Cadências de Pernambuco

Ivaldo Marciano de França Lima

  • (Ilustração de João Teófilo)

    Vai entrar na passarela o Império do Samba. Em seguida será a vez de Sambista do Cordeiro. Limonil e Galeria do Ritmo também estão com os tamborins esquentando. A escolha do samba-enredo da Deixa Falar foi um sucesso, mas esta escola não é das mais “badaladas”: o público está à espera mesmo é da Estudantes de São José e da Gigantes do Samba.

    Qualquer carioca pode se sentir familiarizado com o ambiente descrito acima, embora talvez estranhe os nomes. Mas esse carnaval se passa bem longe do Rio de Janeiro. Mais precisamente, na capital do frevo. Recife quer mostrar que faz samba também.

    As escolas de samba mobilizam um número significativo de pernambucanos, desfilando sempre na segunda-feira de carnaval, na passarela oficial organizada no centro da cidade. Atraem grande público para as arquibancadas e rivalizam em pé de igualdade com os maracatus-nação, manifestação cultural de maior força no carnaval contemporâneo. Se hoje a convivência entre ritmos é pacífica, em um passado recente samba e frevo travaram verdadeira disputa pública.

    Nos anos 1960, nas ruas da cidade desfilavam (como ainda desfilam) ursos, bois, caboclinhos, maracatus de orquestra e maracatus-nação. Mas quem dava as cartas da folia eram mesmo o samba e os grupos de frevo (clubes, troças e blocos), com presença certa nos clubes da classe média recifense, como Umuarama, Santa Cruz, Náutico, Português e Internacional. A combinação entre os dois ritmos gerou um samba orquestrado, ainda hoje executado pelas “charangas” nos estádios de futebol locais.

    Os desfiles na passarela eram o termômetro para saber quem efetivamente dominava o cenário. E os números divulgados pelos jornais mostravam que o mais esperado era o resultado do concurso das escolas de samba, que gozavam de uma enorme popularidade tanto entre as pessoas de classe média como entre os populares. No ano de 1968, a agremiação com maior número de componentes foi a Estudantes de São José, com aproximados 300 figurantes. Nenhum grupo de frevo dispunha de tantos integrantes.

    O sucesso do samba no Recife causou reações diversas. Em 1962, o afamado compositor Nelson Ferreira, maestro de bandas e orquestras carnavalescas, veio a público defender o frevo, em resposta ao artigo “Um show de samba”, assinado por Aramis Andrade no Diário da Noite. O jornalista enaltecia a escola Estudantes de São José que, segundo ele, promovera um espetáculo inigualável no carnaval daquele ano. Em sua réplica, Nelson Ferreira argumentou que o samba executado em Pernambuco não chegava aos pés das agremiações do carnaval carioca.

    Houve quem desejasse limitar a execução do samba nos repertórios dos carnavais de clubes, rádios e televisões a um percentual cinco vezes menor do que a do frevo, e até a Comissão Organizadora do Carnaval (COC) tentou diminuir a popularidade das escolas de samba, jogando seus desfiles para o sábado de Zé Pereira. Contudo, o mais importante ataque ao samba pernambucano partiu de ninguém menos do que o prestigiado sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), em manifesto publicado em 1966 nos dois maiores jornais em circulação no Recife, o Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio. O título anuncia uma declaração de guerra: “Recifense, sim, subcarioca, não!”.No texto, o ilustre pensador chega a classificar os sambistas locais como adeptos do “calabarismo”, aludindo ao personagem histórico Calabar, conhecido por suposta traição às tropas que lutavam contra os invasores holandeses em Pernambuco no século XVII. “Um carnaval do Recife em que comecem a predominar escolas de samba ou qualquer outro exotismo dirigido já não é um carnaval recifense ou pernambucano: é um inexpressível, postiço e até caricaturesco carnaval subcarioca ou sub-isso ou sub-aquilo. De modo que a inesperada predominância, no carnaval deste ano, do samba subcarioca deve alarmar, inquietar e despertar o brio de todo bom pernambucano: é preciso que a invasão seja detida”, escreve Freyre.

    O manifesto prossegue levantando a hipótese de uma ação orquestrada por interesses escusos: “Afinal, como se explica a repentina organização de não sei quantas escolas de samba subcariocas na Cidade do Recife? A que plano obedece tal organização? Com que objetivo ela está se perpetuando? Eleitoralismo disfarçado? Estará havendo politiquice de qualquer espécie através do carnaval? Inocentes úteis estarão em jogo?”. As palavras do influente sociólogo, como se pode imaginar, aumentaram ainda mais a oposição às escolas de samba locais por parte dos intelectuais e das autoridades públicas.

    Mas, se não era parte de uma manobra política, como insinuava Freyre, de onde teria surgido, então, o samba pernambucano? As escolas começaram a ser fundadas entre os anos 1930 e 1940. Limonil, de 1935, reivindica ser a mais antiga de Pernambuco. Elas não eram formadas por grupos homogêneos. Algumas mesclavam instrumentos de percussão e sopro em suas baterias, a exemplo de Estudantes de São José, outras praticavam um modelo de samba mais próximo ao carioca, sem instrumentos de sopro, como o GRES Gigantes do Samba. Zezinho do Trombone era um dos destaques de Estudantes de São José, enquanto Mestre Lavanca, grande nome da história do samba pernambucano, era ardoroso defensor do “samba puro”, sem a presença de sopro.

    Em 2002, o pesquisador Bernardo Alves chegou a lançar um livro (A pré-história do samba) defendendo a tese de que o samba teve origem entre os indígenas, no sertão nordestino. Tudo indica, no entanto, que essa sua presença em Pernambuco é fruto de um processo de influências diversas, a exemplo do frevo, do coco e de outras práticas culturais, em meio às “imitações” das escolas de samba cariocas. Nenhuma invenção ou construção surge do nada, mas sempre em composição e diálogo com o cotidiano. Os pernambucanos que integravam as escolas de samba não estavam fazendo uma cópia fiel das escolas cariocas, mas misturando elementos locais às práticas trazidas do Rio de Janeiro. Exemplo disto foi justamente a adoção de instrumentos de sopro, ocorrida antes dos anos 1960, prática hoje abandonada pelas escolas de samba recifenses.

    Os maracatus da atualidade também resultam de intensos “diálogos” com as escolas de samba. As “saias de armar” utilizadas nas cortes reais dos maracatus a partir dos anos 1970, por exemplo, foram copiadas das baianas das escolas de samba. Os maracatus-nação também se apropriaram do uso de plumas, lantejoulas, lamê, paetês e outros tecidos brilhosos como forma de se adaptarem aos desfiles na passarela ao longo dos anos 1980. Assim como acontece no Rio, a organização dos desfiles passou a ser em alas e os desfilantes ocasionais fizeram crescer o número de componentes. Muitos maracatuzeiros da atualidade foram sambistas no passado, como Clóvis Cosmo, presidente do Maracatu Nação Encanto da Alegria; Maciel, presidente do Maracatu Estrela Dalva; Malu, presidente do Maracatu Axé da Lua; e Valter, mestre do Maracatu Estrela Brilhante do Recife. Os populares não se preocupavam em distinguir entre o que era de Pernambuco e o que supostamente não era.

    Os sambistas souberam buscar espaços naquele período hostil, cresceram em número e organização. E tiveram ao seu lado o curso dos acontecimentos, que privilegiava o chamado “carnaval espetáculo”, promovendo modificações extremas no formato das diversas manifestações culturais existentes em Pernambuco. As escolas de samba levavam vantagem por estarem adaptadas à ideia e ao formato de um carnaval que dispensava a participação do público na forma ativa. Bastava que as arquibancadas fossem armadas para que as escolas desfilassem.

    A disputa entre os “ritmos da terra” e as manifestações culturais “alienígenas” foi, no entanto, sufocada pelo formato contemporâneo. O carnaval multicultural recifense, modelo adotado desde o ano de 2002, comporta diferentes manifestações, incluindo um polo exclusivo para bandas de rock e palcos para artistas de sucesso. E, claro, samba da melhor qualidade. Que o digam Belo Xis, Boneco de Mola, Roberto Ceguinho e outros bambas.

     

    Ivaldo Marciano de França Lima é professor da Universidade do Estado da Bahia e autor da tese “Entre Pernambuco e a África. História dos maracatus-nação do Recife e a espetacularização da cultura popular(1960-2000)”,(UFF, 2010).

     

    Saiba mais - Bibliografia


    BENJAMIN, Roberto Câmara. “Samba de carnaval”. In: MAIOR, Mário Souto & REAL, Katarina. O folclore no carnaval do Recife. 2. ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Ed. Massangana, 1990.

    LIMA, Ivaldo Marciano de França.“Entre Pernambuco e África. História dos Maracatus-nação do Recife e a espetacularização da cultura popular (1960-2000)”.Tese de Doutoramento em História, UFF, Niterói, Rio de Janeiro, 2010.

    SILVA, Leonardo Dantas. Antologia do carnaval do Recife. Recife: Massangana, 1991.