Caipira, sim sinhô!

Eva Paulino

  • “São duas mil pessoas, o trânsito está interrompido numa faixa da Avenida São João, o Largo Paissandu está agitado. Uma escola de samba, uma banda do interior, as duas misturando batucada e marchinhas ao mesmo tempo. Motocicletas e viaturas do DSV, sirene, cinco soldados da PM e um sargento. Dois caminhões de uma estação de televisão, holofotes, fotógrafos. Então, com 45 minutos de atraso, o Galaxie preto estaciona junto à calçada do Cine Art-Palácio”. Nada fora do normal, explica o jornalista. É noite de estréia de filme de Amácio Mazzaropi!

    Por mais de vinte anos ele levou multidões aos cinemas. Quase sempre na pele de Jeca Tatu, personagem que tomou emprestado de Monteiro Lobato e transformou em um caipira esperto, capaz de enrolar os manda-chuvas da cidade com sua falsa ingenuidade. Fazia um cinema popular, cuja única ambição era divertir. Sem financiamentos e desprestigiado pela crítica, Mazzaropi conquistou sozinho o seu público, controlando seus filmes da produção à exibição. Com 32 longas na carreira, ele ficou rico.  

    Mazzaropi nasceu em São Paulo em abril de 1912. Seu pai era imigrante italiano, sua mãe, portuguesa. Ainda menino, mudou-se com eles para Taubaté, no interior do estado. Bom aluno, era reconhecido por sua facilidade para interpretar tipos nas atividades escolares. Interessou-se pelo teatro e pelo circo desde cedo, e foi parar no rádio. Aos 14 anos e de volta à capital paulista, entrou na caravana do Circo La Paz. A estréia no teatro ocorreu em 1935, com “A herança do Padre João”. Uma década depois, conseguiu oportunidade na Rádio Tupi, no programa dominical “Rancho Alegre”, encenado ao vivo no auditório da emissora e dirigido por Cassiano Gabus Mendes.

    Depois que “Rancho Alegre” se transformou em programa televisivo, o cinema era questão de tempo para Mazzaropi. Em 1951, foi convidado para um teste pelos diretores Abílio Pereira de Almeida (1906-1977) e Tom Payne (1914-1996), da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, grandioso estúdio paulista que seguia o modelo de produção norte-americano. No ano seguinte, estreava nas telonas com “Sai da frente”. E já como protagonista. 

    O filme fez enorme sucesso, e a Vera Cruz não quis perder tempo: na seqüência, contratou-o para protagonizar “Nadando em dinheiro”, ainda em 1952, e “Candinho”, em 1953. Confirmada a sua popularidade, engrenou outros cinco filmes em quatros anos, por estúdios diferentes: “O gato da madame” (1954), “A carrocinha” (1954), “Fuzileiro do amor” (1955), “O noivo da girafa” (1956) e “Chico Fumaça” (1957).

    Foi o bastante para ele poder investir em seu próprio negócio. Em 1958, alugou os estúdios da falida Vera Cruz, criou a Produções Amácio Mazzaropi (PAM Filmes) e se dedicou a escrever, produzir e interpretar “Chofer de praça”, dirigido por Milton Amaral. A partir daí, enquanto outros filmes nacionais só eram vistos por algumas dezenas de espectadores mesmo nas grandes cidades, as fitas de Mazzaropi enchiam os cinemas em todo o país. Eram exibidos primeiro no extinto Cine Art-Palácio, em São Paulo, e depois seguiam em cartaz em dezenas de cinemas da capital e do interior – numa época, entre os anos 1950 e 1970, em que o Brasil tinha quatro vezes mais salas do que hoje.

    “Jeca Tatu” (1959), o segundo longa da PAM Filmes, entraria para a história. Nele, Mazzaropi sintetizou os tipos populares que havia feito até então e concebeu o personagem que o tornaria famoso do Oiapoque ao Chuí: o caipira ingênuo e simples, mas esperto e malicioso.

    A expressão “jeca-tatu” havia sido cunhada por Monteiro Lobato em 1914, e foi usada pela primeira vez em uma carta ao jornal O Estado de S. Paulo para descrever os agregados de sua fazenda em Taubaté. Para o escritor, esse tipo de gente era “um parasita, um piolho da terra... inadaptável à civilização”. Mais tarde, diante do interesse da Medicamentos Fontoura, Lobato revisitou o personagem, agora dando-lhe esperanças, especialmente se tomasse remédios para se livrar de doenças como a esquistossomose. O Jeca Tatu ganhou então personalidade própria, publicado em histórias em quadrinhos. Monteiro Lobato, por sua vez, transformou-se em autor de sucesso e, na nona edição de Urupês (1923) pediria desculpas ao Jeca Tatu, dizendo que tinha finalmente compreendido que seu marasmo e sua indolência não eram fruto da preguiça, mas de doença.

    Coube a Mazzaropi consagrar de vez o tipo. O Jeca Tatu esteve na maioria de seus filmes, com pequenas modificações. Ele foi Jeca, Jecão, Djeca. Lutou contra latifundiários, bandidos e soldados. Defendeu a honra da filha, deu conselhos ao filho, esteve com Jesus Cristo e com o diabo. Várias mulheres queriam se casar com ele. Sua roupa variava pouco. Às vezes parecia fazer um “estilo Chaplin”, mas em geral vestia calças curtas, paletó apertado, camisa xadrez abotoada até o pescoço e um pito na boca. Seu forte sotaque caipira e as situações engraçadas em que o personagem se metia faziam o público gargalhar. Cada pessoa que assistiu aos filmes de Mazzaropi deve ter sua passagem favorita, mas a maioria há de se lembrar das canções. Especialmente a música-tema do filme “Casinha pequenina” (1963), que virou uma espécie de hino ao amor romântico caipira: “Tu não te lembras da casinha pequenina/ Onde nosso amor nasceu?”

    O comediante se firmava como o diretor/produtor/ator mais popular e financeiramente bem-sucedido do Brasil. Com freqüência atingia números superiores ao de grandes produções estrangeiras. Em 1974, “Portugal Minha Saudade” superou o clássico do terror “O Exorcista”, acumulando cerca de dois milhões de espectadores. No ano seguinte, “O Jeca Macumbeiro” ficou à frente de superproduções como “Terremoto” e “Aeroporto”, com 2,5 milhões de ingressos vendidos. Na lista dos 50 filmes nacionais de maior bilheteria, Mazzaropi aparece com seis produções.

    A disseminação e o alcance de Jeca Tatu têm raízes na forma como se deu o desenvolvimento cultural e urbano do país. Aqueles eram tempos de grandes migrações para as metrópoles, especialmente São Paulo. E os migrantes constituíam a maior parte do público de Mazzaropi. Eles pareciam ver em seus filmes uma maneira de reencontrar as origens ou, quem sabe, perceber o quanto se haviam distanciado delas.

    O Jeca Tatu não representa apenas o homem do campo, mas o brasileiro de modo geral. Ele é branco, mas é pobre. Não tem dinheiro, mas é esperto. Aproxima-se ainda dos negros, compreendendo sua situação de subalternidade. Em alguns filmes, mora no campo; em outros, se muda para a cidade. O personagem expressa ao mesmo tempo a nostalgia do que passou e a esperança do que virá. 

    Mas a crítica não enxergava nos filmes de Mazzaropi nenhuma dessas virtudes. Em 1965, Ignácio de Loyola escreve para o jornal Última Hora: “‘Meu Japão Brasileiro’ (será que a colônia nipônica percebeu que o Mazza passa o tempo todo a gozá-la?) é absolutamente paupérrimo. Falta imaginação, tudo é óbvio, chavão, lugar-comum, chatice. Um amontoado de planos narcisistas do mau cômico”. Sobre “Sai de baixo” (1977), Orlando L. Fassoni é ainda mais categórico. Em crítica na Folha de S. Paulo, afirma: “Mazzaropi não teve nenhum filme que pudesse ser inserido entre o que houve de bom no cinema brasileiro”.

    O próprio artista falou sobre a aversão da crítica ao seu trabalho. “Conte minha verdadeira história, (...) de um ator bom ou mau que sempre manteve cheios os cinemas. (...) Que nunca recebeu uma crítica construtiva da crítica cinematográfica especializada – crítica que se diz intelectual. Crítica que aplaude um cinema cheio de símbolos, enrolado, complicado, pretensioso, mas sem público. A história de um cara que pensa em fazer cinema apenas para divertir o público, por acreditar que cinema é diversão, e seus filmes nunca pretenderam mais do que isso”, declarou à revista Veja em 1970.

    Essa distância entre público e crítica revela contradições tipicamente brasileiras. Em um país colonizado por europeus mas habitado por uma grande maioria mestiça e mulata, sempre esteve nas mãos dos intelectuais urbanos a tarefa de interpretar o resto da nação por meio da literatura, do jornalismo e das artes em geral. Por melhor que sejam suas intenções, para quem nunca esteve na roça, nunca conheceu de perto a labuta do matuto, nunca bateu papo nem tocou viola com caipiras, nunca filosofou com jecas, nunca comeu a comida do tabaréu em sua casa, é difícil falar da vida deles com propriedade, representar seus sonhos, desilusões e esperanças com respeito.

    É bem verdade que alguns intelectuais brasileiros se dispuseram a conhecer de perto os Jecas. Foi o caso de Antonio Candido (1918-). Em meados do século passado, o crítico literário viveu com os moradores das redondezas de Rio Bonito. Dessa convivência nasceu o livro Os parceiros do Rio Bonito (1964). Antes dele, Cornélio Pires (1884-1958) também havia passado por experiência semelhante em Conversas ao pé do fogo (1921). Diferentemente de Lobato, estes dois escritores trataram o Jeca como alguém que tinha algo a compartilhar, a ensinar.

    Mas ninguém se empenhou tanto em dar espaço para os Jecas quanto Mazzaropi. E até hoje, 17 anos depois de sua morte, ele não tem o reconhecimento que merece. Em 1991, Hamilton dos Santos escreveu que “os filmes de Mazzaropi são simples e grotescos. Uma razão aceitável para que a crítica os tenha desprezado” (O Estado de S. Paulo). Chico Lopes, em 2005, compara a filmografia de Mazzaropi ao longa “2 filhos de Francisco”, de Breno Silveira, e afirma que o sucesso de ambos “cheira mal, porque legitima esse Brasil popular onde um coitado qualquer pode virar de tudo – e não importa o quê”. 

    Apesar de muitos narizes continuarem torcidos para ele, Mazzaropi sobrevive. Quase todos os seus filmes estão disponíveis em DVD. Proliferam ensaios e mesas-redondas interessados em explorar as preciosidades do universo de seu cinema. E desde 1994 funciona em Taubaté o Museu Mazzaropi, na mesma propriedade dos antigos estúdios da Vera Cruz.

    O Jeca ainda está entre nós, à espera de ser compreendido.

    Eva Paulino Bueno é professora da St. Mary’s University, no Texas,  e autora de O artista do povo: Mazzaropi e Jeca Tatu  no cinema brasileiro (EDUEM , 1999).


    Saiba Mais - Bibliografia:

    AUTRAN, Arthur. “As concepções de público no pensamento industrial cinematográfico.” Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação.  http://www.compos.org.br/data/biblioteca_380.pdf

    CÂMARA, Antônio da Silva. “Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro.” Politéia: História e Sociologia. V. 6, n. 1, pp. 211-26.

    TOSTA, Wilson. “Mazzaropi e o Cinema Caipira.” Revista Rio Festival; p. 12; 23 de novembro de 1984.