Documentos originados em cartórios e igrejas já são, há algum tempo, utilizados em pesquisas históricas, quase sempre analisados de maneira seriada por ser seu conteúdo, grosso modo, semelhante, prestando-se muito bem para avaliações globais de certa comunidade ou região. Mas, eventualmente, algumas pérolas podem ser pinçadas nesse universo, como as encontradas por Sandra Lauderdale Graham, ponto de partida de seu novo trabalho. Caetana diz não aborda episódios da vida de duas mulheres: a primeira, uma escrava; a outra, rica, pertencente a uma das famílias cafeicultoras mais poderosas do Vale do Paraíba.
A escrava Caetana casou, a mando de seu senhor, em 1835, com Custódio, também escravo, mas resistiu a consumar o matrimônio. Apiedado pela obstinação da escrava que afirmava ter uma “grande repugnância ao estado de matrimônio”, seu senhor entrou com pedido de anulação do casamento no juízo eclesiástico. Caso raro, sem dúvida, mas que descortina um elenco imenso de relações na sociedade paulista e escravista da primeira metade do século XIX, quando o café avançava avassaladoramente pelas terras do Vale do Paraíba.
A partir dos relatos contidos nos depoimentos da própria Caetana, de seu marido e de várias testemunhas, além de inúmeras outras fontes, a autora analisa as relações de trabalho, a composição das escravarias dos fazendeiros da região, as famílias escravas, o compadrio e mais uma infinidade de detalhes que, por vezes, corroboram e, por outras, vão além das pesquisas historiográficas já realizadas sobre a vida no cativeiro.
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Anos depois dos fatos ocorridos com Caetana, em 1857, também nas terras do Vale do Paraíba, mas em território fluminense, uma senhora, dna. Inácia Delfina Werneck, dita seu solene testamento aos 86 anos. Neta de um açoriano comerciante em Minas Gerais que se estabelecera em Pati do Alferes, no Rio de Janeiro, transformado em agricultor de subsistência, e legara aos filhos terras e alguns escravos. Aumentando sobremaneira a fortuna, os filhos vão se transformar numa das mais ricas e prestigiadas famílias cafeicultoras do século XIX, os Lacerda Werneck. A trajetória da família é similar a de outras do mesmo período, mas o testamento ditado por Inácia, solteira e sem herdeiros, é inusitado. Nele, a senhora estipula como herdeiros uma escrava, Bernardina, que seria livre quando da morte de Inácia, e seus quatro filhos, alforriados na pia batismal. No documento está detalhado como os bens deveriam ser distribuídos e geridos.
Deixar escravos ou ex-escravos como herdeiros ou legatários de bens não foi prática incomum, embora, obviamente, não fosse regra. Mas, no caso de Inácia, os acontecimentos posteriores tornarão a situação dos herdeiros especial, uma vez que o testamenteiro, o poderoso barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, sobrinho de Inácia, decide mudar o rumo dos desejos da tia.
É na saga da família de Bernardina e seus filhos em busca de tomar posse da herança, e ainda no embate dessa família com o barão que a historiadora Sandra Graham tece as maiores considerações sobre a atuação, a família e o prestígio de homens e mulheres das poderosas famílias do vale cafeeiro, naquele momento já em decadência.
Esses trechos de histórias de vida, ou de microhistórias, servem como pretexto para discussões historiográficas amplas sobre a sociedade escravista brasileira do século XIX, inserindo seus personagens em cenários complexos e surpreendentes. Caetana diz não tem conteúdo que merece, sem dúvida, atenção especial.(Por Sheila de Castro Faria.)
Caetana diz não
Sandra Lauderdale Graham