Calar, jamais

Mariana Gonçalves Guglielmo

  • Antônio Francisco Granjeiro foi um escravo ousado demais para a época em que viveu, no final do século XVIII. Para obter a liberdade, ele se valeu da única estratégia que tinha à mão: viajou para Portugal e foi ao encontro de D. Maria I (1734-1816) – só o poder monárquico lhe poderia dar forças para enfrentar a fúria de seu senhor.

    Homem pardo, casado e com filhos, Granjeiro trabalhava como alfaiate em Campos dos Goytacazes, na Capitania do Espírito Santo. Não escondia o quanto ansiava pela liberdade, pois não aguentava mais os maus-tratos de seu senhor. Assim, “unido com sua mulher nas horas vagas do dia e da noite, trabalhou com tanta eficácia que chegou a adquirir dinheiro suficiente para o seu resgate”. Mas, para conseguir sua alforria, ele precisava do consentimento de seu proprietário, Joaquim Vicente dos Reis (1747-1813), o que não obteve, ainda que tivesse sempre “animado seu espírito com docilidade”. Em razão da irredutibilidade senhorial, Granjeiro apela para o que parecia ser seu último recurso: “sua soberana”, a rainha D. Maria I. Ruma, então, para Lisboa.

    Comerciante que se tornou dono da antiga Fazenda dos Jesuítas em Campos dos Goytacazes em 1781, Vicente dos Reis, irritado com a afronta, decidiu mandar seu cativo para Angola, castigo que ele costumava impor àqueles que o desafiassem ou desagradassem. Dessa forma, ele poderia impedir que o pardo lhe trouxesse problemas futuros, já que vinha se mostrando muito astuto, e seria capaz até de insuflar outros escravos descontentes dentro de sua imensa propriedade, que abrigava quase dois mil escravos.

    Não há registros que expliquem detalhadamente como Granjeiro chegou à Corte portuguesa. O que se sabe é que as economias que ele e a esposa haviam acumulado eram suficientes não só para custear a viagem, mas também para os outros gastos que teriam pela frente. O pardo havia sido mandado para a Bahia por Vicente dos Reis “com uma carta fechada” em mãos, endereçada a algum procurador, orientando-o a mandar o cativo e sua família para o continente africano. Provavelmente, Granjeiro abriu o envelope e, ao ler o conteúdo, acabou seguindo para Lisboa.

    Nada indica que o cativo tenha encontrado pessoalmente a rainha na capital portuguesa, mas ela certamente ficou sabendo da sua vontade de se libertar. D. Maria I chegou a ordenar ao vice-rei do Estado do Brasil (conde de Resende, D. José de Castro) que determinasse o valor do escravo. Se o cativo depositasse a referida quantia em juízo, poderia gozar da tão sonhada liberdade, ainda que seu senhor se opusesse a isso.

    De volta ao Brasil, Granjeiro tratou de fazer o depósito: 153$600. A alforria saiu no dia 30 de outubro do mesmo ano. Assim que resolveu os trâmites burocráticos no Rio de Janeiro, ele fez as malas e foi para Campos dos Goytacazes, onde “esperava gozar uma paz tranquila”. Mas as coisas não aconteceram do jeito que o ex-escravo desejava. Isso porque Joaquim Vicente dos Reis teria requerido o cancelamento da ordem real, alegando que Granjeiro era desobediente, temerário, destemido e réu de graves delitos.

    O recém-liberto foi preso no início de 1800 e logo depois escreveu para a Relação do Rio de Janeiro – uma espécie de Superior Tribunal de Justiça da época – para saber qual teria sido seu delito. Além de se referir à soberba do seu senhor, ele afirmou que Vicente dos Reis tinha o hábito de ensaiar testemunhas para que depusessem contra os seus escravos. Não satisfeito, o cativo reproduziu as palavras que seu ex-proprietário proferiu ao saber que ele conseguira se alforriar: “Será possível que sendo eu um homem de tanto respeito e comandante de dois mil e tantos escravos, um deles, protegido por sua Majestade, escape a minha vingança e que goze da sua liberdade em mesma afronta? Não, eu não sairei de procurar a minha satisfação até o reduzir ao antigo cativeiro”.

    Mas reescravizar Granjeiro – medida rara, porém possível – não seria a melhor solução para Vicente dos Reis. O dono da fazenda deu, então, sua cartada final: afirmou que o cativo não era mais sua propriedade no momento em que adquiriu a liberdade, pois já havia sido doado à Santa Casa de Misericórdia em Angola. A alforria, portanto, não teria validade, uma vez que Granjeiro havia se apresentado como escravo do ex-comerciante, coisa que já não era mais. Ele reconhecia que o maior temor de seu ex-senhor era que sua atitude servisse de exemplo para sua imensa escravaria, mas tratou de retrucar rapidamente esse argumento, que poderia prejudicá-lo no desenrolar do processo. Passou então a dizer que seu caso era excepcional, pois nem todos teriam como conseguir “a graça, que a piedosa, e estimável soberana concedeu a ele”.

    O que mais chama a atenção neste caso é como Granjeiro parece estar muito a par de toda a retórica normalmente utilizada na comunicação com a metrópole. Em momento algum ele reclama do poder central e das decisões da Coroa, enquanto Joaquim Vicente dos Reis é retratado como um indivíduo manipulador e prepotente. Além disso, o ponto central de seu requerimento é a afronta de Vicente dos Reis à monarquia e as mentiras que contava para realizar suas vontades, jogando a Coroa contra o poder senhorial. Granjeiro sabia como explorar as discordâncias, e concorria a seu favor a necessidade da rainha de aparentar magnanimidade na hora de tomar decisões.

    Apesar de todo o esforço do escravo, o Chanceler da Relação do Rio de Janeiro, Luis Beltrão de Gouvêa de Almeida, alegou, no dia 5 de novembro de 1800, que nada poderia ser feito para beneficiar Antônio Francisco Granjeiro. Nesse ínterim, o pardo não mediu esforços para provar que não havia cometido crime algum, arrolando sete testemunhas em sua defesa: três alfaiates, dois sujeitos que “viviam de suas lavouras”, um tropeiro e um homem branco cujo ofício era fabricar aguardentes. Todos atestaram seu bom comportamento, da mesma forma que os escrivães não conseguiram encontrar qualquer indício de culpa na conduta do escravo.

    Mesmo com todas estas provas, Granjeiro foi enviado para Angola. Foi em Luanda que ele montou todo um requerimento que trazia 15 documentos autenticados com o intuito de embasar e dotar de veracidade seus argumentos. Mesmo assim, acabou imerso na obscuridade compartilhada por tantos escravos e forros do passado brasileiro.

    Certamente outros Granjeiros tentaram lutar pela liberdade, mas se perderam em meio a uma sociedade na qual a escrita – um recurso essencial na Época Moderna – era reservada a uma pequena parcela da população, o que cerceava, ainda que nunca eliminasse, as possibilidades de os escravos se organizarem. Por mais que a sociedade da época tentasse calar aqueles que eram escravizados, a história desse pardo sobrevive não por conta de documentos produzidos por outros agentes sociais, de forma indireta, e sim pela habilidade que ele tinha de se expressar por conta própria. Não por acaso, o documento de Granjeiro traz a seguinte observação indignada do Conselho Ultramarino, que cuidava dos assuntos relacionados às colônias de Portugal: “Este registro não é formado em bons princípios, e se ressente nele indícios de perigosas e mal aplicadas doutrinas”.

     

    Mariana Gonçalves Guglielmo é autora da dissertação “As múltiplas facetas do vassalo ‘mais rico e poderoso de Portugal no Brasil’: Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goytacazes (1781-1813)” (UFF, 2011).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

    LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

    RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos de origem africana na América Portuguesa” In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.