dizia ter cinco ou seis anos quando foi baleado em Canudos. Então, presumo que tenha entrado para os Correios por volta de 1903”.

    Enquanto espera a resposta do cartório onde José se casou e um levantamento no arquivo dos Correios, a pesquisadora continua atenta a novos testemunhos que refaçam a trajetória dos sobreviventes da saga do Conselheiro.

    Você pode ajudar a descobrir o paradeiro de outros órfãos de Canudos? Se tem alguma história familiar da época na região, mande notícias para o e-mail redacao@revistadehistoria.com.br.